Apesar de Von Trier, Melancolia é um filme que se esforça para subsistir enquanto experiência de cinema. A arquitetura do espetáculo, pela eficácia de seu último minuto, confirma uma obra que pede a tela grande e os recursos mais avançados de projeção e sonorização existentes. Há no encontro dos dois planetas, e na escatológica destruição daí proveniente, uma abordagem catártica que, de tão eloquente, torna compensados os demais 135 minutos roubados do espectador. Pois em Melancolia tudo acontece apesar de algo menor.
Não há spoiler possível para este filme. Na verdade, tudo já foi dito sobre Melancolia, tudo já foi visto. Seja na carreira pregressa do diretor, retomada aqui de maneira estéril em referência a diversos de seus filmes, seja no resumão que ele faz nessa nova mania de prólogo antiliterário (aqueles minutinhos iniciais que, desde Anticristo, comprovam um Von Trier capaz de sobreviver fazendo comerciais de shampoo), todas as cartas são colocadas na mesa assim que vemos o nome dele estampado no cartaz de divulgação.
Numa análise técnica, podemos situar seu novo trabalho como a elaboração perfeita de uma fórmula, pois tudo funciona muito bem: o roteiro tem um excelente ponto de partida, o elenco está afinadíssimo na incorporação de caricaturas sociais rasas, a fotografia deslumbrante concorda com todos os excessos da produção, a começar pela excepcional edição de som, esta sim, das maiores que o cinema já provou. Mas é constatando o resultado final de Melancolia que nos lembramos uma vez mais de que cinema não é fórmula matemática, de que a lógica interna da representação carece de um brilho próprio, um deslocamento, um vir a ser que necessita da encenação (mise en scène) enquanto recurso que não pode ser burlado, falsificado ou padronizado como Von Trier o pretende.
Definir um estilo não é valer-se sempre das mesmas telas e fontes de créditos (Woody Allen quem o diga), não é impor a imagem de si como algo maior que a imagem-filme (ou então Godard nada seria), assim como homenagear alguém não consiste em escrever dedicatórias vazias a um nome (porque nunca, nunca a memória de Tarkovski em Anticristo será justificável). Acima de tudo, Melancolia se sustenta como uma homenagem de Von Trier a si próprio e ao movimento que um dia iniciou, a autorreferência de um cinema que já enfrentou seu apocalipse (quantas vezes será preciso lembrar Anticristo aqui?) e não conseguiu ressurgir.
Nesse sentido podemos tomar como exemplo a primeira metade de Melancolia e sua óbvia relação com Festa de Família, filme manifesto do Dogma ao qual Von Trier faz questão de tornar pastiche em sequências que acentuam, sob qualquer aspecto, suas limitações junto ao olhar da câmera. Pois se no marco dos anos 90 a câmera procurava o movimento espontâneo do mundo, agora vemos o contrário, sendo a câmera quem não se deixa encontrar; é ela quem foge.
Fica difícil nutrir qualquer esperança para um cinema que se autodestrói, que passivamente se rende ao que há de mais previsível no mercado alternativo do cinema, este nicho de festivais e premiações facilmente contentável. Se Melancolia assumisse o posto de último filme de seu diretor certamente teríamos um dos mais belos e incisivos testamentos já feitos. Os contornos seriam outros. Mas há maus ventos dizendo não ser este o caso, o que não nos impede de continuar encontrando nele um paralelo ao final de mundo retratado, o encerramento de um olhar, o derradeiro espasmo de um cinema, a força de um último acorde que precisa ser lembrado, pois inesgotável. Não negamos, Melancolia realiza algo, ele fica, mas tudo apesar de Von Trier.
Boa a sua perspectiva! Um olhar diferente e profissional. Sempre adoro seus textos, mesmo (e principalmente) quando divergimos 🙂
bjo!
Obrigado pelas palavras, Rô.
Também acho que nossas divergências nos enriquecem sempre. Beijão!
Belíssima crítica!
Gostei muito das observações do egocentrismo do Von Trier. Fernando moro em Recife, sei q vc é o fundador do Dissenso, sempre tive vontade de ir mas sempre acho q vou me sentir meio estranho por lá por ser pirraia… Abraços
Diogo, se você quer fazer eu me sentir um velho caduco fala logo… kkkkkk Que conversa é essa de ser pirraia, cara? Tá esperando o quê pra aparecer no Dissenso?! Bom, não sei tua idade, mas a gente não barra ninguém por censura não. kkkkkkkk Aliás, eu não sou O fundador, mas UM DOS, pois somos um grupo.
Enfim, valeu pela reação ao texto, companheiro. E fico esperando sua visita em alguma sessão! Abraço (qualquer coisa entra em contato)
O texto tá elegante, Fernando, e minha tendência é não gostar dos filmes dele. Mas aqui fui vencido pela lógica. Eu vejo essa autodestruição com uma das possibilidades de força do filme, que tem problemas, claro – exemplo da câmera que treme demais, desnecessariamente.
Abração!
Como vc escreve bem, poxa. Sorvi as tuas palavras, queria muito ler o q achou deste filme. Ei-lo aqui, tão profundo e tão simples. Realmente, Melancolia poderia ter sido o epitáfio de Lars, filme majestoso e q me arrebatou no seu final – pra mim inesperado. O Melancolia q se choca na Terra melancólica. Teu texto é muito bom!
[]s
Nando, vc viu uma espécie de homenagem a Alain Resnais, no filme Ano Passado em Marienbad, numa das cenas do filme, mais precisamente, na casa do cientista que estocava alimentos, em caso de uma colisão entre dois planetas? Pareceu-me que os jardins e a posição e formato das árvores era muito parecida. Vou lançar a pergunta lá, mas será que alguém lá já assistiu Resnais? Que maldade, Lu Stoker… Beijos
Eliane e Pedro, obrigado pelas reações!
Lu, vou te confessar que me lembrei de ‘Marienbad’ sim, mas é porque eu não consigo bater o olho num jardim com simetrias e geometrias sem lembrar de Resnais… Não associei nenhum tipo de homenagem, mas entrando na sua deixa não me parece impossível que ela exista, já que também há uma espécie de aprisionamento daqueles espaços que beira o caos da ficcionalização. O problema é que qualquer coisa nas mãos de Von Trier vira homenagem, e das mais baratas, por isso prefiro continuar sem essa referência ao pensar em ‘Melancolia’…