Por Fernando Mendonça
1932 poderia figurar como um ano precoce para a adaptação de uma ópera no cinema, ao menos se desejada alguma identificação sonora com a peça original. É neste ano que Max Ophüls vem assinar o primeiro filme operístico bem sucedido da história (um nicho a contar com raros representantes em toda a sétima arte), trabalho que também permanece como uma relevante alteridade dentro de sua carreira. Assisti-lo com o conhecimento do que o realizador faria na maturidade — pois dado o absurdo esquecimento que o título sofreu, ele passou a ser procurado apenas por aqueles já familiares ao nome Ophüls — permite uma melhor compreensão não só em termos de carreira, mas até de concepção estética, de possibilidades que abracem o movimento da representação com carinhos distintos.
À menor observação de roteiro já percebemos estarem em A Noiva Vendida todo um arsenal de referências presente no filme-testamento do diretor (Lola Montès): o espetáculo circense, os picadeiros, a algazarra pública. Mas em nenhum momento é possível associar a visão de mundo nutrida em cada um destes filmes. Olhares distintos na trajetória de Ophüls, é curioso como saltam na superfície da tela as características que definem a posição de um homem diante da vida e da arte. De 1932 a 1955 todo um abismo de experiências, crenças e questionamentos que acentuam a coerente autodescoberta vivida pelo cinema de Ophüls com o correr dos tempos.
Primeiramente, a movimentação de A Noiva Vendida não seria brilhante se o fosse conseguida duas décadas depois. É natural o encantamento sentido por um jovem diretor que não se deixa calar pelas convenções de uma narrativa audiovisual (convenções estabelecidas e petrificadas em poucos anos de sonoridade), por isso encontrar o vigor com que Ophüls filma várias sequências, subvertendo o que fora potencialmente teatral, é reconhecer a inventividade de um esteta que era movido acima de tudo pela coragem. Da abertura que situa confusamente — o que é planejado e necessário — os personagens e os espaços da trama, aos últimos planos de frenética coreografia coletiva, temos aqui um cinema que precisa atropelar o tempo, impor-se como algo autônomo ao que é temporalmente externo ao quadro. Urgência que, por inúmeros cinemas, seria vencida nos anos 50.
Mas não é só na técnica que A Noiva Vendida se distancia de Lola Montès. Para além da mise en scène, e pelo que só pode ser provado através desta, há um notável deslocamento ideológico a respeito da ética artística. Nestes trabalhos de juventude, pelo menos em seus dois primeiros longas, Ophüls não encerra qualquer observação crítica (pois sim, ambos são extremamente sarcásticos) senão com uma nota de esperança, de inocente alegria. Entonação impossível para os filmes do futuro. Mesmo considerando a presença do elemento trágico como uma constante que se instaura cedo em sua obra (mais exatamente a partir do italiano A Senhora de Todos), é preciso admitir que em algum momento Ophüls adquiriu uma percepção mais amarga da humanidade, quase totalmente alheia ao A Noiva Vendida. Talvez por isso, vislumbrar sorrisos como os que abundam este filme seja tão doloroso quanto chorar em suas demais representações; por terem vindo depois na cronologia do espectador, eles já chegam pautados pela certeza de que são breves, ou mesmo impossíveis.