CURAR O REAL PELO MÍSTICO – OS FILMES DE SERGIO SILVA E JOÃO MARCOS ALMEIDA

Por Arthur Tuoto

 

A sobrevivência do cinema está hoje na capacidade do jogo que ele pode criar no interior de um sentimento geral de saturação em relação às imagens.”

Serge Daney

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Os curtas-metragens de Sergio Silva e João Marcos de Almeida não são meros trabalhos de reverência. É claro que existe, aqui, uma veneração que é implícita a uma lógica de invocação de certos imaginários cinematográficos, mas toda a assimilação entre a iconografia e o suporte acontece muito mais através de uma dinâmica performativa, uma lógica de desconstrução que busca no procedimento a sua sublimação pessoal (um pós-maneirismo bastante consciente do seu lugar), do que uma simples dialética de piscadelas. Apropria-se a historiografia fílmica brasileira e internacional não como mero objeto referencial, mas elemento de relocalização, inventário pessoal que tem nessa autoevidência um arsenal de cura, de reintegração entre sujeito e cultura. A cinefilia não busca uma definição exata de seus fantasmas, mas encontra na atemporalidade de seus mitos uma possibilidade libertária de jogo.

Jogo daneyniano, necromancia sugestiva ou simplesmente afirmação da vida (afinal, os personagens doentes curam-se justamente através de uma conclusão celebrativa), o cinema aqui é um meio – trivial e mítico na mesma medida – e não um fim. Os filmes se dão em um movimento assumidamente iconoclasta que se utiliza da dimensão cinematográfica numa ordem maleável de tirá-la de um lugar e colocá-la em outro, embaralhar as peças, misturar os referentes, bagunçar as bases de sustentação. Desorientar, mesclar, jogar. A poesia está no ato desse ritual, na sua vocação bruta, consequentemente impura e, naturalmente, na sua poderosa mística.

A vida do fósforo não é bolinho, gatinho (2014)

Não é por acaso que o mundo em que se passam Febre (2017), Minha única terra é na lua (2017) e A vida do fósforo não é bolinho, gatinho (2014) soam como uma dimensão para desencarnados. Tanto em sua abordagem espacial e dramática – um anti-naturalismo muito frontal e incisivo – como na maneira como os personagens se portam e se deslocam, é possível perceber um estado de limbo. Um transe que se relaciona constantemente com uma ambiguidade, uma contaminação. São filmes onde ninguém está muito vivo e nem muito morto. Os cenários são esse lugar de passagem, palco que funciona mais como a frágil ligação entre mundos do que espaço principal de um acontecimento. Um lugar de encontro que nunca se limita a uma contextualização específica, que parece constantemente aberto, disponível para entidades de todos os tempos e círculos.

Essa fissura no espaço-tempo que os trabalhos promovem concebe uma artificialização muito característica de seus ambientes. O âmbito doméstico mais comum se transforma em uma dimensão anacrônica, uma zona de sonho. Quando o estoniano Robert se hospeda no apartamento de Marcos, em A vida do fósforo não é bolinho, gatinho (2014), acontece uma desestabilização emocional que infecta todos os entornos daquele universo. A paixão-doença do personagem se comporta como um disparador fantástico que evidencia o lugar do lúdico a partir de uma perspectiva melancólica e saudosista. O espaço da casa vira um espaço de desolação: miragens neon tropicais de um quarto fechado e escuro. O personagem é constantemente acometido de uma solidão incurável, da saudade de uma felicidade que quiça algum dia existiu. O apartamento é muito mais um dispositivo fantástico que media esses encontros incomunicáveis, do que um espaço de consumação amorosa propriamente. Existe um tom mítico, um ensejo para grandes acontecimentos, inclusive para embates de ordem transtemporais, mas o que se fundamente, no final das contas, é essa banalidade dolorida: a efemeridade de um amor platônico, a inevitável distância entre os afetos, a morte de um ídolo pop.

A vida do fósforo não é bolinho, gatinho (2014) não celebra uma iconografia, mas constrói sua dimensão a partir do que é transitório. Uma ida ao cinema, uma música cantarolada, um maço de Hollywood. O cinema entra como procedimento libertário que é ativo nessa dissolução, que não está interessado em reerguer os mesmos monumentos, mas em se colocar em lugares muito pouco cinematográficos. A pobreza do cenário, a caricaturização das luzes e toda a abordagem bruta que o filme articula gera um tom muito desolador que se autoconfigura nesse sua natureza anti-fílmica. Afinal, qual a melhor maneira de evidenciar o cinema se não negá-lo? Godard e Sganzerla, definitivamente dos maiores cineastas que entenderam esse jogo, são evocados aqui não a partir de uma mera referência, de um elemento influenciador evidente, mas tem seu vigor desconstrutivo encarnado na própria funcionalidade do curta.

Os três curtas, aliás, compartilham dessa vocação de um encontro que nunca é consumado, que pode até ir às vias de fato sexual, mas que tendem, inevitavelmente, a isolar o seu protagonista em uma busca pessoal solitária. Em Febre (2017), único curta dos três em que Sergio e João compartilham a direção, já que nos outros a colaboração acontece em diferentes camadas de diálogos diretos ou indiretos (sempre esotéricos), isso é ainda mais evidente. Após retornar ao Brasil depois de um período no exterior, Marcos procura uma reconciliação com o país, com as pessoas e, de diferentes maneiras, com um imaginário cultural que ao mesmo tempo que soa distante, é constantemente implícito em sua formação. O filme é o mesmo. O personagem tem o mesmo nome, sua irmã é interpretada pela mesma atriz (Gilda Nomacce), ele sofre da mesma Febre. Até a figura do ídolo pop volta em uma uma relação de espelhamento sugestivo (a morte de um lá: Michael Jackson, o fim simbólico de outro aqui: Kim Gordon e Sonic Youth). Nessa espécie de continuação espiritual do curta anterior, apesar de Marcos ter tido um outro fim, ele procura pela mesma coisa. Uma constante vontade de se exceder, fugir dos mesmos lugares, ainda que preservando antigos afetos e saudades.

Febre (2017)

O filme soa como um embate entre uma alienação que quer se preservar (a ideia mítica do país, as referências motivadoras de um ideal libertário de arte) e essa vontade de extrapolar os mesmo lugares. Uma identidade que se reafirma e que também se descontenta. A angústia desses mesmos amores (os boys, os cineastas, as frutas tropicais) e, em uma mesma medida, a liberdade do desapego. Toda a busca por uma catarse que dê conta dessa revolução pessoal é encenada através de uma relação ainda mais processual com o cinema. Se em A vida do fósforo não é bolinho, gatinho (2014) o procedimento ficava mais evidente por meio de um maneirismo bruto, aqui o cinema literalmente expõe seus mecanismos. Marcos e Marcelo, em certo momento quando o primeiro vela pelo sono do outro, na cama ao som de Dolores Duran, são literalmente acoplados a uma pan circular da câmera. O plano gira sobre o próprio eixo, integrando os personagens a esse movimento, para depois abandoná-los e continuar seu deslocamento, revelando tripés de luz, fresneis e outros elementos do set. Ao fim a sequência reencontra os dois personagens, agora difusos, refletidos em uma vidraça. O procedimento não é mera referência, mas engole os protagonistas a partir de uma lógica que não segue mais as leis da física, que se desestabiliza em prol da figura da câmera, se rearranja em reverência ao suporte.

Outra vez, o cinema se desconstrói a partir de uma alusão muito pessoal (a câmera de regras próprias, a cartilha afetiva geradora de princípios formais muito particulares), e ao mesmo tempo absolutamente universal. Afinal, o que de mais clássico existe do que um plano circular registrando um casal de amantes? Os três curtas parecem seguir uma progressão muito sofitiscada e ousada nessas recomposições que se fundamentam numa transparência de processos, que são bastante autoconscientes de seus procedimentos, mas nunca domesticáveis dentro de uma perspectiva puramente metalinguística. O risco é sempre iminente, o limite entre o filme (a alusão universal) e o anti-filme (a iconoclastia de seus autores) é de um equilíbrio rigoroso, o que gera uma vitalidade muito característica.

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Minha única terra é na lua (2017)

Minha única terra é na lua (2017) é, por enquanto, o ápice desse encadeamento entre uma dimensão pessoal de seu autor – o curta é dirigido unicamente por Sergio Silva – e esse jogo cinematográfico que sublima, que cura ou tenta curar essa doença, essa febre, essa efemeridade anacrônica de não pertencimento que perpassa todas as obras. O filme é uma entrevista com Sergio, que é interpretado por Gilda Nomacce, mas que de tempos em tempos é encenado pelo próprio diretor Sergio Silva. O trabalho rejeita as alegorias anteriores e se foca em uma relação muito direta a partir desse dispositivo do confessionário em que o personagem/autor responde 36 perguntas que vão do aparentemente banal a uma exposição mais profunda de seus anseios. Configura-se uma espécie de curto-circuito tríptico a partir daquele que talvez seja o elemento dialético mais essencial do cinema: o plano e contraplano. Uma espécie de conjuração cinematográfica que, através de um alinhamento de referentes pessoais, se articula numa terapia mística. O alter ego não existe mais: Marcos é substituído por Sergio, mesmo Gilda, atriz que sempre interpretava a irmã, é parte do mesmo microcosmo individual.

O curta não precisa mais buscar referentes externos, mas se vale das questões do seu diretor dentro de uma ambiguidade que é característica dele próprio como sujeito. O jogo agora parte de uma só via. O exorcismo é, finalmente, praticado em primeira pessoa. O autor se desnuda dos maneirismos, da caracterização anti-naturalista e da artificialização espacial (que até existe nas primeiras cenas do filme, mas que se potencializa justamente na oposição realista e hesitante da não interpretação de Sergio), para dar lugar ao que de mais simples e essencial o cinema resguarda: uma conversa a dois. O que dentro da ação performática funciona muito mais como um monólogo, já que as perguntas partem de um lado só, mas a maneira como o filme se apropria da dinâmica da conversa, do bate e volta que motiva uma continuidade, gera um tom muito íntimo, uma aproximação doméstica (literalmente, já que pelo que tudo indica estamos na mesa de uma cozinha) que harmoniza ainda mais a proposta. Minha única terra é na lua (2017) abriga, sem a mediação característica dos filmes anteriores, o mote medular desse cinema: a reencenação mística como uma sentença de cura. O cinema-ritual que era praticado até aqui idealiza nessa abordagem objetiva uma ontologia própria. Um modo de estar no mundo que é desimpedido, pleno em sua irresolução e em suas crenças: os signos, os astros, o cinema.

Sergio Silva e João Marcos de Almeida confrontam a historiografia cinematográfica com mistério e adoração. Um jogo que constantemente se relaciona com um ocultismo particular, um remodelar esotérico de ícones que encontra um sentido muito novo – e inegavelmente contemporâneo – a partir de uma história universal da linguagem e do tempo em constante reescrita. O passado e a nostalgia podem soar como emblemas marcantes, mas a subversão dessas maneiras, o procedimento desses hábitos é, sem dúvida, coisa grandiosa que pertence ao futuro.

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TITANIC (1997) – UM IDEAL NEOCLÁSSICO VINTE ANOS DEPOIS

Por Arthur Tuoto

Memória espectral, o cinema é um luto magnífico, um trabalho de luto magnificado. E ele está pronto a se deixar impressionar por todas as memórias enlutadas, isto é, pelos momentos trágicos ou épicos da história. São então esses enlutamentos sucessivos, ligados à história e ao cinema, que, hoje, ‘fazem caminhar’ as personagens mais interessantes. Os corpos enxertados desses fantasmas são a matéria mesma das intrigas do cinema.

Jacques Derrida em entrevista para a Cahiers du Cinéma (abril de 2001).

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Vinte anos atrás, James Cameron fez da morte um renascimento. A partir da recriação milionária de uma tragédia, o cineasta norte-americano concebeu não apenas um dos maiores filme-eventos da história, mas relocalizou a própria historiografia daquele cinema. Uma perspectiva clássica que se focava na fundação de uma iconografia própria, que rejeitava a simples reverência ou reciclagem como atributos histriônicos e autoconscientes de uma narrativa novelesca, mas partia em busca de uma reconquista pelo que é efetivamente inocente.

Jean-Marc Lalanne, em texto sobre Titanic para a Cahiers du Cinéma em 1998, afirma que a obra de Cameron representa um ponto de inflexão do cinema americano, uma transição do seu maneirismo para um sonho neoclássico. Distante das visões apocalípticas ou irônicas de diretores como Oliver Stone e Irmãos Coen, abordagens que direta e indiretamente marcaram o imaginário estadunidente noventista e, definitivamente, longe de qualquer caricaturização oitentista, Cameron procurou, nesse luto glorificado, ressuscitar uma grandiosidade atemporal, uma primazia do contar que tem na universalidade arquetípica do amor e da morte uma perspectiva narrativa que se completa.

Perdemos essa ingenuidade? É possível encontrar, hoje, um drama fabuloso tão grandioso e referencialmente autêntico – mesmo libertário em seu jogo historiográfico – como foi Titanic em 1997? Ao mesmo tempo que o trabalho parte de uma perspectiva artesanal muito comovente nessa restituição de um sonho clássico, é evidente que ele funda essa mediação sobre uma base bastante cara ao seu autor: a tecnologia. E não estamos falando apenas da tecnologia que permitiu a reconstrução virtual do navio e de sua tragédia grandiosa, mas em como a obra assume a artificialidade como um mote dramático. O cenário idílico é recriado, da sua luz falsa alaranjada – uma filiação muito pouco solar – a assépticidade dos ambientes de um navio novo em folha. Nas externas o que brota é essa luz inautêntica – mais ilusória ainda na icônica cena do casal protagonista na ponta do navio – e nas internas, a reprodução ideal e intocável de tudo, dos objetos aos ambientes. Cameron assume aquele espaço como um estúdio magnificado. O tempo não passou aqui. É tudo novo e fresco, conservado numa ordem de simulacro, de virtual não apenas na dimensão do efeito especial, mas sintético em todos os seus entornos imaginativos. O navio é um estúdio de cinema, um sonho clássico naufragado que o diretor tenta recriar.

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Nem por isso Titanic é um obra nostálgica. Mais do que uma reverência, o que se procura é uma continuidade, uma leveza que nos aponte para aquilo que já sabemos que vai acontecer. Amor e morte se complementam a partir dessa fantasmagoria, desse espectro cinematográfico que ronda o filme, mas que nunca é exatamente incisivo em sua orientação. Uma sutileza que se reflete na maneira como Cameron leva a história, já que estamos diante de uma obra grandiloquente, mas também muito leve. Até a morte aqui é convidativa, imersa numa perspectiva de sonho, de pesadelo distante onde somos espectadores protegidos. É evidente que a construção tensional existe, mas o fim é guiado por uma delicadeza, um aconchego, uma tragédia contemplativa produzida para ser acolhida numa cadeira almofadada de cinema. O fato real é muito mais mote de fantasia, de cenário disparador de efeitos lúdicos (ainda que frontais), do que contextualização crua dos eventos. O cinema testemunha, mas remodela, recompõe a realidade a partir do mote novelesco e sedutor.

Existe um senso de imersão tecnicista, que Cameron potencializou ainda mais em Avatar (2009) com o elemento 3D, que resguarda o filme nessa elegância imperativa. O diretor parte de um arsenal técnico muito pesado justamente para nos guiar com mãos leves. As panorâmicas externas em CGI, o deslizar da steadycam, os corpos despencando em ângulos primorosos, tudo reitera um ponto de vista onipresente que testemunha aquela situação com a devida distância, com o devido balançar harmônico das ondas.Titanic é uma fábula em que autoria e aparato se unem, acima de tudo, em benefício de uma experiência de espectador. É como se tudo fosse matematicamente programado para ser o mais eficientemente assimilado, do tempo de cada olhar a iminência dramática das cenas, em uma perspectiva ao mesmo tempo hábil, afável e devastadora.

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A autoria é equilibrada por essa visão tecnológica, contemporânea em suas relações com o suporte e a imagem, mas absolutamente aberta a demandas populares, articulando-se numa dimensão que ao mesmo tempo que nunca isola a visão de seu autor, compreende a eficiência do seu produto, integra-se ao seu meio e a engrenagem mercadológica dele. Seria James Cameron o mesmo anti-autor – o artesão freelancer – que David Fincher é nos dias de hoje? Dois diretores em que o estilo fala mais sobre a exigência entretiva do que sobre uma visão individualizada do trabalho, onde a tecnologia funciona, constantemente, em prol dessa reivindicação, dessa fruição do clássico que encontra a solicitação astuta contemporânea. E se Fincher rejeita a ingenuidade – é inegável que vivemos a era das narrativas cínicas -, se ele refunda o clássico com uma acidez que é característica dos nossos tempos, o cineasta, atualmente, é um dos que melhor concilia esse abraço a evolução dos suportes – a assimilação tecnológica como mote dramático atemporal – com uma ideia de produto cinematográfico, de entregar não apenas um filme, mas um trabalho que cumpra seus desígnios industriais na cultura que pertence.

Não que Avatar (2009) não tenha dado uma continuidade digna a esse sonho neoclássico, já que ele até o deslumbra ainda mais – tanto no sentido do tecnologia como um acontecimento (o primeiro grande filme em 3d), como dessa sentença inocente do romance – mas um só filme não pode dar conta de um panorama tão extenso. É claro que existem constantes tentativas de retomar esse ideal, mas diferente de Fincher, diretores como James Gray, Christopher Nolan e Paul Thomas Anderson (para ficarmos numa tríade clássica contemporânea de intenções bastante específicas entre si) estão muito mais empenhados em uma visão individualizada e isolada, em construir a sua própria ideia de clássico partindo de uma inflexão autoral muito incisiva, do que em se integrar a uma demanda. Não é por menos que os três diretores compartilham de um gosto por uma produção grandiosa, mas que conserve a tecnologia em um campo muito mais limitado, prezando por um realismo, efeitos práticos e até uma vontade em perpetuar o suporte da película.

GAROTA EXEMPLARGarota Exemplar (2014) – David Fincher

Cameron e Fincher compartilham de uma iconoclastia quase maquiavélica. São homens que acreditam que para perpetuar alguns mitos é preciso abrir certas concessões. Não existe a romantização do processo (tão cara para Gray), mas a assimilação de uma evolução pragmática inevitável da linguagem, de uma eficiência pela fraude. O que é Titanic se não um grande circo tecnológico encenado na impessoalidade de um estúdio? A renovação vem pelas vias de suas próprias mentiras. E em Titanic, literalmente, do seu próprio ideal de morte. Ao magnificar esse luto, Cameron transforma a memória espectral de uma tragédia e de um cinema em disposição irreverente, em uma luta não pelo que é novo, mas pelo que sempre pertenceu ao presente.

Vinte anos depois, o cenário é deveras menos inocente do que o diretor de 1997 previu, mas sua base motriz tecnológica caminha a todo vapor. Para além de Fincher, cineastas como irmãs Wachowski, Steven Soderbergh, Johnnie To e Robert Zemeckis, apostam constantemente na tecnologia como catalisadora do clássico – talvez não tão empenhados em uma lógica industrial como Fincher, mas até certo ponto tradicionais em seus propósitos. Um elemento agregador de forças que ao mesmo tempo que reitera um dinamismo plástico  – até mesmo uma nova concepção de plano cinematográfico – viabiliza um controle obsessivo por cada detalhe posto em tela. O ideal de hoje é um ideal de domínio, de controle pelos processos. Um equilíbrio entre as novidades que motivam novas mediações espaciais e velhos preceitos que mantém viva a disposição de uma boa história a ser contada.

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EDITORIAL: COMO ENGANAR A MORTE

Por Arthur Tuoto

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Quando André Bazin afirmou que “o cinema ainda não foi inventado”, o crítico francês sentenciava no horizonte de um ideal realista inalcançável a impossibilidade do seu próprio objeto. Ao mesmo tempo que o cinema progride cada vez mais em relação a uma mediação  espacial realista (o som, a cor, o 3d), ele invariavelmente descaracteriza o seu suporte (a tv, o vídeo, o virtual). Ou talvez, inversamente, se configura com mais expressividade dentro de sua própria natureza heterogenia. O cinema morreu ou está simplesmente nascendo em uma perspectiva híbrida que é de sua estima propriedade?

A especificidade, ela sim, está morta. A saturação – de suportes, de linguagens, de jogos entre os mais variados elementos – estabelece uma relação antagônica que se alimenta das próprias crenças. Se por um lado a iconoclastia e a hibridização dão o tom de uma infindável dimensão de obras que tem na desconstrução o seu mote de morte, de reestruturação urgente, de relocalização obsessiva, por outro “o classicismo pertence ao futuro”. Em uma mesma medida que Godard usa a tecnologia – a maior evidência dessa progressão em perspectiva ao mito baziniano – para desvirginar o cinema de seus suportes, livrá-lo de um estado intocável e situá-lo numa dimensão que é doméstica e libertária, que é subversiva pelos próprios meios, James Cameron tem nesses mesmos avanços a oportunidade perfeita para reiterar a universalidade do clássico, o ideal blockbuster anti-doméstico que encontra no gigantismo de uma dramaticidade ancestral a sua comoção atemporal. Godard e Cameron são mitos que se completam dentro da unidade de duas trajetórias opostas que buscam a mesma coisa: enganar a morte.

O cinema articula, em plena e constante jornada, antigas e novas eras tecnicistas que se depositam ao longo de um século e pouco. Perdemos a especificidade, mas ganhamos uma ontologia tão variada que mal cabe em si. Uma maleabilidade de universos que, hoje, produz a sua própria realidade, concebe a sua própria experiência imersiva que tem na descaracterização variada do seu suporte uma reinvenção imprescindível.

Existem aqueles que buscam um retorno, um resgate clássico que, diferente de Cameron, encontram em um purismo das velhas formas uma relação artesanal com o seu objeto. O caso é que a busca idealista não deixa de ser a mesma: ainda se salva pela aparência. Seja Griffith, Godard ou um estatuário egípcio, nossa natureza de eternizar é uma natureza do engano, de fraudar o tempo e forjar a vida pela imagem. Essa falsa polarização (a tecnologia e o artesanal)  busca justamente atender a variações de um mesmo mito inalcançável. A invenção do cinema está na sua constante reinvenção, na sua assimilação divergente. O que buscamos, com essa edição da Multiplot, é pensar e repensar os limites dessa falsa morte. Um fim que pode até ser concreto em relação a uma perspectiva tecnicista (os suportes, os meios), mas que encontra na utopia da sua própria impossibilidade (a sentença baziniana) um incessante itinerário de recomeços.

Enfim, não é precisa tomar um lado quando todos os mestres buscam o mesmo santo graal. Entre rituais de reverência, destruição de ícones e conversas com os mortos, fraudar a tragédia desse fim tem se tornado nossa maior especialidade. Reconhecemos a iminência dessa sorte de recomeços e por isso mesmo nosso trabalho aqui é o de evidenciar – celebrar – uma paisagem radical. A renovação tanto a partir de uma intervenção direta do que é estabelecido, como de um retorno reverente, de um resgate do passado que sempre pertenceu ao futuro (o clássico, outra vez). Entre vencedores e vencidos, deixar o cinema morrer é deixar essa transformação acontecer.  Uma operação que tem na dimensão histórica não apenas a apreensão simbólica do fim dessas eras, mas a perspectiva próspera de uma constante reescrita.

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Destruir, Reconstruir – Resident Evil: Retribution (2012)

Por Arthur Tuoto

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Shopping (1994) de Paul W.S Anderson

O espaço da cena, no cinema de Paul W.S. Anderson, é um espaço de controle. Desde filmes como “Shopping” (1994) e “Event Horizon” (1997) é possível reconhecer o estúdio como uma espécie de zona mística de regras próprias. A Londres distópica submissa a uma ordem urbana de propriedade e consumismo no primeiro, a nave espacial stalkeriana de uma vocação diretamente gore no segundo. Alegorias científicas e aproximações pós-apocalípticas à parte, essa veneração pela hiperconstrução de um espaço, acaba, invariavelmente, estabelecendo uma dinâmica formal bastante dominadora. Mas o controle, aqui, está longe de engessar ou inflexibilizar as possibilidades narrativas da obra. Pelo contrário, os filmes de Paul W.S. Anderson são como playgrounds engenhosos onde todo tipo de imaginário fantasioso – de uma adaptação steampunk de “Os Três Mosqueteiros” ao barroquismo abstrato da queda de Pompeia – parece possível. O gosto pelo simulacro não significa um desejo pela fiscalização de certos modos, pelo controle como uma dimensão daquilo que é essencialmente estável, mas sim por uma possibilidade de invenção, por um laboratório arquetipal independente. Cada filme é um ecossistema próprio, munido de simbologias e mandamentos plásticos autônomos. Uma realidade à parte que, assim como uma fauna e flora particular, demanda os seus próprios modos de sobrevivência. “Resident Evil: Retribution” não representa apenas o ápice desse modelo processual; é o filme que, devidamente, melhor escancara o seu método.

E se estamos diante de um filme de método, estamos diante de um filme conceitual. O quinto trabalho de uma franquia de pleno sucesso comercial lança mão tanto de um apelo industrial evidente em seu arsenal de violência explosiva, como de elementos claramente subversivos em sua estrutura autoreferencial. Ao mesmo tempo que assistimos a um filme que tem no fluxo de uma ação hiper-real constante o seu mote prático, essa mesma hiperconstrução, esse mesmo espaço do estúdio passivo de intervenções gráficas desmedidas, vai se desfazendo e se renovando, vai passando por temáticas e abordagens distintas a medida que o filme vai evoluindo.

Ora, não estaríamos, finalmente, diante de um adaptação de video game que de fato intui o seu objeto? Mais do que se focar na dinâmica cinematográfica natural da jornada de um jogo, “Resident Evil: Retribution” é um filme sobre o gameplay em si. A centralização em uma personagem motivo vai além de uma demanda dramática, o filme existe para conceber novos obstáculos, novas fases, novas realidades a partir um elemento temático chave: a sobrevivência. Afinal, quantas vidas possui nossa personagem?

Já no começo do filme o diretor propõe uma imagem de ressurreição. Após sair derrotada do combate final do filme anterior  – “Resident Evil: Afterlife” (2010) -, Alice afunda de braços abertos no oceano para, logo depois, acordar em uma cama, com uma família, com um cabelo diferente. Aonde estamos? Em uma realidade doméstica alternativa onde não apenas personagens do passado voltam em relações familiares distintas, mas a exata mesma ameaça continua: zumbis. Essa mudança de perspectiva funciona como uma espécie de falso reset onde somos transportados para um universo que remete a “Fim dos Tempos”, de Shyamalan: o filme como uma alegoria luminosa dos próprios elementos. Nessa falsa história familiar que abre o filme, a ameaça dos zumbis contrasta com um ambiente artificial, asséptico, cosmético. Tudo é muito iluminado, é frontal. Estamos em um filme de terror às avessas?  Não, apenas  em um simulacro. Dessa vez, dentro da própria obra. Ou seja, já de início fica muito claro que o controle não será apenas a forma do filme, mas também o seu objeto.

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Personagem derrotada: A ressurreição simbólica como um mote do gameplay

Neste filme de simulacros sobre simulacros, o espaço do estúdio, tão caro ao diretor em todos os seus filmes, acaba ganhando uma dinâmica muito mais plural. A hiperconstrução, agora, não precisa mais passar pela dramatização assombrosa de “Event Horizon” (1997), pela reconstituição história de “Pompeia” (2014), ela pode, simplesmente, se dar ao prazer de invocar os elementos que deseja. Não é preciso uma justificativa ou uma demanda narrativa, tudo é permitido. O filme ganha uma maleabilidade icônica que, consequentemente, gera uma atemporalidade implícita em toda a sua caracterização. De cenários futuristas a perseguições old school, de zumbis orientais a motoqueiros russos sem cabeça. Um laboratório de práticas que tem prazer em percorrer por uma vasta diversidade de dinâmicas do cinema de ação. Mais do que isso, que faz dessa diversidade, dessa relação elementar livre de amarras dramáticas, tanto o seu instrumento de comentário icônico como de pragmatismo recreativo.

Dentro desse esquema de representações, os componentes básicos da dramaturgia podem até ganhar uma qualidade essencialmente ambígua, tanto em relação ao espaço físico (cada cenário é uma simulação assumida), como ao drama em si (o vínculo dramático mais forte do filme é entre Alice e uma criança que não é sua filha, mas apenas um clone de uma das simulações), mas ao mesmo tempo que o diretor estabelece essa relação dúbia com o seu meio, a todo momento ele venera uma qualidade muito palpável da cena. A simulação inventa uma realidade, mas suas consequências são materialmente efetivas. Frente a isso, Anderson concebe uma dinâmica de destruição e renovação bastante particular.

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“It’s just like a camera. Point and shoot.” É o que Alice diz ao ensinar uma personagem a usar uma arma. “É como uma câmera”: o extermínio é compreendido como um exercício elementar de cinema. Existe uma relação muito clara entre essa hiper-realidade ambígua do espaço do estúdio e a validação da violência como um artifício de aniquilamento, mas, também, de renovação. A violência não é uma via de catarse. Não estamos em um filme de Quentin Tarantino. O sangue, no cinema de Paul W. S. Anderson, não é um elemento de purificação, é muito mais um meio, um artifício que compactua com suas alegorias humanistas. “Os Três Mosqueteiros” mal derruba uma gota.  A violência é efetiva, mas ela está ali, principalmente, como uma manifestação renovadora.

É justamente nesse dinâmica renovadora que repousa a matéria anti-cínica do filme, o seu mote essencialmente shyamaliano, por assim dizer. O mundo, mesmo chegando a um fim, ainda merece uma chance. Os personagens estão, a todo momento, disposto a morrer um pelo outro. Alice arrisca a própria vida para salvar uma criança que não passa de um clone, de uma invenção de um computador. É como se, não tendo aonde se agarrar, todos criassem elos com o que ou com quem está mais próximo. Em um planeta em plena destruição, em um filme onde tudo é simulação, parece que a única coisa que de fato interessa é o fator humano. Mesmo que, novamente, esse fator também não passe de uma miragem, de uma ilusão aparente que retome um desejo materno. Nada mais natural do que, em um projeto cinematográfico sobre a sobrevivência, o elemento catalisador da ação seja a esperança, a possibilidade de reconstrução como um mote dramático agregador.

Nesse sentido existe mesmo uma ingenuidade possibilitadora dentro das relações dramáticas da obra. Uma frontalidade que, conciliada ao seu tom de filme de ação experimental, de método pelo método, promove o filme de Anderson a esse exemplo mor do vulgar auteurism. E, de fato, se por um lado o filme possui uma relação muito concreta com a sua iconografia, uma recusa por metáforas e uma relação alegórica direta com o seu universo – um zumbi é um zumbi, uma ameaça à vida, nada mais e nada menos – por outro concebe-se a inevitável conceitualização dessa jornada. Ou seja, existe uma relação vulgar, comum, um mote recreativo assumidamente comercial, como também toda uma dinâmica processual que se debruça sobre elementos de identidade e representação.

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Mesmo a relação do filme com a caracterização do seu espaço urbano subverte elementos de uma certa representação cinematográfica em voga, em especial no seu mote destrutivo de filme catástrofe. A obra assume essa impessoalidade da metrópole como um objeto estrutural. O estúdio cinematográfico funciona como um estúdio ficcional mas também, sempre, artificial. Uma cidade surge e é destruída em poucos minutos. Não existe a dramatização do espaço. Não existem figurantes morrendo. Não existe dano colateral, já que cada vida é preciosa. Até mesmo a caracterização da ex-União Soviética como o único cenário real dentro da ficção parte de uma dinâmica artificial. Alice e seus comparsas destroem todas as simulações do filme para embarcar em uma luta final na superfície, perante a realidade, perante o que restou de submarinos e instalações soviéticas em um cenário que, ainda assim, soa tão elaborado como os cenários simulados no subsolo. Os artefatos, o símbolo do foice e do martelo, a neve. Tudo remete a uma distopia distante, a uma fábula política perdida no tempo.

Muito oportunamente essa realidade que ainda soa como simulação, essa neve com cara de estúdio, parece mais do que apropriada como cenário desse embate final. Longe da grandiosidade das fases já percorridos, das explosões cromáticas e dos longos corredores de profundidade de campo infinita, só resta uma relação muito elementar com o corpo e com a luta, com uma dinâmica que assegura a ação não só dentro da sua prática de gênero, de filme de ação, mas como a potência elementar do cinema, como o gesto isolado dentro desse cenário branco, sintético. Um cenário que, outra vez, reitera a ideia do estúdio como um lugar ilhado, de atenção a dinâmicas muito essenciais da imagem e do movimento, do corpo que briga, que cai e se levanta, que insiste em continuar lutando.   A ação, no cinema de Paul W. S. Anderson, parece ser tão elementar quanto é possível. Mesmo com toda a sua orquestração de flerte maneirista, seus slow-motions e seu ballet de corpos e gestos, toda intenção é assertiva, é direta, é executada com um destino certo. O aniquilamento não é a esmo, ele tem um propósito, ele derruba para reerguer, ele destrói para reconstruir. Lutar, afinal, é um ato de resistência.

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Thom Andersen – Cinefilia Idealista

Por Arthur Tuoto

Se hoje o filme ensaio é uma das modalidades cinematográficos mais em voga, seja por uma certa seara subjetiva do documentário contemporâneo ou pela popularização online de análises audiovisuais com trabalhos como os de Tony Zhou ou os produzidos pelo portal Fandor, o gênero definitivamente encontra um dos seus ápices discursivos mais interessantes na obra de Thom Andersen.

Diferente de uma subjetivação que remete a abordagens mais poéticas como as de Chris Marker, que tem em toda uma livre associação de ideias a performatividade lírica da sua narrativa ensaísta, ou mais cerebrais como as de Jean-Luc Godard, talvez o supra-sumo do gênero, os ensaios audiovisuais de Andersen encontram um caminho onde o que está em jogo é muito mais um trabalho analítico, uma radiografia crítica absolutamente bem fundada, do que exatamente uma concepção mais deambulante.

Se formos pensar em alguma aproximação mais direta, o trabalho de Andersen se alia muito bem ao de Mark Rappaport, cineasta experimental que na década de 90 realizou dois dos maiores marcos do filme ensaio (Rock Hudson’s Home Movies, de 1992, e From the Journals of Jean Seberg, de 1995) E que, assim como Andersen, parte de uma espécie de cinefilia problematizadora para ir refletindo sobre toda uma dinâmica de opressão implícita não só no mecanismo da indústria cinematográfica, mas na própria construção de sua base icônica.

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Los Angeles Plays Itself (2003)

É claro que mesmo dentro dessa dinâmica de análise um pouco mais rigorosa, existe um teor autoral bastante claro no trabalho de Andersen. E talvez seja justamente esse o ponto de equilíbrio mais curioso da carreira do norte-americano. Ao mesmo tempo que o diretor possui um tino crítico invejável, uma vocação reflexiva que vai muito além de uma simples análise formalista ou de uma mera contextualização histórica bem informada, Andersen é dono de um estilo muito próprio. Mesmo dentro desse formato do ensaio crítico, o ensaio que, em alguns momentos, pode até beirar o academicismo, Andersen consegue partir de reflexões absolutamente pessoais e conciliar todo um apreço reflexivo muito delicado em suas análises.

Já na introdução de Los Angeles Plays Itself (2003), talvez sua obra mais complexa, a narração denota um feitio que nunca irá se limitar a um simples diagnóstico pré-concebido, mas que, pelo contrário, vai se debruçar sobre uma arqueologia fílmica muito pessoal, uma cinefilia em sua definição mais genuína. No decorrer do filme, durante as análises das obras que tem como Los Angeles o seu assunto ou o seu pano de fundo, e consequentemente a sua deploração iconográfica impessoal, esse cinefilia idealista de Andersen, ainda que muito rigorosa em seu tino obsessivo, se deixa levar por reflexões pessoais e juízos individuais que enriquecem a experiência da análise através de um horizonte muito íntimo.

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Red Hollywood (1996)

Talvez a principal qualidade de Los Angeles Plays Itself é ser um filme que, mesmo se focando nas reflexões de Andersen sobre a abordagem hollywoodiana na cidade em que o próprio vive, acaba se revelando um filme inevitavelmente universal. Seja por um certo escancaro ideológico que reflete toda uma política urbana opressiva comum a qualquer cidade contemporânea (E que tem em Chinatown [1974] e Who Framed Roger Rabbit [1988] excelentes paradigmas que só se perpetuam). Seja pela própria noção de marginalização que o filme denuncia ao tratar de cineastas como Haile Gerima, Charles Burnett e Billy Woodberry. Artistas que tem na abordagem social uma autenticidade única que contrasta com a impessoalidade de um cinema industrial. Ou seja, o filme se dá nesse trajeto que parte de observações específicas ao evidenciar elementos de opressão e resistência, explícitos ou implícitos naquelas obras, mas que conduz a um pensamento universal de cinema e, invariavelmente, de história.

Essa ideia de uma cinefilia idealista, uma cinefilia que ao mesmo tempo que parte de um carinho pessoal pelo cinema consegue também enxergar uma problematização implícita, que intui os filmes não pelo que eles dogmaticamente representam, mas por tudo o que eles ainda podem ser, é igualmente evidente em filmes como Red Hollywood (1996) e The Thoughts That Once We Had (2015).

Ao analisar os filmes realizados por artistas e profissionais que teriam alguma ligação ou simpatia pelo partido comunista, “Red Hollywood” constrói não só uma espécie de resgate necessário de várias obras essenciais, mas concebe toda uma dinâmica de análise muito delicada ao apontar todo tipo de sutileza oculta naqueles filmes. Uma sutileza que, uma vez em prol de um discurso político subentendido, carrega também uma acuidade cinematográfica muito própria.

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The Thoughts That Once We Had (2015)

The Thoughts That Once We Had, por enquanto o longa-metragem mais recente de Andersen, pode até partir de uma premissa um pouco acadêmica, apontando em certos filmes algumas correlações diretas com conceitos deleuzianos, mas, com o passar dos minutos, o longa vai se revelando um trabalho bastante livre e, principalmente, guiado não só pelas concepções do filósofo francês, mas, novamente, por um fascínio cinematográfico positivamente ingênuo.

É um filme que não deixa de assumir uma espécie de natureza irregular, uma natureza que em um primeiro momento até parte dessa análise ultra teórica em virtude da aproximação deleuziana, mas que, em algum sentido, acaba seguindo um caminho quase que oposto, um caminho guiado pelo juízo pessoal como a elucidação de um encantamento muito legítimo. Como nos outros filmes de Andersen, existe essa ambiguidade entre a análise histórica e a correlação pessoal como uma revelação reflexiva, essa aproximação temática que acaba enveredando para uma abordagem passional e, inevitavelmente, idealista.

Afirmar que os filmes de Thom Andersen são críticas audiovisuais, aulas de história ou reflexões cinéfilas nunca será o suficiente para definir o tamanho de sua contribuição como articulador de toda uma cultura fílmica. Se por um lado seus filmes partem de um didatismo em sua interpelação reflexiva, por outro são obras que carregam uma índole visionária bastante evidente. Uma vocação sonhadora que busca não só compreender os filmes, mas que almeja, também, assimilar o mundo.

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Carol (Todd Haynes, 2015)

Por Arthur Tuoto

Carol é, acima de tudo, uma obra de reverência. Um filme que poderia soar como um simples exercício de mediação (a atualização sirkiana de Far from Heaven via uma atualização formal de Brief Encounter), mas que se transforma em um ritual de renovação, um ritual de gestos, sons e imagens que invoca uma força encantatória implícita em toda uma tradição cinematográfica. Tal como um místico da forma, Haynes, aqui, não só reverencia seus ancestrais mais poderosos, mas de fato renova toda uma alquimia do aparato nessa apropriação.

Mesmo partindo desse mote do culto, desse mote da reverência como uma força motriz do drama e da mise-en-scène, os elementos mais básicos de Carol não deixam de ser assumidamente contemporâneos. Seja a fotografia de Ed Lachman, que abusa da distância focal, seja a trilha sonora ultra evocativa de Carter Burwell, sempre complexa em suas camadas instrumentais, seja nas incríveis fusões da montagem de Affonso Gonçalves, beirando o abstrato em diversos momentos.

Carol (2015) e Brief Encounter (1945): Renovações formais em prol de uma mitologia dos gestos.
Brief Encounter (1945) e Carol (2015): Renovações formais em prol de uma mitologia dos gestos.

O filme pode até partir dessa sentença inicial de Brief Encounter, especialmente dessa mitologia de gestos e toques que o filme de David Lean venera (a sugestão implícita no mais mínimo contato), mas, desde seus primeiros minutos, fica muito claro que Carol está interessado em construir toda uma nova dimensão de texturas visuais e sonoras: o nascimento de um sentimento que gera uma dissonância sempre evidente ao aparato. Um pouco como se a impalpabilidade dessa paixão entre as duas protagonistas refletisse no espaço entre aqueles corpos. E, nisso, toda a variação focal da fotografia, os closes instáveis, as texturas manchadas e a luz estourada, surgem quase como um processo de desfiguração desse espaço em prol desse sentimento motriz. Como se, em prol desse encontro, todo o resto fosse aos poucos se desfazendo: a luz de um túnel, as mãos que dirigem um automóvel, o reflexo em um retrovisor.

A variação focal que evidencia a impalpabilidade de um encontro.
A variação focal que evidencia a impalpabilidade de um encontro.

Nesse sentido, o filme não deixa de colocar à prova a teoria do personagem que assiste ao mesmo filme de Billy Wilder diversas vezes, mapeando a relação ambígua entre o que os personagens de Sunset Boulevard falam e como eles realmente se sentem. Nesse jogo de aproximação entre percepção sentimental e percepção cognitiva de Carol, o poder da ideia não é simples sugestão, mas ele de fato transborda na tela. Aquilo que se sente não é apenas implícito, mas fica evidente na textura cromática e sonora da obra. O próprio uso de fusões no filme evidencia essa desfiguração do espaço, esse encontro que inaugura uma nova dimensão que precisa ser evidenciada cinematograficamente. Ou seja, o que em Brief Encounter era implícito em uma decupagem polida, ainda que se arriscando em algumas trucagens, em “Carol” rebenta diante dos olhos, reluz em seus objetos e em seu espaço de cena sem muitas concessões.

Talvez o grande desafio de Haynes tenha sido manter essa abertura estilizada, essa vocação assumidamente maneirista e, ainda assim, preservar uma elegância que é da natureza dessa proposta. A atuação de Cate Blanchett e Rooney Mara foi mais do que indispensável nesse trajeto, já que as duas atrizes intuem muito bem esse jogo de forças entre um sentimento épico e um contanto aparente. Uma dinâmica que se faz perceber através do mais prudente dos gestos, da mais cautelosa das expressões,  ao mesmo tempo que preserva um charme implícito, um encanto constante, manifesta um magnetismo, uma dimensão quase mística entre corpo, matéria e luz. Existe, portanto, toda uma coreografia entre ato e intenção, ação e sugestão, que só reitera essa ambiguidade entre a efemeridade do encontro e seu consequente efeito imponente.

A fusão que supera o poder da sugestão: o aparato a serviço de uma nova dimensão cinematográfica.
A fusão que supera o poder da sugestão: o aparato a serviço de uma nova dimensão cinematográfica.

Carol é, no fim, das contas, um belo exemplo onde a autoconsciência cinematográfica não está ali apenas para se exibir ou desfilar suas proezas acadêmicas, mas de fato funciona a serviço de um franco projeto de atualização. Até porque mesmo assumindo esse formalismo maneirista, o filme nunca se fecha nessa abordagem. A última cena talvez seja a prova final dessa renovação tanto no sentido de trair a tragédia iminente de Brief Encounter (se lá o encontro era uma utopia, um ideal inalcançável, aqui ele é a possibilidade concreta de uma realização) como de trair um formalismo reverenciado até ali. Quando Therese começa a procurar por Carol no restaurante, e o registro formal se transforma nesse mundo flutuante da câmera na mão, deambulando sobre aqueles corpos e sobre aquele espaço, é um pouco como se Haynes se abrisse não só para um outro cinema, livre de um possível formalismo acadêmico, mas para uma outra perspectiva de mundo político onde não só existe a possibilidade de uma liberdade da forma, mas de um amor incondicional entre duas mulheres.

 

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Os Oito Odiados (Quentin Tarantino, 2015)

Por Arthur Tuoto

É inegável que os últimos filmes de Quentin Tarantino retratam muito bem uma contextualização política e racial das mais interessantes e provocativas. O deslocamento caricato de uma circunstância em prol da bruta evidência da opressão, uma abordagem pulp problematizadora que sabe muito bem reconhecer alguns signos históricos em toda a sua proposta alegórica. Uma aproximação que, em seus dois últimos longas, parece ter encontrado um equilíbrio muito bem dosado entre elemento político histórico e dinâmica gráfica de cena.

Talvez o grande problema de The Hateful Eight não seja exatamente reconhecer essa abordagem como uma medida de praxe, mas justamente se fechar nela como um modelo, ou talvez até como uma espécie de fórmula limitadora. Já que, em sua pura essência dramática, The Hateful Eight é um filme que não está tão interessado em se renovar ao longo dos minutos, pelo menos não da mesma maneira que Django Unchained e Inglourious Basterds estavam.

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Depois do primeiro ato, quando Tarantino de fato cria um subtexto instigante e lança mão dessa contextualização muito bem situada (a viagem com os personagens de Kurt Russell, Samuel L. Jackson e Jennifer Jason Leigh ainda é a melhor coisa do filme), The Hateful Eight entra em um estado que beira o acomodado. Quando o filme se fecha no ambiente do saloon, com a apresentação de novos personagens e suas mil insinuações na construção de cada um deles, ele logo parece um pouco refém desse desfile de brutalidades que aqui soa muito mais submisso a um certo modelo de frases de efeito e elementos gráficos jocosos, do que exatamente dono de um elemento dinamizador próprio.  É um pouco como se o filme, ao se ver diante de um certo esvaziamento dramático do seu autor, consequentemente se transformasse em uma caricatura dele mesmo, desse modelo cheio de anseios por construções mitológicas mas que, agora, está relativamente longe de concretizar tudo o que pretende. É óbvio que o plot à Agatha Christie rende ótimos momentos, tanto de tensão dramática como de atmosfera política reveladora pós guerra da secessão, especialmente em suas desconfianças implícitas, mas tudo soa muito mais como um exercício derivativo do que uma obra de potência própria.

A personagem de Jennifer Jason Leigh talvez seja a evidência mais concreta desse fracasso, já que toda a jornada de Daisy, no lugar de um propósito dramático mais específico ou simbólico, acaba caindo em um movimento simplesmente sádico. Toda a reiteração da tortura aqui soa muito mais como um esporte, um exercício à Funny Games e Paixão de Cristo, do que exatamente uma situação de denúncia ou de proposta narrativa independente. É quase como se o único propósito da personagem fosse esse de ser socada constantemente em um misto de prazer sádico e elemento cômico agregador, já que a risada da audiência na sala de cinema parece sempre inevitável nesses momentos. Pode-se até argumentar que existe uma conotação de denúncia ou contextualização histórica impiedosa nesse processo todo, mas o filme parece que está muito mais interessado em vibrar com essa vocação da personagem para saco de pancadas, do que exatamente em situar uma marginalização simbólica.

Existe, portanto, em The Hateful Eight, uma clara despolitização gráfica do cinema de Tarantino, uma despolitização em que a violência entra mais como um desserviço onde a plateia vibra muito mais com os socos na cara de uma personagem, e nunca se redime dessa glorificação coletiva, do que com um elemento de contemplação de propósito e força, como havia em seus últimos filmes. O que era catarse, agora é um entusiasmo cínico; o que era político, se perdeu em um banho de sangue presunçoso.

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Steve Jobs (Danny Boyle, 2015)

Por Arthur Tuoto

Steve Jobs é um filme brega, um filme acima do tom, um filme teatral não no sentido de honrar uma certa sacralização do texto, mas teatral no sentido de se deixar levar por todo um histrionismo de gestos, palavras e andanças. E talvez a subversão indireta de Boyle venha justamente disso, dessa desmistificação over do texto e do espaço, dessa abordagem que recusa se transformar em um subproduto fincheriano (como talvez era de se esperar, nos dias de hoje, de um roteiro de Sorkin), mas se abre para um mundo de alegorias dramáticas e embates caricatos.

É curioso como o próprio esquema do roteiro de Sorkin se adapta muito bem a esse tom mais alegórico de Boyle, um esquema que abusa dos bastidores e, de alguma forma, tenta deflagrar a fábula pública através da fábula privada. Ao recusar esse realismo em sua aproximação, o filme trata seus personagens quase que como cosplays de personagens reais, espécies de mimeses míticas que se debatem constantemente dentro de um ciclo dramático retórico, porém prazeroso. Um determinismo narrativo mais do que assumido dentro dessa dinâmica ultra fechada e quase laboratorial na construção de suas personas.

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Até porque mesmo que toda essa métrica dos diálogos de Sorkin, ao longo da sua carreira, foi se tornando quase mecânica (ou, em algum sentido, nunca deixou de ser), ela ainda é bem funcional ao destilar esse prazer que está muito mais em ouvir, em acompanhar esse ritmo, esse atropelamento, do que em exatamente entregar uma informação concreta. O que, de alguma forma, não deixa de subverter a própria ideia de um bom roteiro: a retórica é o conflito em si.

E do que mais é feita a persona de Steve Jobs do que pura retórica? Os três produtos lançados por Jobs que definem os três momentos no filme e, sempre, o mesmo homem, evidenciam esse fetiche conceitual de um contexto (a marca como uma dimensão de grife, de objeto artístico especulativo, de pura alegoria em suas apresentações), que se revela, no final das contas, o fetiche conceitual de homem. Nunca um programador, um engenheiro ou um designer, mas sim um maestro retórico: o farsante conceitual.

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Top Girl ou a Deformação Profissional (Tatjana Turanskyj, 2014)

Por Arthur Tuoto

Top Girl ou a Deformação Profissional é um filme muito mais sobre os entornos de uma certa política do mercado do sexo do que exatamente um trabalho que se debruça sobre o ato sexual em si. Se o filme de Tatjana Turanskyj remete, em algum sentindo, a Ninfomaníaca (2013) ou até a  Cinquenta Tons de Cinza (2015), é muito mais por uma aparente aproximação temática que no fim das contas nem é tão próxima assim. Claro que, invariavelmente, o filme acaba refletindo sobre o ato em si, sobre a performatividade do ato sexual que acaba evidenciando algumas ambiguidades implícitas em qualquer relação íntima. Mas fica bem claro, desde o início, que o que está em jogo aqui, é, acima de tudo, uma problematização social. E, nesse sentido, o filme é sempre muito direto ao elaborar suas questões.

Tatjana Turanskyj parte de uma abordagem essencialmente doméstica para situar o drama de Helena, uma mãe solteira e acompanhante na indústria do sexo. É revelador como o jogo de intimidades que a câmera articula com o espaço vai muito além do ambiente sexual em si. As cenas de Helena com sua filha, ou com sua mãe, conseguem intuir toda uma delicadeza muito fraternal, uma delicadeza que tem nesse laço matriarcal uma base afetiva muito sólida . Um dos pontos fortes do filme é como a diretora situa toda uma geração de mulheres dentro de um círculo familiar pequeno, cada uma com suas particularidades, desejos e incertezas. Sempre com um apreço pela liberdade, especialmente nas figuras de Helena e da sua mãe.

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Desse jogo de intimidades domésticas, que é sempre muito oportuno, nasce uma ambiguidade entre esse espaço que se habita e o espaço que se transa. A relação de Helena com o homem que teoricamente paga pelo apartamento que ela vive é crucial nesse sentido. As sujeiras que ficam, os rastros dos encontros sexuais. Tudo vai se contaminando nesse ambiente caseiro, esse lar que se confunde com ambiente de tralho. Mesmo o fato do filme ser composto geralmente por planos mais próximos, o que cria uma sensação genérica em relação aos ambientes, já que em alguns momentos nem sabemos exatamente aonde estamos, reitera essa política ambígua do espaço. Como se nenhum ambiente ali fosse exatamente sagrado, tudo é uma propriedade. O caminho natural das coisas é a objetificação, daí nasce a resistência.

Além dessa dinâmica da intimidade nos espaços internos, muito da relação cênica do filme de  Turanskyj nasce de uma nítida tradição com a performance. Mesmo nas cenas mais comuns e cotidianas, existe uma marcação muito clara, uma relação entre câmera e corpo que alia a funcionalidade dramática da mise-en-scène com um posicionamento corporal mais alegórico e simbólico. Seja na dinâmica um pouco teatral das colegas de Helena no escritório da agência, seja nas cenas em que a relação sexual e a dinâmica de dominação são o foco. No que diz respeito as fantasias masculinas isso é ainda mais claro, já que mesmo o mais dos inocentes gestos, nesse caso, pode esconder uma agressividade que é implícita no gênero. Ou implícita já dentro de uma tradição interpessoal entre homem e mulher.

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Toda a sequência final do filme, quando os homens armados saem em busca da mulheres nuas,  como caçadores em busca de suas presas, talvez seja uma das cenas mais diretamente sugestivas nesse sentido. Uma caçada simbólica que concilia muito bem o poder alegórico da performance com uma tensão francamente cinematográfica, quase um cena de guerra. E é justamente aqui onde o filme melhor articula essa sua vocação problematizadora de gênero. A dinâmica pode até soar um pouco óbvia, mas é encenada com tamanha impiedade que ganha uma força indiscutível.

É importante lembrar que mesmo dentro desse flerte mais alegórico, o filme não está nenhum pouco interessado em  romantizar a prostituição ou o BDSM.  Pelo contrário, as cena de dominação são quase desoladoras. A profissional do sexo é retratada como uma assalariada, que além de sofrer com todos os problemas de praxe de qualquer trabalhador, precisa tolerar uma série de questões específicas da sua profissão. A cena final, após a caçada, quando Helena veste uma roupa mística preta, não deixar de ser como um luto simbólico dessa problematização. Uma reverência que nunca é resignativa, mas de uma constante obstinação.

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Blackhat (Michael Mann, 2015)

Por Arthur Tuoto

A tônica política do cinema de Michael Mann está quase sempre diretamente ligada a uma subversão do espaço e a uma redefinição de um senso de propriedade, a um desprezo muito evidente pela institucionalização domesticável do indivíduo frente um estado totalizador por natureza. Se Thief (1981) invoca o roubo como uma ação direta contra a mais-valia, com um ladrão que se recusa a trabalhar sob uma relação de classe e é constantemente marginalizado por todas as instituições que recorre, em Public Enemies (2009) temos uma semelhante consciência social quase anarquista nas ações de John Dillinger: a subversão que, ainda que brote do gesto criminoso, transforma a ação de roubar bancos em um ato humanista. Se Heat (1995) é um filme sobre o espaço público, sobre a clara subversão desse espaço através de um constante fogo cruzado nas ruas de Los Angeles, onde o possível dano colateral são os próprios civis norte-americanos, Manhunter (1986) é um filme sobre o espaço privado, o espaço íntimo, a propriedade em sua fisicalidade mais clara, visto a maneira com que o filme se apropria do gosto do assassino por ambientes domésticos, pela desconstrução simbólica desse ambiente. Sem falar em Miami Vice (2006), onde os personagens vão sacrificando a própria individualidade em prol da instituição policial, vão sendo absorvidos por um sistema que é intrinsecamente contra o bem estar do indivíduo e em algum sentido até venera uma objetificação profissional. Ou seja, o que fica sempre muito evidente ,no cinema de Mann, é essa clara relação entre indivíduo e espaço que, em vários sentidos, é a projeção de uma dinâmica bastante complexa entre cidadão e instituição.

Closes assimétricos em prol de um horizonte visível, porém desfocado. O indivíduo é sempre a chave do espaço.
Closes assimétricos em prol de um horizonte visível, porém desfocado. O indivíduo é sempre a chave do espaço.

Sendo assim, que situação mais utópica do que uma em que um simples indivíduo, munido de um computador, é capaz de revirar instituições inteiras? É capaz de recontextualizar dinâmicas espaciais inimagináveis? Um pequeno gesto individual que gera um efeito coletivo catastrófico: o toque na tecla enter que explode um reator nuclear, o comando em um teclado que desestabiliza todo o mercado financeiro. Em Blackhat (2015), mais do que nunca, temos a revanche alegórica e concreta desse indivíduo, agora munido de uma dimensão tecnológica, de um espaço que agora é virtual e, por isso mesmo, infinitamente possibilitador em sua vocação criminosa.

A própria formação do hacker aqui, mesmo o hacker “do bem”, não faz questão de esconder essa aspiração anti-institucionalizadora. Hathaway, sobre a vida na prisão, afirma: “I do my own time, not the institutions”. Um homem que literalmente se programa, se dedica tanto a mente como ao corpo, sempre em busca de uma independência intelectual, de uma liberdade que, mesmo dentro de uma cela, ele faz questão de usufruir: quando o homem não pode ler, ele se exercita, enfatizando uma máxima obstinação por esse equilíbrio individual. Mesmo na sequência em que Hathaway ganha a liberdade, no começo do filme, Mann faz questão de filmar seu personagem com closes assimétricos para dar espaço a um horizonte agora visível, concreto para um condenado, porém ainda desfocado, centrado no indivíduo, esse sim a chave daquele espaço.

Minuciosidades luminosas que se projetam entre a dimensão física e a dimensão tecnológica.
Minuciosidades luminosas que se projetam entre a dimensão física e a dimensão tecnológica.

Mas afinal, como filmar esse embate tecnológico? Como mediar esse espaço virtual no espaço físico, no espaço fílmico? É óbvio que um cyber-thriller, nas mãos de Mann, será tão concreto quanto qualquer outro thriller. Se existe uma dimensão imaterial aqui, ela funciona sempre como o mote de um físicalidade muito evidente no espaço, como o gerador de uma dinâmica que só se concretiza na dimensão física, com direito aos tiroteios realistas de praxe, mortes absolutamente desoladoras e aterradoras, e até mesmo uma briga de bar. Mesmo na tradução desse espaço virtual mais literal, Mann situa muito bem todo um ambiente realista de data centers e servidores, faz os personagens literalmente caminharem entre corredores de hardwares, em uma iconografia futurista comparável com as paisagens urbanas noturnas que descortinam toda uma vastidão luminosa de prédios nas panorâmicas do filme. O próprio uso do CGI, nas sequências dos ataques virtuais, já denota toda uma minuciosidade luminosa que se projeta tanto nesse ambiente do hardware, nessa fantasia tecnológica, como no ambiente físico, na encenação em si. O corpo de Chen Lien é iluminado com a mesma minuciosidade que uma luz microscópica se acende em um chip.

Ações manuais meticulosas que enfatizam um princípio elementar dos gestos.
Ações manuais meticulosas que enfatizam um princípio elementar dos gestos.

É um pouco como se o filme todo funcionasse entre uma objetividade quase técnica – tanto na própria temática como na violência em si – e uma sutileza já implícita em qualquer aproximação, em qualquer relação interpessoal. A mesma mão que, com uma objetividade assustadora, enfia uma chave de fenda na cabeça de um personagem, é a mão que toca um ombro nu, que abraça um outro corpo com ternura. Os pequenos gestos – do toque no teclado ao toque corporal – geram resultados tão sutis como destruidores. E toda essa sutileza, toda essa sutileza destrutiva, denota também um processo de humanização, um cinema de ação onde o indivíduo não é só uma peça formalista, um elemento gráfico em prol de uma dinâmica delirante, mas um indivíduo em toda a sua natureza. O close na personagem de Viola Davis, quando seu olhar desvanece ao agonizar na calçada, fitando um edifício, em seu último suspiro, é dos momentos mais poderosos nesse sentido. Aliás,  a maneira com que os personagens vão morrendo, como eles vão sendo deixados para trás, faz surgir toda uma camada de desolação, todo um peso dramático muito inerente àquela trajetória, o que vai, aos poucos, transformando toda essa sutileza realista em uma iminência digna de um filme de terror.

Dessa relação de proximidade com o corpo, desse constante embate entre indivíduo e espaço, o digital ainda é uma peça fundamental para Michael Mann exercer uma autonomia cênica, uma liberdade espacial muito cara ao seu cinema. Em tempos de 4K e outras obsessões cristalinas, só Mann mesmo pra filmar uma briga de bar em que a imagem faz questão de preservar a sua aparência digital, a sua textura chapada; além, é claro, de invocar toda uma maleabilidade muito inventiva do dispositivo, reiterando toda a sua vocação natural com a bitola, o seu gosto por um realismo que ao mesmo tempo que assume o ruído da imagem e a instabilidade do aparato, articula uma força essencialmente dramática, essencialmente encenativa em sua dinâmica ficcionalizante.

A desmaterialização do espaço que isola os indivíduos.
A desmaterialização do espaço que isola os indivíduos.

Na sequência final, quando Hathaway parte finalmente para o embate físico com o seu rival virtual, o ambiente assume uma pictoriedade quase abstrata dessa imagem digital, um jogo de cores onde o vermelho e o amarelo, ao contrastar com o preto da noite e os mil passantes em um ritual, criam um jogo figurativo quase impalpável, cheio de silhuetas e espectros no limiar da sua materialidade. É quase como se o ambiente articulasse uma nova dimensão em prol desse encontro, onde o concreto se projeta no figurativo e o virtual no abstrato, uma perspectiva estilística que parte desse impressionismo, dessa confusão épica do olhar, apenas para isolar o mais sutil, e ao mesmo tempo ultra objetivo, dos gestos: a mão que apunhala, o braço que estende a arma. A mais meticulosa distância focal aqui, ao enfatizar a arma e a elementaridade desses gestos, não deixa de evidenciar, sempre, um esmiuçamento vital do quadro cinematográfico.

Se toda essa desestabilização formal do cinema de Mann funciona em prol tanto de uma agenda política como de uma essência dramática, sem falar em uma reverência clara a um gênero policial que ele mesmo ajudou a estabelecer, definitivamente o homem é um dos poucos diretores que sabe articular como ninguém todo um arsenal de modelos, já mais do que implícitos na natureza desses gêneros, em uma lógica absolutamente contemporânea, uma fábula criminal que sempre se atualiza e se reinventa tanto em sua temática (Thief, Heat e Miami Vice são claras proles seu tempo histórico, ainda que conservando um anacronismo muito possibilitador), como em seu método. A depuração artesanal de um drama que, muito mais do que enfatizar um realismo, de fato constrói uma mitologia cinematográfica.

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O Desejo da Minha Alma (Masakazu Sugita, 2014)

Por Arthur Tuoto

O Desejo da Minha Alma é um filme bastante consciente dos seus limites. Mesmo se focando em uma história pesada – após um terremoto no Japão (que nos remete diretamente aos eventos de março de 2011), dois irmãos perdem os pais e ficam orfãos – o filme se concentra em uma abordagem que lança mão de relativamente poucos elementos, constrói sua narrativa a partir de um jogo muito minucioso e detalhista em uma dinâmica espacial de ausências e presenças implícitas. Muito disso reside na relação dos seus atores, em especial os protagonistas, a irmã de 12 anos e o irmão de 5, com a descoberta de novos ambientes ao seu redor, já que depois da tragédia e da perda dos pais, os dois se veem obrigados a morar com parentes próximos, em uma outra casa e ao que tudo indica, uma outra cidade.

Toda a dinâmica da direção de Masakazu Sugita funciona como um jogo de forças entre uma mise-en-scène rigorosa – que não deixa de remeter a uma tradição centenária no cinema japonês, com seus enquadramentos fixos e sua geometria de cena austera – e um drama que, ainda que narre essa história das mais melancólicas, tem alguns momentos de uma ternura muito espontânea. A inocência de Shota, o irmão mais novo, que ainda não tem exatamente uma noção concreta da morte dos pais, gera algumas das cenas mais doces nesse sentido, principalmente quando ele é colocado nesses novos arredores domésticos que precisam ser desbravados, nessas novas relações de afeto com os tios que aos poucos vão substituindo os pais e com todo a área física afetiva dessa nova casa. Justamente o oposto de Haruna, a irmã mais velha, que convive entre um misto de serenidade e resignação. E se em um primeiro momento podemos até cogitar que a irmã aceitou bem a morte dos pais, com o seu semblante constantemente pacífico (ela chega, inclusive, a soltar um sorriso ingênuo no enterro dos mesmos), aos poucos ela vai revelando uma raiva implícita, como se finalmente começasse a lidar com a morte, a externar essa incompreensão com a devida fisicalidade. Mesmo na cena em que Haruna ensaia um sorriso no espelho do banheiro, como que para tentar acobertar um semblante mais negativo, fica mais do que claro todo esse movimento corporal da personagem, essa anatomia infantil que funciona dentro de uma ambiguidade muito reveladora.

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No ápice dramático do filme, e possivelmente em uma das melhores atuações infantis do cinema recente, Haruna desaba a chorar quando tenta contar para o irmão que os pais estão mortos, ou pelo menos tenta fazê-lo compreender isso de alguma forma. Um pouco como se, até ali, nem ela tivesse digerido exatamente essa ideia, o conceito dessa morte, como se essa sensação ainda estivesse em suspensão, aguardando apenas ser dita em voz alta para se fazer concreta, tanto para ela mesma, como para o espectador, que até ali estava intuindo tudo apenas por imagens e comentários contidos entre os familiares no começo do filme, nunca exatamente de uma forma explícita e direta.

Todo esse caminho muito gradual que o filme segue, que em algum sentido é o caminho da aceitação da morte, é muito bem mediado por uma série de elipses que intuem toda a minuciosidade daquele tempo, toda as especificidades daquelas ações e daqueles gestos. Ao mesmo tempo que alguns cortes são muito bruscos e fazem questão de jogar os personagens já dentro do plano e inseridos nessa simetria desoladora, a fruição dessa montagem funciona muito bem como um elemento de sublimação da morte, de um espectro que ronda essas crianças e faz com que a ausência elementar dos pais crie sempre uma relação de iminência com o tempo, uma espera que só reitera esse vazio maternal. Quando Shota pensa que os pais podem chegar de balsa, e ele e a irmã vão aguardar um barco que nunca chega, isso fica mais do que evidente.

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O filme de estreia de Masakazu Sugita pode até não ter exatamente grandes pretensões, mas trabalha muito bem dentro de uma meticulosidade doméstica que a trama exige, em especial nesse universo infantil do trauma, nesse descortinar de um novo mundo após uma perda essencial. E apesar de ter um ou outro deslize (a trilha sonora, ainda que oportuna com seu piano pontual, às vezes abusa um pouco de uma lógica dramática pretensamente potencializadora) é o tipo de filme que eu sinto falta de assistir. Curto, conciso, equilibrado em seu proposta minimalista e que, ao se utilizar de princípios básicos do cinema, se aplica em alguns métodos não apenas funcionais, mas evidencia uma essência primária da cena, uma força dramática que parte de uma genuína singeleza formal para cumprir muito bem seus desígnios narrativos.

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Jauja (Lisandro Alonso, 2014)

Por Arthur Tuoto

Se a filmografia de Lisandro Alonso vem, aos poucos, quase que minuciosamente, abolindo um esvaziamento dramático e conciliando certos elementos claramente narrativos, ainda que muito pontuais, podemos dizer que o seu cinema está lidando diretamente com uma tradição cinematográfica bastante elementar, primária, em algum sentido até clássica. O homem que um dia, em uma entrevista, já ironizou a existência de John Ford, tem nesse seu Jauja uma fundação alegórica sobre colonialismo que parte de uma franca tradição do western e, consequentemente, da própria historicidade da linguagem cinematográfica. Não que isso seja exatamente novo, não é de hoje que muita gente tenta reimaginar ou traduzir gêneros fundadores do cinema em novas abordagens, modernizar o antigo ou repaginar o primordial, caindo muitas vezes num movimento quase que de domesticação de um modelo. Mas longe disso, é incrível como Alsonso consegue conservar uma certa unidade primária do gênero, consegue partir dele para criar uma dimensão absolutamente ressignificadora, cheia de indícios contemporâneos ao mesmo tempo que reverencia um passado muito possibilitador.

O extracampo inalcançável e a imensidão que falta.
O extracampo inalcançável e a imensidão que falta.

Desde Los Muertos (2004), seu segundo filme, Alonso já começava a complexar seu cinema para além do dispositivo inaugural de La libertad (2001): a ontologia soberana que, em alguns momentos de uma quebra formalista, transcendia em seu próprio universo. Nesse sentido, é como se cada filme começasse onde o último terminou. Se em La libertad tínhamos apenas a relação do indivíduo com o espaço em uma recusa por qualquer linha dramática ou identidade formativa (ainda que isso se fazia presente em cena por um simples telefonema de Misael), em Los Muertos já existe o princípio de algumas relações e toda uma sugestão de passado (sendo o plano final uma das chaves mais emblemática desse pensamento), já em Liverpool (2008), o filme chega a abandonar o seu personagem, e consequentemente o próprio método de centralização que o cinema de Alonso seguia até ali, para assumir uma investida narrativa inédita até então. Finalmente, em Jauja, além dessa mesma bifurcação de Liverpool, desse abandono do sujeito centralizado e da abertura para um epílogo final que subverte o artifício da trajetória solitária, o filme se assume como uma espécie de relicário cinematográfico, disposto a dialogar com bases iconográficas que vão do clássico (a premissa fordiana que remete diretamente a The Searchers), passam pelo moderno (a mediação naturalista, a dimensão onírica proto-espiritual tarkovskiana) e chegam no contemporâneo (o epílogo abstrato e de um simbolismo quase lynchiano).

Talvez Jauja seja o atestado mais direto dessa trajetória gradual justamente pelo seu tom assumidamente alegórico. Mesmo que exista aqui a mesma mediação naturalista dos outros filmes, toda a lógica formal de Jauja tem uma inclinação muito mais controladora. E se de alguma forma os personagens nos outros filmes de Alonso eram reduzidos a essa mediação, ou reduzidos a esse dispositivo de abordagem (ainda que seja um dispositivo de natureza já muito aberta), o personagem de Viggo Mortensen, aqui, é literalmente condenado a esse mundo fantasioso, a um pesadelo com regras e dimensões temporais próprias. “O Deserto devora todos”, é uma frase repetida mais de uma vez no filme, quase a pura evidência de que não adianta resistir aos golpes e armadilha desse universo, o personagem está fadado a essa eterna jornada. O que também não deixa de remeter a lógica da zona, de Stalker (1979), um lugar que trai o personagem com seus próprios desejos, já que é justamente da obstinação de Gunnar pela filha, dessa busca obsessiva e desse desejo muito natural, que brotam os elementos irreais do filme.

O personagem condenado a uma dimensão fantástica.
O personagem condenado a uma dimensão fantástica.

Desse mundo fantasioso, dessa realidade cinematográfica imaginativa, nasce uma chave quase esquemática, que vai desde a trama do filme, em moldes de pesadelo labiríntico de itinerário ad infinitum, a sua própria relação formal com aquele ambiente. Existe em Jauja uma clara vocação pictórica muito impressionista, quimérica, que assume todo aquele ambiente como um espaço místico de visual sempre idílico. Além, é claro, de toda uma estilização assumida na dinâmica dos enquadramentos e na lógica da janela 4:3 em forma de diapositivo, que se assemelha a um slideshow. Janela essa que, em algum sentido, subverte a própria abordagem clássica do western. Um gênero conhecido por suas paisagens e seus horizontes (basta lembrar do cinemascope de tirar o fôlego de Anthony Mann, seus panoramas por toda uma vastidão desértica a se perder de vista) é aqui reduzido a um enquadramento limitado, a uma dinâmica de extracampo onde muita coisa não passa de mera sugestão, uma imensidão sempre inalcansável ou recortada, reduzida a uma dimensão onírica onde nunca se vê muito além.

Toda essa estetização e esse jogo deliberadamente esquemático não deixam de consolidar uma espécie de artificialidade muito possibilitadora. Mesmo a Patagônia aqui é tão brilhosa, tão aparente nessa distância focal sempre muito ampla, que é quase como se estivéssemos dentro de um estúdio onde tudo é controlado: a luz, a cor, a disposição de cada arbusto. E até o fato da paisagem, ao longo do filme, ir aos poucos se modificando tão explicitamente já evidencia essa vocação cênica quase laboratorial. Sendo, possivelmente, aquele diálogo final do personagem de Viggo Mortensen com a mulher idosa da caverna (que em alguma dimensão temporal é também sua filha), o ápice dessa vocação artificial-fantasiosa, com sua luz ultra pontual, seu fundo preto infinito, sua direção de arte em uma disposição quase teatral.

A disposição pictórica que assume a alegoria do quadro.
A disposição pictórica que assume a alegoria do quadro.

No epílogo, quando somos jogados para o que parece ser um tempo presente, ainda assim é um tempo anacrônico, uma espécie de mansão castelo perdida em alguma época atual, cheia de elementos que ressignificam tudo o que assistimos até ali, ressignificam, inclusive, todo o gênero de imagens a que fomos apresentados e sua própria confiabilidade enquanto narrativa. O que gera mil teorias de que o filme seria um sonho da garota, ou um sonho do cachorro (sendo o próprio Viggo Mortensen o cachorro nesse pesadelo em busca da dona). Mas é claro que nenhuma dessas teorias é exatamente vital para o filme, tamanha a unidade dramática e formal do trabalho de Alonso.  Um jogo de iconografias mil e espelhamentos geracionais que, definitivamente, se vale por si só.

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Mapas para as Estrelas (David Cronenberg, 2014)

Por Arthur Tuoto

Em tempos de Birdman e outros chorumes auto-conscientes de Hollywood, fica até difícil para o cinéfilo mais desavisado localizar Maps to the Stars em meio a um circuito de sacadinhas pretensamente críticas e investidas cínicas afins. Não deixa de ser um alívio constatar que Cronenberg funda toda a sua dimensão analítica sobre uma base mais do que superficial. Ou pelo menos, assim como talvez em grande parte de sua obra recente, o diretor parte dessa base aparente e explícita, escancarada e muito frontal, para atingir as vísceras mais elementares da sua temática alvo.

É até um pouco previsível constatar que o filme venha sendo recebido como uma espécie de crítica caricata ou sátira mordaz. Até concordo em algum sentido com a questão da sátira, mas me parece que o filme está muito mais interessado em partir de uma ontologia evidente de toda essa superfície hollywoodiana, do que exatamente em uma caricaturização extrema. Cronenberg lida diretamente com algumas questões já mais do que implícitas naquele universo, a caricaturização já é da natureza daquele mundo, o filme apenas pega todo esse drama especulativo da fama (a mais pura e primária narratividade de um E! Television) e evidencia um espaço que já é constantemente aterrorizado por uma iminência: a iminência de um escândalo, de uma difamação pública, de uma fotografia vazada. A família de Benjie, o astro teen sociopata que tem a arrogância como parte de seu DNA, já é envolta nesse constante senso de sobrevivência, esse survival film doméstico das aparências que precisa preservar a todo custo um sucesso capitalista da exterioridade, manter cada coisa em seu devido lugar nessa mais do que calculada engenharia social do show business.

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O espectador acostumado com aquela velha piscadela charmosa no que diz respeito aos filmes de Hollywood sobre Hollywood pode até se assustar com o imaginário deliciosamente barato de Maps to the Stars. Aparições novelescas, imaginário incestuoso e toda uma gama de espectros sobrenaturais reprimidos. Mas não seria justamente desses ingredientes já essencialmente B que se alimenta toda essa especulação da difamação? Cronenberg apenas os assume com a devida franqueza. Essa lógica social dos bastidores que por si só já é a maior das encenações, com suas festas-rituais, suas pequenas orgias e seus hábitos excêntricos. A frontalidade com que a câmera filma a personagem de Julianne Moore nada mais é do que a evidência de uma abordagem livre de artifícios, desarmada, exposta simplesmente, que está interessada em um registro fundamentalmente cotidiano, por mais bizarro que ele seja. Frontalidade essa, aliás, que só reitera a aptidão de Cronenberg para o digital. O filme usa e abusa de toda sua profundidade de campo cristalina e da limpidez da alta definição para subverter uma certa estética higiênica, e invariavelmente publicitária, do vídeo. Justamente por assumir essa nitidez extrema, essa lógica encenativa de corpos tão evidentes, já muito presente na fotografia digital de Cosmopolis, Cronenberg consegue conceber uma aproximação explícita quase que livre de uma intervenção estilística. Nada mais apropriado para esse ambiente luminoso e ultra impessoal de arquitetura conceitual, camarins-trailers genéricos, espaços meditativos e todo tipo de picaretagem zen.

Mesmo o fato do filme ser estrelado por atores como Robert Pattinson e John Cusack, uma estrela teen em um franco processo de ressignificação e uma estrela mainstream mais do que genérica, já nos dá uma dimensão histórica de um cinema que se auto-evidencia ao mesmo tempo que se recicla, que parte do seu próprio imaginário para conceber novas dimensões autorais, quase o reconhecimento de uma vocação industrial auto-sustentável mais do que conveniente. E Cronenberg, feito o autor dentro do sistema que ele é, se aproveita muito bem disso. Até a figura de Julianne Moore, que em um primeiro momento parece reencenar o seu próprio arquétipo do descontrole já mais do que popularizado, consegue se renovar frente a lógica frontal de Cronenberg, frente esse escancaro anatômico íntimo. Aliás, se Iñárritu precisa de toda aquela pirotecnia deslumbrada para refletir sobre uma certa divindade decadente das celebridades, aqui uma simples e bela Julianne Moore peidando em uma privada com toda a espiritualidade que lhe convém já faz muito mais!

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Talvez o único momento de fato mais simbólico do filme, quando ele ultrapassa a sua vocação ontológica e assume uma fantasia, ainda que seja uma fantasia que nasce diretamente dessa realidade surreal e grotesca, desse mundo fictício tão bizarro justamente por ser de algum modo fiel aos fantasmas de um mundo real, é a cena da autocombustão. Um corpo que se anula e se auto-sacrifica pela culpa? Mesmo todo o pano de fundo piromaníaco do filme já nos dá dimensão de uma natureza destrutiva que rege a vida dos personagens. Até mesmo o instinto de preservação dos irmãos, que se casam entre si quase como em uma tradição da realeza que precisa ser conservada, é um ato final suicida. Seria então a autocombustão a imagem final do corpo que, enfim, se rebela contra si mesmo? Aquele que só encontra a salvação no seu próprio aniquilamento. Se um impulso de destruição, em sua essência capitalista, é também um impulso criativo, que destrói antigas demandas apenas para criar novas, não seria esse o princípio básico da indústria de entretenimento? Destruir para reinventar. Reinventar para destruir. Um ciclo natural que se renova com uma rapidez cada vez maior, dispensando elementos em voga apenas para substituir por novos. Em suma, uma obsessão pelo próximo, pelo mais novo, uma fixação pelo futuro que nada mais é do que uma obsessão pelo poder. Se o próprio Cosmopolis já nos deixava isso mais do que claro em toda a sua literalidade, Maps to the Stars não deixa de ser uma espécie de continuação ideológica, convicta em sua inclinação anárquica e impiedosamente verídica.

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