Com quase seis horas, Near Death (1985) é o documentário mais longo realizado por Frederick Wiseman. É também um dos seus filmes de foco mais restrito, quase não se afastando de uma UTI em Boston. Ao longo de sua duração, as situações se alternam, mas uma certa dinâmica se repete: a comunicação evasiva que se estabelece entre a equipe do hospital, de um lado, e pacientes e familiares, de outro. São diálogos sempre à beira do colapso, limitados pelo jargão e pela constante fuga da responsabilização jurídica, de um lado, e pela incredulidade e limitação física, de outro.
É uma barreira condicionada, em parte, pela nossa relação com a medicina moderna, de quem sempre esperamos prognósticos de salvação. Alguns dos doentes mostrados no decorrer do filme convivem há anos com uma rotina de internações e pioras, mas demonstram uma nítida dificuldade em compreender que as chances de recuperação finalmente se esgotaram.
Mas a julgar pelo que assistimos em Near Death, a responsabilidade por essa incompreensão recai principalmente sobre a linguagem médica, repleta de fórmulas retóricas e eufemismos. É uma dificuldade ressentida pela própria equipe do hospital e verbalizada em mais de uma discussão interna, um embaraço que advém do sofrimento das famílias, da desigualdade de conhecimento e das complicações que surgem na relação entre pessoas e uma instituição. A exemplo de outros trabalhos de Wiseman, vemos profissionais aparentemente bem-intencionados em situações nas quais transparecem algo de absurdo e revoltante, um elemento cuja origem e extensão escapam a qualquer explicação fácil.
Há ainda outros limites: pacientes praticamente incapazes de falar, de quem os médicos precisam extrair sinais de entendimento. Ou a imprecisão do conhecimento clínico, quando melhoras e pioras desmentem previsões que haviam sido longamente debatidas. E, em meio a todo esse quadro, há um silêncio significativo: o dos responsáveis pela limpeza, transporte de material e de pacientes, vários dos quais negros, movimentando-se na periferia da imagem ou observados em seus afazeres em cenas rápidas e sem diálogos, em claro contraste com a verborragia da equipe médica.
Finalmente, um outro elemento marcante é a racionalização dessa experiência extrema: vale notar a leveza – real ou dissimulada – com a qual o corpo médico encara a própria rotina. Entre esses dois elementos – a comunicação vacilante e a negação da seriedade da morte – Near Death explora como o inevitável se torna praticamente indizível.
Agradecimentos a Gabriela de Sousa Nunes e aos editores e colegas da Multiplot.
(…) e enfrentar, sem mais, não a vida, que é muito grande, mas a frágil armadura do presente”
Alejandro Zambra, A Vida Privada das Árvores, 2007.
Uma moto num circuito, uma moto no deserto, uma moto no escuro de uma caçamba. A imagem forte de uma moto sendo domada pelo movimento de alguém anônimo debaixo do capacete é a eleita por Vincent Gallo para personificar toda a fuga física e psicológica de seu personagem em The Brown Bunny, seu último longa-metragem lançado antes do sumiço autoimposto de Promises Written in Water, e a subsequente aposentadoria do diretor. Uma imagem simples e arriscada, nada trivial, como costumam ser as imagens de Gallo. No começo a moto está em círculos, disputando contra os outros pilotos até a dilatação do tempo transformar essa experiência de catarse em melancolia imersiva; no deserto de sal do Vale da Morte, é uma miragem distorcida pelo campo de visão do calor insuportável, distante e perdida aos poucos, numa fuga e numa dor que não sabemos acessar. A voz calma, serena, conduz a estrutura do filme na estrada entre as corridas do piloto, pontuada por promessas descumpridas e assentamentos silenciosos. A intensidade maníaca do olhar de Gallo e seu rosto angustiado guardam um filme solitário e extremamente furtivo sobre o abandono.
Como nos contos de estrada de Kelly Reichardt e nos retratos de trânsito de Jem Cohen, para ficarmos em dois cineastas contemporâneos a Gallo que também se interessaram pela solidão de quem viaja para fugir, o ambiente esvaziado reverbera uma trama fantasma, de histórias outras que ocupavam aquele espaço antes e nunca vemos, mas percebemos pela melancolia impressa no ambiente e no rosto dos atores. Não por acaso os três diretores costumam trabalhar com a película em 16mm, a matriz visual de The Brown Bunny; o registro entre o documental e o místico que a latitude imprecisa e o campo de visão enevoado da bitola dá uma intimidade maior à distância entre a câmera e as paisagens, entre a lente e o rosto de Gallo. O grão mais forte e as luzes mais estouradas são fundamentais para a costura do filme, na disposição hipnótica para o arco dramático do personagem.
Wendy e Lucy e Chain, dois outros excelentes filmes de estrada de Reichardt e Cohen, respectivamente, são rodados nesse mesmo 16mm que embaça o ambiente e captura os lugares como se fossem reminiscências, memórias frágeis, envoltas ao abandono social que acomete as duas protagonistas de cada filme; existe um comportamento acossado pelo capitalismo e suas entranhas mais perversas, mesmo que exposto por sentimentos mais soturnos e internos, mais reféns de uma inevitabilidade estrutural, e daí tiram suas forças. Diferente de ambos, a malaise de Gallo é mais individual, menos reflexiva sobre o Estado, mas tão sócio-política quanto. A violência dos signos masculinos que rodeiam o filme são sentidas sem a menor necessidade de comentário sublinhado, porque tem seu ataque perverso fundado nos traumas de imagem e de orgulho, uma culpa de morte surgida da impotência de um parâmetro impossível e egoísta de ser cumprido.
É nessa dimensão da estrada, nessa calmaria e melancolia dos entreatos, que a van de Bud atravessa – e nisso o papel da trilha sonora na captura desse sentimento é fundamental. Composta inteiramente de músicas selecionadas por Gallo, a trilha entra em três momentos chave de trânsito no filme, três preparações para encontros centrais, fugidios como tudo o que o personagem toca aqui. O folk de Gordon Lightfoot e Jackson C. Frank preparam outras flores da estrada, na contemplação da estrada silenciosa embalada pelo motor de som baixo da van que cruza os Estados Unidos, e demonstram o apreço do diretor pela voz mansa, o tom secreto, a voz e violão de homens melancólicos que cantaram sobre a solidão do personagem em seus discos três décadas antes da jornada trágica de Bud. Já o murmúrio de Jeff Alexander em Come Wander with Me, distinto em forma mas não em tom, é pregresso ao encontro com os pais de Daisy e o seu coelho marrom, essa responsabilidade suspensa em vida interrompida por uma desgraça não-contada. Gallo suprime a letra da música e mantém apenas o instrumental e o murmurar da voz, antecipando algo familiar, quase uma cantiga, instaurando com economia um mal-estar que não fica totalmente claro até a revelação final.
O embalo letárgico que conduz e atravessa The Brown Bunny origina justamente desse trauma suspenso; sua estrutura dramática é remontada quase como seu próprio oposto, um evento transformador que é primeiro sentido para só depois ser compreendido, um convite do diretor às sensações simples e honestas pelas quais já declarou ser seu majoritário interesse. Suas capas letárgicas encontram paz no trânsito, mas sem soluções, sem dilemas esmiuçados; mais como paliativo dessa dor.
A sequência do encontro com Lilly, uma das melhores do filme, representa esse tratar momentâneo das angústias. O silêncio, a dinâmica estabelecida só pelos olhares, sem diálogos claros ou passados dramáticos, mapeia todo aquele ambiente de beira de estrada, um espaço de trânsito, sem possibilidade de escolhas ou futuro, um não-lugar. Esse silêncio se estende na cuidadosa mixagem do som baixa nos poucos diálogos, mais interessada em contemplar os sons ambiente das paisagens que as palavras – e mesmo em diálogos importantes para a trama, mais próximos do final, Gallo não abre mão de os deixar difusos, em meio à guia sonora do ambiente, porque as vozes baixas fazem parte da consciência de Bud e da forma que esse universo se articula.
O som das músicas também é estilizado, mixado não como se tivesse tocando no rádio, embalando a viagem, mas como se tocasse atrás da cabeça do protagonista, escondido em suas memórias, sem reverberação. É um movimento similar ao álbum musical When, lançado por Gallo via Warp Records dois anos antes de The Brown Bunny, na disposição pelo acústico distorcido pelas ondas da guitarra, guardando a voz suave do diretor confessando seus estados mais complexos; o ruído da produção em lo-fi e a simplicidade das letras funcionam como um complemento sensorial do filme, como a trilha que Bud comporia para sua dor. Mas como a operação de Gallo é na furtividade, nunca se cai numa autopiedade ou numa crise de consciência masculina banal; é na voz abstrata e persistente da ferida que não se regenera onde adentramos.
O que culmina invariavelmente numa catarse dramática: dois amores perdidos, se enfrentando pela última vez, trancados num quarto. Num filme tão calcado nos silêncios e na atmosfera, é surpreendente o controle de modulação dramática de Gallo nessa sequência, um expurgo total de passados insuficientes e escavação de erros e mais erros. A duração da briga do casal é sentida nas minúcias, se estende no abandono que viram xingamentos que viram compreensão que viram afeto para virarem abandono novamente. E mesmo quando se conduz pelos diálogos, é à furtividade que Gallo retorna: o segredo no ouvido de Bud e Daisy no final, que não ouvimos, para dar conta de um lugar rarefeito de um sentimento mais etéreo ainda, de uma alma perdida e um coração sem rumo, presos para sempre num quarto anônimo de hotel.
É a princípio enigmático, diríamos até “incompreensível”, este Silêncio que intitula o filme (Sokout, 1998) do iraniano Mohsen Makhmalbaf, posto que, mesmo na condição de cega, a criança que protagoniza sua itinerância demonstrará ter domado todos os outros sentidos, do paladar ao tato à própria “visão”, justamente nos ouvidos, sendo ademais afinador de instrumentos enquanto vocação e por necessidade ainda em tenra idade, visando ajudar a mãe solteira pagar as contas depois que o chefe da casa, seu pai, fugira à Rússia.
Na vida do pequeno Khorshid não há senão tremor, intensidades, aliciamentos advindos dos choques sonoros. A gênese da obra, então, doce gentileza, coloca-nos a natureza de SEU jogo com o silêncio, filme à sua maneira tão caro à palavra “perspectiva”: três ressoares de um punho batem à porta, ao que duas figuras despertam e iniciam, ainda anônimas, seus ritos de “introdução ao mundo”, como nascessem a ele tanto quanto a nós através da persuasão específica daquelas reconhecíveis notações externas. A mulher, que logo perceberemos ser sua mãe, atende à porta com gestos hábeis, enquanto o menino profere uma oração para que (cert)a abelha que ouve “zanzar” encontre seu caminho, à luz do dia, livre de maus presságios.
Ao longo dos 76 mins. desse elogio à vida como arranjada pela música (que é, por sua vez, através da criança e também ao nosso deleite auditivo, uma espécie de supra-faculdade do verdadeiro-ouvir-das-coisas), o trabalho técnico-sonoro do filme enfatiza sua faixa de estridências avolumadas como que para torcer o real, co-enxergado ao lado dos olhos de Khorshid, e fazê-lo legítimo quesito das especificidades de cada percepção. Percepção produtora de estímulos físicos (dentre os quais é possível selecionar, a depender da orientação, o rumo superior dos esforços vitais). Logo: corpos designados OU NÃO por caminhos que são entendidos como suas “MÚSICAS” (próprias).
Todos os dias o menino deve proceder, então, ora com os ouvidos diligentemente tapados pelos próprios dedos, ora com chumaços grossos de algodão sobre a cavidade auricular, para que não ceda à musicalidade invasora da rua e se perca, uma vez que poucas pessoas sabem de sua particular des-orientação distraída, rumo aos sons de belas canções. Sua vida requer dupla delicadeza porque lhe acomete, cotidianamente, aflorar o mecanismo de prazer que os ouvidos representam. A força embriagada, contraditoriamente compositora, de uma cítara ou bandolim “ocasionalmente passando”, introduz em seu corpo um universo mais revelador e convidativo, mais puro e verdadeiro, mais SILENCIOSO e falante que qualquer regra ou comando de qualquer superioridade. Mas se tal “faculdade” o amaldiçoa com uma segunda errância, ela também presenteia com uma sobrenaturalidade que extrapola o poético.
Ao escolher romãs ou enfileirar-se ante as vendedoras de pão à rua para vir à escolha do mais saborosos, ele balança o interior das frutas, buscando ouvi-las rente à bochecha, ou seleciona a ambulante com a voz mais encantadora, pondo a magia (re)encontrada na garganta sobre a expectativa das mãos que fabricaram o alimento. Gradativamente, o “silêncio” a que a obra remete passa a ser não só uma “disciplina” de entendimento profundo com as propriedades intrínsecas de cada matéria presente nos ritos da vida, redobrando-os em tal potência de sabor inegociável, como uma ética de conduta cuja destinação, cuja “utopia” (finalidade), é a da entrega a um festim cada vez maior à liberdade corpórea, a ele redenção e não menos entidade máxima a ser compreendida em orquestra, sob aquela mesma rigidez que o singulariza.
O que é lido externamente como “excentricidade vadia”, a saber, uma vida “menor” pois dedicada e deliciada ao êxtase musical e às “essências das coisas”, esta mesma vida que os bandoleiros cantarão, próximo ao garoto, nos mercados, em oposição ao destino do sábio, colocando ambos em polos distantes, mas pertencentes a mesma linha de loucura – será feito louvor milimétrico.
Se Yasujiro Ozu colocou o plano-tatame à excelência (plano à altura da elegia confessional de seus personagens domésticos, enraizados de joelhos à tradição), Makhmalbaf desloca a predileção testemunhal à região boca-nariz-ouvidos. Ele faz do território essencialmente experimental da infância, ali onde surge a fixação dos primeiros gostos e reconhecimentos, uma insurgência minuciosa dos AFINAMENTOS propícios entre “viver” e “instrumentar”. Inúmeros planos do filme são close-ups dedicados ao comando da menina Nadereh, exímia bailarina e ajudante de Khorshid, sobre o próprio pescoço, assertivo voto de Minerva sobre a finalização exata do refino dos instrumentos em confecção.
Quando há transe nas cerejas, que esta pequena sacerdotisa porta nos ouvidos, é que “há música no instrumento”, ainda que ali subsistam, em teoria, os seres menos experientes (infantes!) para tal avaliação. Que o estopim moral da até então existência do menino seja a acusação dos moradores da vila de que os instrumentos musicais do comerciante não possuem qualidade, verdadeira gota d’água ao que tem a alma nos ouvidos, é um debate passível de remediação somente se o bardo que outrora lhe encantou os ouvidos e fê-lo se perder pela “incontagésima” vez puder testemunhar a favor da musicalidade contida naquele ouvido, aos olhos do mundo suas mãos e voto. Makhmalbaf será novamente sábio ao não fornecer o “destino esperado” à canção… nem ao roteiro qualquer tipo de comprovação da falta-de-poética do indivíduo mundano.
De encontro com a trupe de bardos, Khorshid vive o primeiro presente encomendado quando o locatário acaba por despejar sua mãe e pertences da casa: despossuído de “tudo (o que é material) ”, ele pede que seja tocado “o galope do cavalo”, pois “está partindo para muito distante”. Terá encontrado O SILÊNCIO interior com o último acorde-lembrete da vida que nunca lhe interessara possuir? Como “ouve” a água e “enxerga”, nela, a mãe flutuando num barco com nada mais que três itens em mãos, é ali que decide por seu golpe de independência, naquela similitude entre poética (permitida) e realismo (roubado)?
Quando perdido pelo acaso dos dedos que destamparam as orelhas, ele se perde…, mas na realidade se encontra. Indomável por natureza, como pode então, por sentido social, assentir ao rumo daqueles que de olhos abertos mesmo assim não veem? Suas lições aos instrumentistas e artesãos do ferro, do barro e da casca soam, afinal, delírio… até que, quando é preciso convidá-lo à orientação por entre as vielas, um dos artífices que havia lhe negado o “sermão musical” segue o protocolo previamente sugerido pelo garoto. A música apaixonada, entoada, en-tocada, embalada de sinceridade com a matéria é “quem” o recobra os sentidos. A pureza o reconduz “ao lugar”, salva-o de uma perdição que já não sabemos nós mesmos onde pode desaguar. O feitiço que o acomete será, com precisão, sua cura.
Inextenso de alegria, num novo enigma cênico, ele envenena todos os mercadores de um êxtase embalado com as mesmas mãos que sempre empunha à frente do próprio corpo, fazendo-se lido não pela cegueira, mas pela hiper-visão. O gesto repetido revela seu avesso. Um fator messiânico extrapola da montagem, pois que nosso olhar se esgueira, não mais buscando o “som correto” (justo, preciso, musical) tão-somente no ar que regurgita a corda da viola, mas numa eletricidade que possa existir entre aqueles dispostos à dança. O ritmo é sua humanização e socialização e descobrimento. Um raio de vocação o atinge – aliás, o confirma -, em meio à baderna, que nenhum passante sequer (e literalmente) se detém para ouvir: isto é, para entender como manifestação não-deliberada.
No interstício do perceptível, o silêncio grita uma re-ligião. Trata-se de um filme espiritual, não poético, como outrora se pensara. Uma re-ligação encabeçada por criança “muda” aos olhos de muitos. Indiferente, ela, com o mesmo fervor, à multidão.
Bêbado de azul e vermelho: William Friedkin está vivo
Por Rubens Fabricio Anzolin
A função cinematográfica se mostra então eminentemente favorável à obra inovadora do demônio.
(O cinema do diabo, de Jean Epstein)
O olho. A testemunha, a chave de acesso por onde entra o demônio, o portal que permite transformar-se em outro. Os olhos arregalados de Max Von Sydow em O exorcista, o desatino fulgurante de Al Pacino em Parceiros da noite, a fúria sombria de Benício del Toro em A caçada. O gesto de olhar: atingir algo, fitar um objeto, absorver e ser absorvido. Tudo começa no olho — depois do olho nada mais é igual. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre o olhar.
O corpo. Corre desmedidamente. Sua, agita-se, dobra-se e retorce, tal qual uma massa de modelar. O corpo é uma plataforma, que zanza incessantemente por todos os lados, rápido e arteiro, mas também frágil e sensorial. É um sintoma do meio: o corpo adere àquilo que está ao seu redor, é o instrumento pelo qual instala-se a selvageria, o caos, o conflito. O corpo possui e é possuído. Tudo no cinema de William Friedkin é uma questão de possessão.[1]
As coisas. Deslizam. Às vezes ligeiras demais. Às vezes lentamente. Chocam-se até se converterem em rastros pelo ar. As coisas pegam fogo, tornam-se pólvora, viram partículas de guerras interiores e exteriores. É difícil capturar as coisas, elas se alternam rapidamente, trocam de dono, de aparência, de usabilidade. As coisas são para o bem e as coisas são para o mal. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre como filmar as coisas, como dar movimento à matéria do mundo de modo que até o mais estático dos enquadramentos adquira uma energia caótica.
A topografia. Localiza cada um dos personagens em um breu, radiografa seus sentimentos. Não se trata de uma mera questão de geografia, é sobretudo um estado de espírito: Comboio do Medo e Parceiros da Noite são filmes terrivelmente azuis; O exorcista é embalsamado, fosforescente e esfumaçado, composto de neblinas; Viver e Morrer em Los Angeles queima a pele, é indissociavelmente vermelho, como também o é Possuídos, mas dessa vez com um vermelho diferente, um vermelho cristal, refletido, quase branco. Caçado é gelo. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre ficar embevecido de cores e estágios mutáveis de sensações, é sobre um estado de espírito dominante, avassalador, quase homogêneo.
Os homens. São braços do estado, da instituição, do status quo. São também a ponte para que cada um desses órgãos, da polícia ao FBI, da Igreja ao exército americano, sejam corrompidos pela indissociável, mágica e cruel realidade do mundo real. Os homens de William Friedkin — e seus filmes em boa parte são sobre isso, homens — são frágeis e indeléveis. Eventualmente podem ser cruéis, mas são sobretudo frágeis, carcaças quebradas de um mundo mecanizado que sucumbe aos seus próprios traumas e mistérios. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre traumas e mistérios, sejam eles do corpo, da carne ou do sobrenatural. Nenhum de seus personagens passa ileso a eles.
A madrugada. Foi onde conheci os filmes de William Friedkin. Suas obras me educaram no calabouço das madrugadas quando não havia nada que poderia parecer mais aconchegante e desafiador do que uma imagem de dois carros se chocando vertiginosamente pelas ruas de Los Angeles ou Nova York. Não haveria nada de mais enigmático que o rosto celestial de um jovem Willem Dafoe sob o bálsamo de uma magnânima luz vermelha numa câmara de revelação de fotografias. Afinal de contas, colocar fogo em todas as coisas sempre foi uma opção das mais razoáveis, e ele fazia isso como poucos. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre colocar fogo em todas as coisas, ativar aquilo que foi esquecido ou deixado de lado, dar à matéria outra significação que possa parecer a destruição total ou o acendimento de uma nova partícula de força sob a luz das chamas.
Se William Friedkin está morto, coloquemos fogo em suas vestes, para que ela possa transformar-se então em outra coisa, para que o sujeito possa ser possuído pelo outro tal qual seus próprios personagens. Não poderá haver inércia, é tudo movimento.
William Friedkin está morto: ele está mais vivo do que nunca.
Deve ter sido bem dolorido para Alessa, mãe de Raquel, 9 anos, tentar acalmar a filha, que “queria ter virado o voto do vovô”, quando a menina se deu conta da eleição de Jair Bolsonaro. É um dos momentos mais tocantes — e mais transformadores — de “Vermelho Bruto”, primeiro longa-metragem de Amanda Devulsky, tanto pela comoção de uma mãe que, com a voz embargada, tenta acreditar ao dizer que nem tudo estava perdido quanto pela potência que esta cena encontra dentro da escolha formal da diretora: num documentário que apresenta as histórias de quatro mulheres, raramente vemos os rostos destas personagens.
Com origens, classes sociais e estruturas familiares diferentes, Alessa, Eunice, Fabiana e Jô têm em comum o fato de terem sido mães ainda adolescentes, em Brasília, no período da redemocratização do país, entre 1985 e 1995. Projeto antigo da cineasta, o filme se apóia basicamente em duas matérias-primas: imagens de arquivo destas mulheres e registros feitos por elas mesmas ao longo de 2018, ano-chave para a captação do conteúdo. Justamente o momento em que a democracia brasileira entrou em crise. Um ponto de partida que parecia traçar um estudo sociológico, já que o filme aborda rejeição, machismo, responsabilidades antecipadas e dificuldades econômicas.
Mas as escolhas são bem diferentes. Quando decide, num documentário de personagens, que essas histórias serão contadas só por suas vozes, sem o ponto primordial de reconhecimento de alguém, o rosto, Devulsky assume o risco da falta de identificação e é mesmo difícil estabelecer quem é quem nos primeiros relatos do filme. Além disso, os trechos de voice over são intercalados por uma terceira gama de imagens, abstratas, poetizadas por filtros, zooms, recortes e sobreposições, retiradas dos arquivos ou dos registros que as personagens fazem do cotidiano. O efeito desta dinâmica pode ser frustrante para quem acredita que um documentário precisa ter um recorte efetivo, mas liberta o filme de um cárcere formal.
“Vermelho Bruto” pode ser associado a um cinema de fluxos que tem ganhado muitos e diferentes exemplares nos quatro cantos do mundo. Um cinema em que o não dito tem tanto ou mais importância que o dito e, inclusive, o completa, projeta e distorce. Por isso, é tão simbólico quando, num filme que parte de histórias individuais para representar um estado de espírito, um incômodo, uma condição, algo muito mais amplo e impalpável, se recorra repetidas vezes às imagens de fungos que, vistos de tão perto, parecem composições estelares. Se foge ao desenho mais íntimo de cada uma destas mulheres, Devulsky, numa escala dilatada de espaço e tempo – quase 3h30 de duração -, discute a existência, feminina ou não.
Um caminho curioso para a coautora das comédias dramáticas cheias de ironia de Marcus Curvelo. Mas, como responde Jô, num dos vários momentos em que o filme se abre para a intimidade de suas personagens, tudo é sobre por onde seguir:
Na sequência final de “SINFON14”, atração do Festival Ecrã, o veterano argentino Raúl Perrone parece tentar desconstruir seu filme. A trama, se é que alguma obra do cineasta pode abrigar esse conceito, já acabou e numa cena de bastidor, em preto-e-branco, ele conversa com seu protagonista, Edgardo Cozarinsky. Entre várias outras coisas, diz que as imagens mais belas que ele já captou são aquelas em que seus atores mal sabem que estão sendo filmados. Registros espontâneos de beleza pura. Pode até estar sendo fiel a seus sentimentos e ao que enfatiza (“imagens que captou”), mas se há um diretor atual que consegue fazer artesanato em seus filmes, este é Perrone. “SINFON14” é a prova disso.
Como em “Casanova e a Revolução”, os personagens, nobres aristocratas, dividem uma carruagem, mas ao contrário do longa de Ettore Scola, em que uma fotografia clássica ilumina rostos conhecidos, aqui o cenário é noturno e a viagem, profana e lisérgica, ganha tons e representações fantasmagóricas. Em praticamente todas as cenas, Perrone explora essa atmosfera sobrepondo imagens, distorcendo, dilatando e multiplicando rostos, criando pinturas em composições exuberantes ao longo de todo o filme. É um caminho curioso porque esses quadros que partem da deformação, como se simbolizassem a perversão sexual daquelas pessoas, encontram resultados que se não negam, complementam a busca do diretor. São registros construídos, mas de beleza pura.
Essa construção reforça uma obra que se move entre onírico e o herege, que não tem intenção de ser decifrada, que existe pela força das imagens que consegue produzir.
A busca por dar significados extras às imagens é o motor de outro filme presente na programação do Ecrã, o colombiano “Testemunhas Silenciosas”. Neste caso, as imagens dos filmes são “roubadas” de outras criações, obras da época do cinema silencioso que o também veterano Luis Ospina decidiu resgatar sob a ideia de criar uma narrativa completamente nova a partir delas. Com sua morte, Jerónimo Atehortúa Arteaga assumiu a tarefa, adicionando uma nova camada de resgate ao projeto. Enquanto Perrone cria imagens para estabelecer o ambiente de seu filme, Ospina e Arteaga reagem a imagens criadas por outros para transformá-las e, em algum nível, honrar sua própria memória. Em ambos os casos, são dois filmes que olham para a matéria-prima no cinema apaixonados pelo poder que ela tem.
Um voice over didático e cadenciado sugere, ao lado de imagens funcionais filmadas em digital, que veremos um daqueles documentários de observação sobre o funcionamento de algum sistema industrial, gênero muito comum nos dias de hoje. Em detalhes, o narrador explica a mecânica de uma fábrica onde o bagaço de uma fruta típica do Sudeste Asiático é separado da polpa e reprocessado algumas vezes para que se extraia o suco. Mas “Mangostão”, média-metragem batizado com o nome deste fruto, tem outras ambições e uma delas é provocar estranhamento.
A mesma voz doce e professoral nos apresenta Earth, um homem que volta, depois de muitos anos, para sua cidade natal e reencontra a irmã, que administra a fábrica. Após introduzi-lo, o narrador passa a, deixando claro seu papel como condutor da história, interpretá-lo. É só o começo de uma série de “interferências” com que o diretor Tulapop Saenjaroen subverte a estrutura inicial. O registro documental vai se alternando com uma investigação psicológica de Earth. E mesmo esse registro se desdobra quando a narração, a princípio tão oficial, passa a elencar as falhas das máquinas da fábrica.
Earth, para o narrador, é como se fosse uma destas falha. Ele suspeita de que seu retorno não é apenas uma visita, contrapondo as visões diferentes que os irmãos têm de mundo. Os registros mudam, a mistura o documentário com a ficção se acentua, o protagonista de poucas palavras se opõe a um narrador com muitas ideias e tudo isso alimenta uma atmosfera de mistério que contrasta com o tom um bocado melódico da narrativa. O filme adota um caminho mais introspectivo e menos palpável quando Earth se refugia no hobby antigo de criar histórias com personagens violentos que insinuam os sentimentos que tem por sua família.
Tanto a presença de um narrador quanto a decisão do protagonista de virar escritor, que ainda reverbera em outra decisão parecida na trama, indicam que, mais que contar uma história, Tulapop Saenjaroen quer falar sobre contar histórias. E nesta pequena joia chamada “Mangostão”, ele faz isso reprocessando memórias, rancores e a própria lógica da estrutura que propõe para mergulhar e transformar os tecidos desta narrativa.
Seis filmes exibidos no primeiro dia do Festival Ecrã são, pelos caminhos mais diversos, sobre fantasmas. Curtas, médias e longas-metragens que procuram preencher ausências e lidar com os vestígios de alguém ou alguma coisa que sobrevive como espectro.
Aquele que lida mais diretamente com o tema talvez seja “Gargaú”, de Bruno Ribeiro, em que o diretor coloca os amigos num carro e vai para a cidade onde foi criado no interior do Rio. Embora sua avó, Dona Graça, pareça ser a protagonista do filme, a personagem que amarra toda a trama nunca está em cena: a mãe de Bruno, que ele havia acabado de perder. Essa viagem de volta, que ele constrói a partir de uma mistura de documentário de memórias, comédia nonsense e filme de bastidores em que muito é encenado, também se transforma numa forma de se reconectar com sua origem. No média “Aposentadoria ou A Última Casa do Meu Pai”, Julie Pfleiderer inverte o jogo. Ela convida o pai, um arquiteto que terminou colocando a profissão a frente da família, para construir uma última vez. Enquanto os dois fazem uma maquete cheia de detalhes, ela questiona porque a presença dele em sua vida foi tão distante. Acertos de contas diferentes com o imaterial.
O “fantasma” de “Licantropia”, de Janaína Wagner, é um conceito. Alternando diversas técnicas e suportes visuais e sonoros, variando do mais narrativo para o impalpável, ela investiga como o lobisomem, a criatura mitológica que nos assombra serviu para tornar mais assimiláveis os crimes mais grotescos — dos homens. A própria diretora lembra que a concepção fantasiosa que virou doença diagnosticada se desenvolve numa lógica misógina: enquanto mulheres foram queimadas como bruxas, os criminosos do sexo masculino eram tratados como pacientes. Se o curta de Wagner tenta decifrar o fantasma, “Quem de Direito”, de Ana Galizia, quer afastá-lo. Com depoimentos, imagens de arquivo, gráficos que ganham a intervenção de seus personagens, ela remonta a luta de uma população que tenta impedir que uma barragem não transforme sua comunidade numa terra devastada.
Já em “8 de Março de 2020: Uma Memória”, o fantasma está no que (não) vemos. Fırat Yücel se volta para o cenário de uma manifestação que reuniu milhares de pessoas através dos olhos de câmeras de segurança. Um espaço que ficou completamente vazio durante a pandemia, mas que, mesmo fantasmagórico, não deixou de ser registrado, provocando um estranhamento incomum. Quando nossos olhos, treinados para enxergar, vêem nada, para onde olhar? É uma dinâmica completamente oposta da vista em “Espaço Liminar”, que Gabriel Papaléo dirigiu inspirado pelo cinema de ação de Albert Pyun, mas com táticas que criam uma experiência atmosférica que acrescenta diferentes camadas a essa homenagem.
Nesse longa-quimera em que atravessa o thriller sensorial, a ficção-científica B e o romance clássico, o fantasma é uma mulher que desaparece entre dimensões por causa de um fenômeno científico. Papaléo costura esses caminhos tão diversos através de uma combinação de escolhas – cores estouradas, jogo de luzes, trilha atmosférica, realidade virtual – que estabelecem um universo paralelo, um cinema-fantasma que foge à lógica da verossimilhança, mas que não cai no conto do absurdo pelo absurdo por conta da textura afetuosa que faz com que o projeto pulse de uma maneira muito particular.
Foram dois filmes ou mais? Num festival de cinemas contemporâneos, alguns filmes feitos em países subalternos trazem figuras de morte ao falar de suas cinematografias e assim se somam. Carros fúnebres e fantasmas são usados como condutores das histórias escolhidas pela curadoria do Olhar de Cinema. Na simbologia do tarô, a carta da morte na verdade significa renascimento, algo novo que se aproxima. E no primeiro longa-metragem de Thierne Souleymane Diallo todo o discurso parece se organizar para enganar o sentido comum da morte.
Enquanto o diretor sai em busca de um filme-fantasma rodado em 1953 na Guiné e hoje desaparecido, a cada etapa importante vai até a mãe para pedir sua benção, seguindo a jornada sempre descalço. Quando confrontado a esse respeito, responde que aquilo é uma forma de protesto pelo fato de que sua pesquisa não seja propriamente apoiada financeiramente, e que, portanto, não lhe sobra dinheiro para comprar sapatos. Mas estar sem sapatos andando pelo mundo é também bastante simbólico, e entre tantas possibilidades pode tanto representar humildade, a lembrança dos africanos escravizados que não podiam usar calçados ou também o contato via aterramento com seus antepassados.
Pra mim significa a coragem de fazer do mundo a sua casa, o seu terreiro. Enfrentar o mundo descalço passa também a mensagem de que nada o impedirá de continuar caminhando. E homens mortos não caminham, tampouco carregam seu cinema por aí.
Souleymane está vivo, enquanto os arquivos que encontra pelo caminho não estão. Na antropologia contemporânea é comum a ideia do arquivo como uma prática colonialista. Na Guiné, com a força de sua tradição oral, arquivos físicos tem tanta importância quantos os sapatos de Diallo. “Tudo está arquivado na Cinemateca Francesa” diz um antigo cineasta e professor.
Antes de chegar à França, o diretor passa por diversas turmas de iniciação ao cinema, usando câmeras de papel e a oralidade como artifícios cinematográficos: Seus alunos devem voltar para sala de aula, depois de gravarem seus filmes na memória, e contar o que acontece neles para toda a turma. Lembra um pouco da magia de Rebobine, por favor! de Michel Gondry, que mostra uma comunidade reunida para refazer um filme perdido.
Passando por turmas de adultos e crianças o diretor, enquanto professor, incentiva o uso de materiais e histórias que estão disponíveis no repertório de seus alunos, e nada mais próximo do método Paulo Freire do que a significação do cotidiano para incentivar a aprendizagem. Aliás, para quem já foi oficineira de audiovisual, esse filme é como um abraço. Assim, na esteira de toda a falta de estrutura e recursos que se apresenta sobre o cinema da Guiné nesse filme, posturas como a de Souleymane Diallo subvertem a ideia de falta (ou de morte) e apontam caminhos para a propagação da prática e do amor pelo fazer cinema.
No final das contas, a jornada empreendida atrás do filme citado por estudiosos do cinema africano como um dos primeiros a serem filmados após os processos de descolonização das colônias europeias na África serve apenas como pano de fundo para a caminhada do diretor. Na verdade, ninguém se importa com a materialidade do filme desaparecido: a partir de um texto e do reconto da lenda que dizem fazer parte dele, Souleymane refaz o filme, usando todas as técnicas de que dispõe – da oralidade a improvisação de materiais – para deixar gravada uma mensagem: a de que o cinema da Guiné está vivo.
“Me encantei pelo cinema porque era o único lugar em que eu podia chorar”
Theo Montoya é o narrador de seu filme, que começa e termina em seu quarto na cidade de Medellín, Colômbia. O amor que vai descobrindo pelo cinema o leva a registrar os momentos que divide com os amigos, muitos deles criativos: se transvestem, se maquiam ou simplesmente curtem roupas e acessórios.
Montoya então pensa num filme: num universo em que humanos e fantasmas se comunicam, ele e seus amigos produzirão festas e encontros espectrofílicos, a partir de um app de paquera específico. Logo que um humano transa pela primeira vez com um fantasma, a prática se transforma em febre entre os jovens, que passam a ser perseguidos e presos por isso.
Durante o casting proposto para este filme somos apresentados aos personagens: todos homens, jovens e gays. Entrevistados, conhecemos um pouco de suas histórias e desejos. Temas perturbadores surgem destas conversas: suicídio, vício, abandono e a prática de pequenos delitos ajudam a compor um retrato daquela juventude.
O diretor finalmente acha seu protagonista: Cami, figura que usa o nome de anhell69 nas redes sociais. Dias depois da entrevista, Cami está morto e uma espécie de maldição se abate sobre o filme espectrofílico: vários dos participantes do casting desaparecerem. Daí em diante a ideia do filme se transforma e Montoya passa a investigar o desparecimento violento de tantos rapazes da sua idade em Medellín.
A ideia dos fantasmas se mantém. As imagens aéreas da cidade à noite ajudam a criar o efeito de distopia, com figuras de olhos vermelhos e vestidas de preto que guardam a cidade de cima, como esperando o sinal de suas próximas vítimas. O diretor passa a percorrer a cidade num carro fúnebre dirigido por um de seus ídolos, o diretor Victor Galvíria. O cinema colombiano então é um rabecão. Dentro dele, num caixão, está o futuro. No guidon, seu passado.
Tão profundo quanto plasticamente belo, Anhell69 transforma garotos em anjos perdidos numa cidade amaldiçoada, com fantasmas sempre à espreita. Uma juventude que é pintada meio morta em vida, partilhando sonhos simples e impossíveis. Ao mesmo tempo, sinaliza o terror cotidiano de tantas cidades latino-americanas entregues a falsas guerras anti-drogas, cujas engrenagens parecem servir a um genocídio em massa.
Transformar a dor em algo tão bonito quanto esse filme deve ser também uma maldição terrível.
Dizer que este filme é mais um a trabalhar com a ressignificação de imagens de arquivos públicos e privados e também com a ideia de ficção distópica é fazer uma leitura rasa dele. Acredito que essa profusão de filmes que pensam o mundo pós humanidade ajudam também a refinar o argumento, e é assim que Notas do Eremoceno se apresenta.
Viera Čákanyová cria um universo em que o humano e o analógico estão desaparecendo, enquanto a imortalidade via memórias digitais se configura como num jogo de multientradas. Nesse processo, a protagonista, um ser bastante curioso, percorre seus arquivos pessoais em busca de rastros da língua eslava e sobre a civilização botomori, aquela que deu lugar a humanidade.
Considerando um tanto piegas que Eremoceno seja traduzido como a civilização da solidão, podemos passar por cima disso enquanto observamos a forma como algumas imagens de paisagens e animais são ampliadas e reconfiguradas dimensionalmente, explorando uma realidade desconhecida e suas possibilidades de preenchimento de um espaço tridimensional na realidade bidimensionalizada dos dados, nos pondo no lugar daquela protagonista que já não possui conhecimento sobre a existência de um corpo, do mar ou de um sapo. Tudo são apenas imagens que podem ser tratadas plasticamente e a partir de vários artifícios sem com isso conseguir materializar a experiência de um banho de mar ou do naufrágio de um barco.
A ideia da comunicação via bastões de cristal nos lembra os universos comunicacionais de Ursulla K Le Guin e a ampliação do estatuto de humanidade a outros seres mais que humanos. Essa humanidade ampliada pela ideia da imortalidade virtual ao mesmo tempo em que o humano perde a soberania sobre o mundo é uma das possibilidade aventadas por esse pequeno filme, que joga com apenas alguns fatores possíveis de um futuro cada vez mais automatizado e nossa terceirização das memórias. No fim podemos pedir que a assistente virtual toque nossa música predileta enquanto nos perdemos mais uma vez no universo de dados que chamaremos um dia de eu.
“Aprendi a entrar pelos fundos quando se convencem de que eu não volto mais”
Alguns minutos de tela preta, música ao fundo. Um descanso ativo para mentes cansadas de desentendimento, de sequestros de protagonismos e falsos apaziguamentos. As vozes de Bernardo Oliveira e Negro Léo se alternando em embalar imagens em diferentes qualidades, sem vontade alguma em ser didáticos, seja com relação a raça, religião ou montagem.
Saskia por sua vez entrega uma narrativa onde o som é a linha que devemos seguir para aproveitar a experiência de estarmos “como cachorros dentro d’água no escuro do cinema”: perdidos, incomodados e sem farol. O melhor é se deixar flutuar; fechar os olhos e ouvir as histórias como nos tempos em que não se escrevia nem se filmava.
Caixa Preta opera com os arquivos de forma muito semelhante ao que produz Arthur Jaffa em seus filmes e videoclipes, forma que se tornou também elemento constante em alguns episódios de Atlanta: usar a torrente de imagens com a qual estamos aprendendo a lidar e conviver numa sobreposição maníaca, que flui e devolve violência, opacidade e desentendimento.
Difícil de classificar pelo excesso de sentidos possíveis, dos gatilhos disparados e dos traumas (você escolhe fugir ou encarar?). No final, é melhor mesmo nem entender o que canta aquela pastora. Aceite o transe e deixe o corpo responder.
O encontro dos diretores com a vila mexicana de Zipolite promove a abertura de uma espécie de portal para a cosmologia daquele povo e suas histórias, muitas vezes particulares e noutras vezes a repetição de contos sobre o amor, a saudade e o surgimento do universo.
Entre o nascimento e o desaparecimento de pessoas e estrelas cadentes, Zipolite e seus moradores – entre eles a patinadora Violeta Martinez – surgem a partir de suas histórias como ponto de partida para as investigações dos diretores sobre luz e escuridão, superexposição e camuflagem, assim como o eclipse que dizem ser o mito fundador daquela vila, formada a partir do ajuntamento de pessoas que foram até ali para apreciar o fenômeno natural, a caracterizado pela gradativa escuridão.
Inicialmente utilizando procedimentos documentais, o filme parece partir de uma etnografia que, por falta de subsídios baseados na escala do real, segue naturalmente o detour da ficção, avolumando-se nesse sentido, criando camadas e mais camadas de histórias, que vão a cada vez retornando ao ponto inicial, como a serpente do tempo cíclico. Experimentando imagens de caráter pictórico, aproximando o céu do eclipse e das estrelas com o chão da vila e suas pedras iluminadas pela luz da lua, o segundo momento do filme, que desvia para a noite, como sugere o título, é o que guarda suas melhores performances .
Momentos em que o descontrole é a medida e a ficção toma conta de tudo ao ponto de estarmos diante de uma narrativa sobre o surgimento do universo e suas primeiras personagens, ainda perdidas num tempo sem antes e nem depois. Assim como a personagem de Tilda Swinton em Memória, de Apichatpong Weerasethakul, parece ser uma caçadora de histórias cuja sensibilidade a faz mergulhar de cabeça no universo das personagens que encontra até o ponto de borrar os limites da temporalidade, os diretores de Desvío de Noche se deixam levar pelas possibilidades que encontram nas histórias que lhes são contadas, extraindo delas as rupturas, jogando assim com a matéria tempo como só o cinema é capaz.