ANJOS LOIROS E OBSCENOS: DESEJO FEMININO E CULPA EM TWIN PEAKS: FIRE WALK WITH ME E FALSA LOURA

Por Natália Reis

She is not only a woman in a man’s world; she is also a

receptacle of feeling, a repository of the type of sensibility

we call ‘feminine’

(The Sadeian Woman and The Ideology of Pornography – Angela Carter)

I’m miss world, watch me break and watch me burn

(“Miss World” – Hole)

“Me proteja do que eu quero” 

A frase provavelmente vem à sua mente reluzindo no topo de um edifício da Times Square ou saindo dos lábios perfeitamente desenhados de Brian Molko. A mim, sempre pareceu o verso final de uma oração: “me proteja do que eu quero, amém”. Não saberia dizer se essas palavras aparecem em algum momento na Bíblia, mas vejo-as como uma súplica aflita a uma força maior e extraordinária, capaz de aplacar aquilo que impiedosamente nos lança à aniquilação: o desejo. Em um primeiro momento penso na pobre Deannie Loomis levada à loucura em Clamor do Sexo pela impossibilidade de satisfazer o desejo do amado Bud Stamper e por conseguinte seu próprio desejo de satisfaze-lo. Camille Paglia já afirmou que a tragédia obedece a um paradigma masculino de ascensão e queda, a mulher trágica é um ponto fora da curva, “menos moral que o homem”, “introduz crueldade bruta nas tragédias porque é ela o problema que o gênero tenta corrigir”. Na sua similaridade primordial com as forças caóticas que governam a natureza, a trajetória de uma mulher dificilmente poderia ser descrita com o “agudo pico vertical” do clímax logo antes do declínio. Ainda assim, gostaria de falar sobre duas personagens que conheceram um tipo de desfecho trágico reservado às mulheres que não renunciam à própria vontade: Laura Palmer e Silmara, a falsa loura. 

Comparativamente, a série de TV Twin Peaks (David Lynch, Mark Frost, 1990) e o filme Twin Peaks: Fire Walk with Me (David Lynch, 1992) equivalem a uma cisão entre a alma e o corpo de Laura Palmer, a adolescente encontrada sem vida às margens do rio que corta sua cidade. Na série, Laura é uma lembrança codificada na forma de um porta-retrato/tributo, um nome assombrado, um tema musical, uma ideia que consegue condensar pureza e corrupção no rosto de uma garota morta. Sua presença é uma sombra (ou um halo) que paira sobre os habitantes da cidade de Twin Peaks, é pura imaterialidade e paisagem. Em Twin Peaks: Fire Walk with Me essa presença é puxada para baixo, encarnada e tornada mortal. Acompanhar seus últimos dias é doloroso porque nos aproxima da via crucis de uma jovem que, segundo nos informa os agentes Dale Cooper e Albert Rosenfield, poderia descrever metade das colegiais da América: “sexualmente ativa, usuária de drogas, clamando por ajuda”. É essa manifestação terrena de Laura Palmer que me interessa trazer aqui. No filme de Lynch fica claro que Laura excede o papel de vítima, não é apenas um corpo vitimado pela crueldade e depravação paternas, mas um corpo forjado na essência erótica da transgressão. O sexo e as drogas não são apenas sintomas da degradação moral na qual se afunda em ordem de lidar com o trauma e suas lacunas existenciais, são também outras expressões do desejo. O que faz de Laura Palmer a heroína brutalizada que merece ser colocada num altar é o fato de que sua devassidão e compaixão ardem juntas num mesmo fogo. Quantas vezes martirizamos nossas garotas na recusa em acreditar que essa contradição é possível? 

Numa outra chave, Silmara, a operária que protagoniza Falsa Loura (Carlos Reichenbach, 2007), é regulada por códigos morais próprios inabaláveis. Sexo e trabalho são duas instâncias que não se atravessam e muito menos devem se tocar, visto que o prazer carnal representa a possibilidade de expansão do seu mundo interior para além do universo proletário e da vida familiar de cuidados com o pai. As duas figuras masculinas com quem Silmara se relaciona no filme parecem despontar justamente das suas projeções mais íntimas, manifestações platônicas materializadas por meio da sua vontade – quer seja o jovem líder da banda iluminado no palco da boate que frequenta com as amigas, ou o cantor romântico no pôster do seu quarto embalando seus sonhos eróticos e orgasmos solitários. A questão é que ao adentrarem sua vida, essas mesmas figuras são incapazes de perceber com clareza suas nuances. Para Silmara não é uma questão de dinheiro ou ascensão social, longe disso, é sobre prazer, e o prazer de poder estar no controle das suas fantasias. Não consigo vê-la como uma sonhadora ingênua (para onde muitas leituras apontam), mas vejo uma mulher que opta pela realização dos seus anseios sexuais com a certeza que partiram dela em primeiro lugar. A tragédia é, mais uma vez, tomarem suas intenções como qualquer coisa além da excitação. Quando é dispensada da casa de campo alugada pelo seu ídolo com um envelope de dinheiro, vemos Silmara pela primeira vez se tornar vulnerável frente a incompreensão da sua natureza. Seu olhar distante no fim é trágico não só porque revela sua frustração, mas porque se descola do momento presente e vai inquirir no futuro se existe alguma chance de um dia de fato ter seu desejo compreendido. 

Bataille já disse uma vez que erotismo e santidade se assemelham terrivelmente no que diz respeito à intensidade com que um indivíduo pode experimentá-los. Também disse que ambas as experiências, de alguma forma, conversam com a solidão. No meio de homens mais ou menos gentis, amantes mais ou menos competentes, figuras paternas generosas e abjetas, vejo essas duas mulheres sozinhas cuja cabeleira loira parece sinalizar um tipo de contrato com o reino celestial. Elas carregam o peso das escolhas que fizeram em nome de uma intensidade desautorizada. A ideia inicial desse texto era aproximá-las em suas tragédias individuais como uma espécie de parábola sobre os efeitos da condenação do desejo feminino, mas por fim gostaria que fossem lembradas por um aspecto ainda maior (e mais virtuoso) que o sacrifício: a capacidade de se doar plenamente pelo direito ao gozo. 

FacebookTwitter

COISAS SECRETAS: POR UMA LIBERTINAGEM BARATA

Por Luiz Soares Júnior

Joyce, numa boutade não despida de verossímil, dizia que Wagner fedia a sexo; isto mesmo pode ser dito de Coisas secretas, o filme mais conhecido pelo escândalo do casting masturbatório que por ser um teorema neo-languiano cheio menos de luxúria que de frígida perversidade; Bonitzer dizia que o cinema começou escatológico e glutão e acabou gélido e perverso, com Marnie por exemplo; Coisas secretas flerta decididamente com este segundo e tardio destino, mas Brisseau, que nunca deixou de ser um professor dos subúrbios parisienses, reedita a educação libertina do século XVIII para propósitos mais estritamente minimalistas, dignos de um formato 1:33: são um gesto, um contracampo fulgurante, um close saturado de gelo, a rubrica de cinema moderno rohmeriana da locação em Paris num dia de verão – os materiais razoavelmente nobres de que se serve para sublimar os embates baratos de cash e sexo (tudo barato, módico, quase dirty, como num softporn rodado em Ibiza) que, como o Godard de Paixão nos ensinou (Isabelle Huppert, a operária virgem inspirada em Weill: por que nunca mostram o amor e o trabalho nos filmes?), não estão nada distantes de ilustrar uma certa essência pornográfica do cinema e do olhar contemporâneos, o destino fatal, fatale laideur, daquele mundo desencarnado mas ainda fetichista do vídeo – o mundo das imagens, opostas aqui a um plano clássico de cinema – das imagens celebradas com asco por Daney ao chamar Inferno de GRANDE NADA, e de Bonitzer ao ver um clip de Grace Jones achatado como uma lata de sopa Campbell’s.

Embora tenha como tema e objeto privilegiado a prostituição como meio de ascensão social e ao cabo mitológica, a ênfase de Brisseau, grande cineasta dos corpos erodidos de luz como numa tela de Watteau ou Chardin, nesse que é um de seus últimos bons filmes, é, como todo grande cineasta materialista o sabe, nos meios: é a cartilha gestual e de mise en scène prenhe de clins d’oeil de veneno escópico, com que a stripper desiludida (uma balzaquiana do terceiro arrondissement, subúrbio onde Brisseau ensinou e que inspirou um de seus melhores filmes, De bruit et de fureur) Nathalie presenteia a incauta mas erógena Sandrine: uma grande puta é antes de tudo esta inervação libidinal, energética de um grande corpo místico talhado pela mise en scène para seduzir e destruir, como a trajetória descrita nos ensina aqui, para dobrar a vontade plenipotente do macho que o capitalismo adestrou para vencer segundo a lógica saturnina, coleante, acetinada, sinuosa, rastejante, habitante da chaise longue e do reposteiro de veludo, da Mulher; todo este luxo acumulado pelo corpo que se sabe olhado e goza com isto nos é restituído com esplendor fetichista por Brisseau, o garoto que contempla a cena originária, interdita pelo buraco da fechadura paterna: os momentos pregnantes de sedução de Coisas secretas são sub-reptícios, entrevelados, enviesados, como o sutiã que as moças retiram de dentro de um corpete em plena estação do metrô ou o flagra da masturbação mútua de Sandrine e Nathalie pelo burocrata Delacroix: são feitos para poucos, são um dom para iniciados; é segundo o metro, atalhos inclusos, desta via crucis iniciática do olhar do basílisco fascinado que Nathalie vai instruir Sandrine, um tanto mimeticamente à semelhança do que Brisseau efetiva com seus espectadores, que são também presas e cúmplices; todo o processo nos é industriosamente narrado em off por Sandrine, portanto já senhora dos dons ensinados por Nathalie: já está tudo acabado, arrematado, como aprendemos com os grandes exegetas do maneirismo, que identificam narrativa e morte; mas o gênio de Brisseau é ser o descritor e narrador ocasional do exponencial processo, do sendo; detenhamo-nos na brilhante sequência do flagrante de Delacroix, chefe do escritório por Sandrine, que se masturba na sala aos fundos do cenário; o découpage é exemplar em módico rigor e sobriedade jansenista, quase televisivo sem a luz chapada e a frontalidade acintosa, tudo muito funcional: o homem vem pelo corredor, que já aprendemos a espreitar desde o Night of the demon de Tourneur, mergulhado na semi-obscuridade, e o contracampo o mostra diante de Sandrine, debruçada sobre uma cadeira giratória; Brisseau começa nos mostrando a franja do corpete de Sandrine, suavemente percutido pelo movimento masturbatório; depois vem um plano médio de sua pélvis que arfa e pulsa, na iminência do orgasmo; vemos ainda a mulher num americano petite mort, e finalmente o beijo protocolar no chefe, que se debruça diante desta, agora sujeito de tudo; na sequência seguinte, recém-saída da crisálida, Sandrine, até então mascarada de impassibilidade de monja clarissa, já nos mostra as tetas detrás da porta, enquanto a outra secretária se azafama para entrar: uma metamorfose somática e espiritual, descrita plano a plano com o acólito dos andaimes do découpage, de que a elipse clássica (os franceses a chamam de litote, ou a negação da negação) será o cimento e a pá de cal; os exercícios espirituais de Inácio de Loyola devem ter inspirado Brisseau por aqui.

O poderoso Christophe, alvo final da quête iniciática de Sandrine, que assistiu impassível à descomposição de sua mãe, concluiu deste exploitation doméstico que os homens são marionetes feitas de pau; Bruno Cremer, numa obra-prima injustamente subestimada chamada Un jeu Brutal, é um cientista que toca no rosto da mãe morta e conclui que agora ela é de pedra, como um quartzo; para os melhores Brisseau, tudo se resolve e se arremata no inanimado da cicatrização alegorista, de que suas marionetes frígidas são o instrumento catalisador (o final de Coisas secretas, De Bruit e de fureur e seu pássaro azul); o sexo, para mulheres como Sandrine e Nathalie, é o meio, idealmente epocal numa idade de imagens sem fundo e sem sombra, para conspurcar os valores estabelecidos sem quebrar a superfície vítrea, televisiva e agora de youtuber: a puta é também uma boneca de nanquim e cabelos frisados, imagem ao mesmo tempo da reificação e da bella ideia conspurcada de sêmen; já que não existem mais planos de cinema – habitados por homens e mulheres, por casas e rotas de fuga, on the road ou back street – e sim manequins fossilizadas de prótons, imagens quaisquer, tornadas sublimes pelo fórceps psicótico da serialização televisiva; o genial em Coisas secretas é que este processo de mumificação nos é mostrado, como demonstrado (um teorema languiano, como também um softporn de Norman Rockwell) sem abdicar dos gloriosos instrumentos do classicismo ora pro nobis: tudo se resolve segundo o metro do corte, do découpage, do raccord no eixo da câmera, mas ao contrário da inanidade pornográfica dos dejetos audiovisuais de hoje, que elegem objetos insignificantes para operações formais desprezíveis, os personagens de Brisseau ainda poderiam habitar as páginas de madame de Stäel ou de Sacher-masoch: são putas sujas e arrivistas (e todo grande artista é, no mínimo, um clínico entomologista de sua época: para um tempo de putas iníquas…), mas portadoras de um exemplar álbum de imagens suntuosas, cheias de númen, que nos devolvem pelo avesso o nosso olhar corrompido pela Vulgata televisual, falando-nos, como nos diálogos da alcova de Sade, de ética, compromisso e da dignidade perdida; Brisseau é um moralista, como o foram Péguy e Sorel, o De Palma de Paixão, o Kubrick de Eyes wide shut e o Clint Eastwood de Menina de ouro: toda a imundície narcisista de um tempo voltado ao culto idólatra do próprio umbigo, agora centuplicado pelas câmeras de vigilância dos reality shows, nos é devolvida no espelho convexo destes filmes sulfurosos de superfícies límpidas onde se agitam profundezas turvas de danação. Christophe, o belíssimo monstro de Coisas secretas, é a pedra polida de esmalte e opala que a sociedade de consumo achou no maelström tumultuoso da todestrieb freudiana para melhor consumar seus fetiches carnívoros; ele e Sandrine são belos espécimes de estricnina erógena em estado puro, mas para tal devem parecer eficientes, funcionais – aliás como a mise en scène de Brisseau, que emula esta guerra libidinal na epiderme de um contracampo: the man of the year, ou qualquer coisa assim; a pornografia é a arte explícita por excelência, que é contrária ao erotismo, que sempre deixa uma franja oculta, velada, intersticial: Barthes falou lindamente dele quando nos escreve sobre a fresta cintilante: erótica é a manga entreaberta da camisa ou do punho, que nos deixam entrever no imaginário os pelos crespos sob a casimira; Brisseau, erotômano consumado, não é um pornógrafo, mas fala ad libitum de nosso mundo, corpo e olhar pornográficos; não é pouco testamento para um professor do terceiro ano.

FacebookTwitter

EVA E O FRUTO PROIBIDO OU ARMADILHAS DO CAPITALISMO PARA A LIBERDADE FEMININA

Por Beatriz Vilela

Seguindo o formato das tradicionais pornochanchadas da época, que combinam a comédia com algum outro tipo de gênero – e nesse caso aqui com um drama erótico – Super fêmea (1981), de Anibal Massaini Neto, nos apresenta uma espécie de ficção científica erótica que se ancora na discussão sobre uma maior liberdade sexual entre os sujeitos, para trazer a tela um tema muito caro para a masculinidade brasileira: o uso da pílula de contracepção pelos próprios homens. Ao fazer isso, o diretor nos coloca diante não apenas de mais uma pornochanchada que vai hipersexualizar os corpos femininos e exagerar o prazer visual a partir de performances que brincam com os limites entre o erótico e o pornográfico, como também consegue ironizar sobre as armadilhas proporcionadas pelo capitalismo, no consumo de mais uma nova mercadoria: o fruto proibido, a pílula masculina. Mas aquilo que libertaria as mulheres do uso permanente da pílula acaba se voltando contra elas.

  As cenas iniciais trazem uma assembleia formada por mulheres, onde as juízas esbravejam para um grande grupo de mulheres palavras de ordem que questionam e  condenam a supremacia do poder masculino. Nessa grande horda feminista, assume a liderança a Juíza principal, uma mulher grávida, cujo discurso aquece os ânimos das demais mulheres, que parecem constituir algum tipo de levante com o propósito de intervir na institucionalização do poder médico sobre os seus corpos, a partir dessa docilização do corpo feminino que a estrutura social capitalista nos impõe. Ao abrir o filme, elas anunciam qual será o intuito da pílula masculina, convidando espectador/espectadora a acompanhar a execução desse veredicto. Além de ser o único momento onde as personagens femininas estão em uma posição de poder, essa cena-julgamento também é o único momento onde elas protagonizam a ação sem estar em função de um personagem masculino. A cena finaliza com a juíza gestante gritando em alto e bom som:

MULHERES DO MUNDO TODO UNI-VOS CONTRA A PÍLULA FEMININA! A FAVOR DA PÍLULA MASCULINA! SIGAM-ME AS QUE FOREM BRASILEIRAS!

A juíza está gestando um mundo possível, mas que ao longo de toda trama vai se demonstrando impossível, afinal é possível um capitalismo sem a docilização dos corpos das mulheres? A trajetória de Eva, a protagonista vivenciada por Vera Fischer, percorre um percurso completamente contrário ao que a assembleia está propondo. Assim, durante as próximas sequências, o roteiro caminha para o enfraquecimento desse levante.

Tal como um voyeur observando ao longe, o olhar que apresenta Eva é o olhar que faz do observador o olhar do público, um olhar que começa discreto, e aos poucos vai limando toda e qualquer possibilidade de uma câmera discreta – até porque quando se trata desse corpo em tela, objeto de desejo do capitalismo, é quase inconciliável a ideia de uma imagem discreta. Basta observarmos retrospectivamente a própria história do cinema, que testemunha, a partir de suas visualidades, como nosso corpo é representado de forma indiscreta, sendo constantemente vigiado, patrulhado e observado por esse voyeur que nem sempre faz questão de se manter indiscreto.

Eva é retirada, de forma violenta, do seu paraíso para se aliar à campanha da pílula masculina. Sem Adão, ela será levada por uma legião de homens para conhecer o plano terreno: seus gritos de socorro parecem ser inaudíveis, fora do paraíso não há salvação. A assinatura do contrato, que vincula Eva ao fruto proibido, revela quem são os anjos que conduzem Eva a cidade dos homens, e nesse plano médio Eva está atônita, é necessário que ela pactue sua saída do paraíso, e entregue ao deus-empresa sua beleza, sua pureza, seu útero, sua buceta, sua vida. Nssa sequência também há vários close-up que revelam a força da padronização de uma masculinidade heteronormativa, os anjos estão de terno, em contraste com o manto sagrado de Eva: o biquini. Falo em uma força da padronização dessa masculinidade pois, além dos próprios homens, é possível avistar mulheres e gays, que também são caracterizados como homens. Ser mulher é a exceção. Eva é a exceção. O enlace entre Eva e o fruto proibido, estabelecido pelo pacto (vulgo contrato), implica em convencer o seu público-alvo, os homens, da grandiosidade desse fruto, que carrega um poder mágico. E para que esse fruto proibido passe a ser fetichizado por essa sociedade, a publicidade aposta no discurso do fortalecimento da virilidade masculina:

EJACULE, EJACULE SEM PREOCUPAÇÃO

É o que incentiva a propaganda. Gozar sem medo, e com isso emancipar a mulher da responsabilidade de controlar a procriação. Aqui o propósito da assembleia parece até estar próximo de se concretizar. Até que a trama começa a apostar não nessa emancipação das mulheres, com um viés feminista, mas na emancipação masculina da dependência da mulher no controle da natalidade. Na farmácia, espaço sagrado do fruto proibido, há um cartaz com a propaganda de Eva, e uma fileira de homens sedentos pela novidade, pelo pecado com Eva. Para excitá-los ainda mais, ela é colocada a prêmio, seu possível Adão virá de um sorteio. O fruto proibido é vendido como se fosse uma poção mágica, que elevará o desejo dos homens, levando-os a consumar, de qualquer modo, seu impulso sexual: uma espécie de desejo coletivo descontrolado invade a cidade. Não há propriamente cenas de sexo explícito, acessamos um conjunto de insinuações que são marcadas por atuações que elevam a excitação, e colocam a concretude do ato no campo extradiegético, o pecado não é visto.

Apesar de Superfemêa trazer dilemas sociais que expressam as novas configurações das relações sociais dess período, com a mudança no equilíbrio da balança de poder entre homens e mulheres, a ascensão das mulheres em diferentes espaços da vida social, o uso dos contraceptivos, e uma maior exposição de casais formados por pessoas do mesmo sexo, o modo como a narrativa conduz a aceitação coletiva do fruto proibido, a pílula masculina, ainda é marcada pelas armadilhas da estrutura capitalista, que apesar de reforçar um ideal de liberdade aos corpos femininos, acaba fortalecendo uma masculinidade que afugenta e pune as outras Evas, retirando-as de seus paraísos, e lembrando que o inferno é aqui mesmo.

     O impacto da fetichização do fruto proibido fica visível quando os homens são tomados pelo descontrole sexual. Inebriados pela pílula, eles atacam todas as mulheres ao seu redor: há cenas em que o padre invade o convento em busca das freiras, em outra os velhinhos do asilo agarram as enfermeiras. Não houve consentimento dessas mulheres. Tanto as freiras como as enfermeiras não autorizaram a realização desses atos sexuais, mas como essas situações são dramatizadas a partir da comédia, elas são validadas como se fosse uma brincadeira, a violência parece não ser legítima. As expressões das  personagens femininas mostram que elas se negaram, mas os homens continuaram o  ataque. O estupro é deliberado e normalizado. A princípio, fiquei pensando como esse conjunto de violência ganha outros sentidos a partir da comédia, e o que isso diz sobre a nossa humanidade. Na obra Comicidade e Riso (1946), do autor Vladímir Propp, ele apresenta um conjunto de reflexões sobre os vários aspectos da comédia na arte dramática, e acho que elas também valem para o cinema. Para ele, o riso é incompatível com a dor, e quando percebemos que a pessoa está sofrendo, por exemplo, em momentos onde alguém ri de uma situação triste, associamos esse riso a uma dimensão monstruosa da nossa humanidade, de modo que a dignidade de quem ri é colocada em risco, por não perceber ou mesmo por desrespeitar uma convenção social, que entende, que naquele momento aquele riso não é legítimo. Nesse sentido, em Superfêmea, o riso e a dor não são compatíveis: assim como em todo cinema da pornochanchada, a dor é escancarada e revela nossas feridas sociais. E talvez seja essa uma das principais marcas dessas obras, colocar nossa humanidade em risco ao unir a dor ao riso.

VÊNUS CONDENA EVA

    Na tentativa de comprometer a sacralização do fruto proibido, a empresa de preservativos masculino, que se chama Vênus, cria uma suspeição para minar a campanha publicitária da pílula. O propósito deles é evidenciar que Eva também gosta de outras Evas, há uma tentativa de imprimir a lesbianidade como algo que poderia pôr em risco seu capital sexual, na cidade dos homens não há espaço para o amor entre Evas. O ponto alto do filme é a perseguição que Eva passa a vivenciar, através de uma mistura de suspense e ação: nesse momento a condição de Eva é elevada, e de vítima ela passa a ser a protagonista que direciona seu próprio caminho. Eva foge do ganhador do sorteio, que exige o cumprimento do acordo, a realização do pecado, como fato consumado. 

Apesar da fuga elevar o papel da super fêmea, a trama se encerra com a inviabilidade da pílula masculina e a punição de Eva. Ela está grávida. Será que Eva gesta um novo mundo para outros homens e mulheres? Será que ela irá parir um povo feliz, um povo desenvolvido? A super fêmea se torna uma supermãe, e agora padece em outro paraíso.

Desse modo, a partir da junção entre a comédia e o erótico,  o filme consegue ironizar a docilização dos corpos femininos. A pílula que deveria, teoricamente, trazer mais autonomia e liberdade às mulheres, acaba se tornando uma armadilha, pois ela cumpre o papel contrário: ela legitima uma série de violência contra as próprias mulheres – que há tempos sonham com a existência da pílula – uma gestante abre e uma mãe encerra o ciclo, tal como o ciclo natural da vida, que se faz em círculos, e se repete, assim se mantendo as armadilhas do capitalismo.

FacebookTwitter

VISÕES ONÍRICAS E PERCEPÇÕES DO ERÓTICO EM FUSES (Carolee Shneemann, 1967)

Por Carolina Azevedo 

Aceite as visões oníricas, devaneios ou sonhos, como aceitaria as assim chamadas cenas reais. Dê espaço até para a percepção real das abstrações que se movem intensamente quando pressionamos as pálpebras fechadas.

(Stan Brakhage, Metáforas da visão, 1963)

Pensar no erotismo no cinema é esbarrar em um desejo que nasce do sonho. Como escreveu André Bazin em À margem de “o erotismo no cinema” (Cahiers du Cinéma, 1957), “o essencial está no onirismo do cinema […] Ora, sabemos muito bem que todo sonho é, em última análise, erótico”. Similarmente, em Metáforas da visão (1963), Stan Brakhage defende um olhar cinematográfico que antecede o realismo que criou o cinema hollywoodiano: “Imagine um mundo animado por objetos incompreensíveis e brilhando com uma variedade infinita de movimentos e gradações de cor. Imagine um mundo antes de ‘no princípio era o verbo’”. Esse é também o mundo dos sonhos, de onde nasce um cinema que, filho de Méliès, toma a forma da magia.

Carolee Schneemann decidiu filmar Fuses (1967) após ver sua percepção abrir-se aos mistérios do corpo feminino em Window Water Baby Moving (1959), de Stan Brakhage. Durante três anos, a artista filmou os encontros sexuais que teve com seu parceiro – o músico James Tenney – através do olhar de seu gato, Kitch. Em imagens turvas de uma película que foi colorida, riscada, queimada e mergulhada em ácido, as energias sexuais são materializadas, recombinadas entre o transparente e o opaco para transformar o pornográfico – explícito – em íntimo – segredo. Os corpos brilham sob as luzes que entram pelas janelas a cada estação, de onde o gato observa, servindo como câmera escura que transforma a luz em fragmentos abstratos de percepção. É o cinema que antecede o verbo. 

O filme, no entanto, nasce de sua antítese: um cinema, como define Brakhage, “amedrontado pela esterilidade sexual”, ou Bazin, “dono de uma longa, rica e bizantina cultura da censura”. Fuses, nesse sentido, é descendente direto de Hypocrites (1915), de Lois Weber: um homem esculpe a verdade em toda sua nudez e é assassinado por um levante puritano; então, o  nu fantasmagórico assombra a burguesia puritana e escancara suas contradições. Durante as performances de Meat Joy (1964), Schneemann tornou-se essa figura dupla quando chegou a ser agredida por espectadores que se sentiram ultrajados pelo seu uso do corpo nu enquanto arte. Apesar de ter vivido o auge da libertação sexual, a artista escreve que se sentia completamente sozinha em sua insistência em integrar sua sexualidade e sua criatividade.

Naquele momento, o que ainda distanciava o nu feminino que havia sido esculpido pelas mãos do homem daquele que não fora fabricado enquanto imagem, mas reproduzido no próprio corpo da artista? Schneemann escreve: “Era permitido que eu fosse uma imagem mas não uma criadora de imagens construindo sua própria autoimagem. Se eu tivesse apenas dançado ou atuado, teria mantido formas de expressão feminina aceitáveis para a cultura.”

 Além dela, Chantal Akerman, Barbara Hammer e Ana Mendieta foram algumas das que tentaram devolver o corpo e o erotismo a si mesmas em seus cinemas e performances. As vontades que movimentaram o primeiro filme de Schneemann foram muitas: “Invadir os tabus contra a vitalidade do corpo nu em movimento, erotizar minha cultura culpada e confundir ainda mais as rigidezas sexuais – pois a vida do corpo é mais expressiva de maneiras diversas do que uma sociedade com atitude negativa em relação ao sexo pode admitir.” Portanto, caracterizar sua arte através de adjetivações que vão do provocativo ao pornográfico é equivocado, face aos esforços artísticos que rendem revisões àquelas imagens tão silenciosas quanto explícitas mais de 50 anos depois.

No texto de 1957, Bazin conclui que, para fazer um cinema erótico que permanece no plano da arte, é preciso se ater ao imaginário, o que se faz através do segredo. “O cinema pode dizer tudo, mas não de forma alguma tudo mostrar.” As imagens do sexo que passam pela tela em Fuses, são encobertas por uma camada de sonho que se materializa não apenas nas intervenções na película – os tons de roxo, azul e verde – mas no ambiente que cerca os amantes. A casa da artista e os seus arredores contam sua própria história de amor. 

O recuo das janelas, o roxo das paredes do quarto e a árvore de natal que enfeita a sala no final do filme fazem com que a casa que o casal tinha acabado de comprar, em New Paltz, envolva a coreografia de Fuses como um cenário de estúdio, pensado para cada cena. A artista escreveu: “[A casa] é minha musa, é meu recipiente, é minha fonte de sonho e função. É meu trabalho e todo o meu trabalho vem da casa, e minha identidade para o cerne da minha vida é esta casa.”

Fugindo da intimidade da casa, imagens de Schneemann correndo nua por uma praia dão o tom onírico definitivo ao filme. No corpo sozinho ou nas imagens da natureza que o cercam, o potencial do erotismo perpassa o ato que ocupa o restante do filme, e a intimidade transcende em direção a tudo que a película registra. Na materialidade do filme e na espontâneidade do movimento, a pulsão do primeiro filme de Schneemann se iguala ao potencial original do cinema, erótico por sua natureza onírica; material e cinético – um cinema do olho não governado pelas leis fabricadas da perspectiva, livre dos preconceitos da lógica da composição, definindo-se na imagem (reel life) mais do que na realidade (real life).

FacebookTwitter

EDITORIAL: O ERÓTICO E O PORNOGRÁFICO

por João Lucas Pedrosa

Apesar de o maior consenso nas discussões entre erotismo e pornografia ser que a diferença entre ambos é turva e ambígua, as diferenças são palpáveis na filosofia de suas respectivas estéticas. Decerto que ambas tratam do corpo, da provocação da carne e da promessa (ou consumação) do contato sexual. Se partirmos do erotismo como Georges Bataille o define, ele parte da manifestação da descontinuidade do ser. Morremos e, portanto, somos finitos física e psiquicamente, mantidos talvez genética e memorialmente pela prole, pela reprodução. A sensação, unicamente psicológica, da continuidade se estabelece pela manifestação concreta ou estético-simbólica do erotismo, seja pela carne (o membro que penetra adentro como uma faca, o sexo que flerta com o desmonte e remonte uno dos corpos envolvidos), pelo amor (o “eu” que continua pelo vínculo com o “tu”), pela religião (a expansão transcendental do íntimo). Sob essa chave, o erotismo se alimenta de uma noção de limite – definido, a princípio, pela morte. O erotismo existe por causa da morte. Transamos porque morremos. Se cientificamente, a necessidade é reproduzir, psiquicamente, é ser eterno (por um momento que seja). Bataille se estende à noção de interdições e transgressões, na medida em que o prazer vem de uma transgressão que suspende sem nunca suprimir a proibição, porque dela depende. Como o tesão do casado em “pular a cerca”, mas não em se divorciar ou abrir o relacionamento. Como o tesão do pastor em dar para a travesti na encolha sem abdicar do sermão dominicano. O prazer é de, por um tempo determinado, suspender o rigor do casamento, o ascetismo da religião, a iminência da morte.

Sendo assim, o cinema é erótico desde que nasceu. Pela sua batalha contra a morte que inevitavelmente registra sua ação sobre os corpos das gentes, dos animais e das cidades; pelo limite que o enquadramento impõe, a fragmentação do todo que faz do extracampo uma provocação estendida ad eternum, uma inevitável, incontornável metonímia do mundo; a montagem que esconde ou ostenta a descontinuidade de cada plano; o “eterno enquanto dure” num plano de Apichatpong Weerasethakul ou James Benning ou Chantal Akerman. O cinematógrafo é uma ferramenta de continuação da imagem.

A pornografia funciona numa chave análoga e, ao mesmo tempo, quase oposta. É intimamente ligada ao obsceno (não apenas no que fere o pudor, mas no que reside usualmente fora da cena) ao ostentá-lo: exibe a genitália, a penetração, a cunilíngua, a felação, o beijo grego, a fistada, etc. Trazer à luz a imagem escondida – e daí sua afinidade com o gore, as imagens explícitas de violência que ostentam o sangue e as tripas escondidos sob a pele e sob os músculos. É a suposta revelação de todo segredo que pode, e, talvez, a mais bem-sucedida ilusão de transparência – à medida que se segura na encenação da imagem de choque para reivindicá-la. Os gestos sexuais explícitos se seguram na condição de acontecimentos, mesmo sob um espalhafatoso, ostensivo crivo de ficção (as atuações nos filmes de indústria pornô tendem à iconicidade camp não apenas pela falta, como mesmo pela rejeição da naturalidade). Com frequência, a pornografia é amalgamada com o farsesco. Retomemos o potencial primeiro filme erótico, Le Coucher de la Mariée (Eugene Pirou, 1896): 

Dois recém casados – um homem de smoking e uma mulher de vestido de noiva – estão sentados lado a lado dentro de um quarto. Ele beija sua mão e tira os sapatos dela e, quando parte para beijá-la, ela recusa e aponta para o biombo atrás deles. Ela o posiciona entre si e -, pelo que indica o contexto, – seu marido, e começa a despir-se sorrindo e olhando para a câmera, exibindo e ostentando cada camada para nós. Aqui, o jogo pulsional é diretamente ligado à estrutura cênica: há um segredo ao qual só nós, de fora, temos acesso. A posição de voyeur nos garante um prazer que é negado ao marido, que virá a consumir o casamento. Aqui, a visão é liberadora, enquanto a consumação é privada do sentido principal que constitui a obra: o prazer da visão. Um jogo sacana, em que a visão tem mais poder que a ação. 

Frame de Le Coucher de la Mariée

Nuno César Abreu, em “O Olhar Pornô”, retoma o pensamento de Jean Baudrillard acerca de como “a obscenidade é uma tentativa desesperada de sedução pela evidência grosseira da verdade”. Naturalmente, a obscenidade é um conceito altamente variável entre tempos, espaços e circunstâncias de onde se fala, e o que sobreviveu de Le Coucher… poderia estar, hoje, num filme para todas as idades. A grosseria da “verdade” em questão também é discutível, e prefiro entender que Baudrillard refere-se a um apelo como a, por exemplo, a quebra de quarta parede da noiva, assim como seus trejeitos afetados, seu sorriso malicioso e caloroso para nós. A função do burlesco em sua interpretação para nós é dizer a sedução ao invés de fazê-la.

Onde, nessa reflexão, ficam as pornochanchadas políticas de diretores como Carlos Reichenbach e Neville D’Almeida, cujos estereótipos farsescos refletem farsas do próprio extrato sociopolítico brasileiro, e o sexo funciona como elemento de suspensão momentânea desse funcionamento, ostentador de sua hipocrisia? O plano da penetração no início de Anticristo (Lars von Trier, 2009), que prenuncia a morte da prole dos que consumam o ato reprodutivo? As inúmeras cenas de sexo explícito em O Império dos Sentidos (Nagisa Oshima, 1976), que vão gradativamente do encantamento à mortificação? As duas cenas antitéticas de sexo em Je, Tu, Il, Elle (Chantal Akerman, 1974), em que um homem em close up solo descreve comandos de masturbação à protagonista, em contraste com a cena de sexo a duas, em que o casal lésbico em plano inteiro conjunto não solta uma palavra e quase não estimula as genitais diretamente? Longe de encaixar obras assim na categoria “erótica” ou “pornográfica”, esta edição pretende aprofundar-se no espectro de potências, problemáticas e abordagens autorais nas representações do sexo e do corpo no audiovisual. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Nuno Cesar. O Olhar pornô: A representação do obsceno no cinema e no vídeo. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2012.

BATAILLE, Georges. O Erotismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
BAUDRILLARD, Jean. “What are you doing after the orgy?”. Travers, nº 29, 1983.

FacebookTwitter

MOSTRAR O CORPO PRA FALAR DO ESPÍRITO

Por Chico Torres 

Disse Paulo Emílio que o pior filme brasileiro ainda nos é melhor do que o mais genial dos filmes estrangeiros. Disse Walter Benjamin que era preciso construir uma arte bárbara, uma barbárie positiva no seio da modernidade, uma arte capaz de começar do zero, de fundar a sua própria tábula rasa. E disse Oswald coisas sobre a rítmica religiosa, sobre os transes, os transidos, as alucinações sob o sol escaldante do Brasil. 

Tudo isso está em Carlos Reichenbach, iluminando seus olhos de boca do lixo, olhos anarquistas para dentro dos preconceitos e das putarias do Brasil, e por isso não mais a subversão e sim a transgressão. Um cinema para além da política porque a política nunca foi suficiente para o cinema, porque politizar o cinema é o querer sério demais, sob o controle de diretrizes bem estabelecidas. E se um dia Reichenbach quis mudar o mundo através de um cinema político, logo percebeu que era mais útil pensar o mundo formulando uma carnavalização do Brasil. 

E a pornochanchada de Reichenbach, não totalmente anárquica, se leva a sério demais; o seu sexo é interlúdio para os “assuntos importantes”, e os seus personagens são tipos, retratos da pequenice e grandiosidade humanas. Em Império do Desejo todos são meio maldosos e frágeis, personagens que carregam as máculas da civilização em seus voos e pousos forçados. Tudo parece se resumir em crítica à moralidade, comentário político e elogio da loucura, uma tríade inevitavelmente explorada através do desejo. O sexo é o balizador de todas as relações que se dão sob a marca da propriedade. A preocupação política é disfarçada através da sensualidade das imagens. Enquanto os moralistas barganham suas perversões através da afirmação do poder pela propriedade, o casal hippie trepa da forma mais desinibida possível, se abrindo para uma utopia naturalista, porque Carlão é, antes de mais nada, um utopista. 

E mesmo que para eles o sexo tenha algo de inocente e puro, há ainda sobre suas cabeças a sombra funesta do ciúme e do desejo de posse. Nico, apesar de todo o sofrimento (ainda que reprimido) em ver sua amada nas mãos dos moralistas, se mantém fiel aos seus princípios libertários e a deixa livre para foder com quem ela quiser. Para o bem ou para o mal, um filme de princípios. No fim das contas é tudo sobre o Brasil, esse lugar do impossível e, por isso mesmo, cheio de realizações impossíveis: puritanismo via sexo anal; Ménage inaudito entre hippies e caretas; rituais e canibalismo feitos por um gigantesco homem branco que enlouqueceu por inadequação social. Reichenbach, um dos últimos socialistas utópicos (segundo ele mesmo) fazendo deboche da esquerda fundamentada na mentalidade pequeno-burguesa de intelectualidade sem praxis. E tudo soa ridículo, extremamente caricato, porque segundo o manifesto do cinema cafajeste, o que se quer é um cinema de comunicação direta.

Em Extremos do Prazer há a mesma tríade (moralismo, política e loucura), a mesma obsessão de Carlão, mas agora sob uma dimensão trágica. Tão atual nos é a representação de uma sociedade cindida: de um lado o intelectual frustrado, assombrado pela derrota pessoal e utópica, resquício da ditadura militar que não só torturou os corpos, mas destroçou as almas daqueles que restaram vivos. Do outro, a classe média em ascendência, os tecnocratas, os meritocratas, os que desejam a grana acima de tudo. Estupradores, misóginos, anti-intelectuais, figuras que brotaram do esgoto da história e que estão por aí, institucionalizados. 

Apesar desse esquema, os personagens mais fechados em sua caretice acabam sempre sucumbindo às almas mais libertárias. Carvalho, o advogado mercenário de Império do Desejo, abandona a sua família para propor ao casal hippie uma vida idílica em um sítio. E o filme termina de forma perturbadora, em falsa felicidade. Enquanto a exploração da propriedade continua, Nico e Lucinha seguem, alienados, a se amar na grama. Já Ricardo, o reaça de Extremos do Prazer, recalca a todo momento o seu desejo de se aproximar daquilo que lhe é estranho, mas que o fascina: socialismo, liberdade sexual, intelectualismo etc etc. Carlão parece jogar com ambivalências, o sexo pode alienar tanto quanto libertar: pode ser caminho para uma política libertária, assim como para um processo de escamoteamento das mazelas sociais. De todo modo, sempre o sexo, sempre o desejo: “a gente tem que tentar a utopia a partir de nossas relações familiares e eróticas”. 

Em sua utopia do artesanato, é como se Reichenbach não pudesse se decidir, e talvez essa indecisão seja um mérito. Há muita seriedade em seus filmes, mas não o suficiente para se evitar uma sacanagenzinha de vez em quando, porque a sacanagem quase sempre tem algo a dizer sobre o discurso que está sendo desenvolvido no filme. Assim agrada a gregos e troianos, aglutinando o melhor dos dois mundos, porque é vanguarda e é banal. Intelectuais e punheteiros se curvam às artinhas de Carlão, autor para ser visto com a mão no queixo e de pernas cruzadas num cinema sujo de um centro metropolitano qualquer.  Mostrar o corpo para falar do espírito, é assim o cinema de Reichenbach, do Carlão.

FacebookTwitter

Orlando, minha biografia política (Paul B. Preciado, 2023)

Por Geo Abreu

Paul B. Preciado, o conhecido filósofo e autor de Manifesto Contrassexual e Apartamento em Urano, dirige seu primeiro filme. Uma biografia multivocal, com diversos Orlandos interpretando a personagem do livro homônimo de Virginia Woolf, cuja história é utilizada pelo diretor como espelho, renovando assim o interesse por esse clássico da literatura.

Existe um meme correndo por aí que pode ajudar a entender a relação de Preciado com o cinema e a literatura: uma foto dele com a frase “é muito importante a ficção, porque a realidade não tem relatos que te salvem” (tradução minha). Comentando sobre outro livro seu, Testo Junkie, o filósofo afirma ter produzido uma auto ficção, relatando a experiência com uso de testogel em sua transição, ao mesmo tempo em que elabora a ideia de regime farmacopornográfico, historicizando as mudanças tecnológicas e intervenções medicamentosas que vão sendo normalizadas e aplicadas em massa em nome da produção da sociedade heternormativa.   

A autoficção funciona então como experimentação, livro e filme como externalização dos relatos. Essa aparência muitas vezes pedagógica que Orlando assume me lembrou Vênus de Nyke (2021), filme dirigido por André Antônio. Nele, o personagem principal aparece em consultas com sua analista fazendo um inventário de seus desejos e pulsões, que de tão fortes, dominam boa parte de sua vida. Ao mesmo tempo, o filme da produtora Surto & Deslumbramento inventaria também livros, músicas, personagens e diretores gays, como Pier Paolo Pasolini e Kenneth Anger, por exemplo, deixando nos créditos uma lista de referências a quem porventura as esteja procurando.

Orlando/Preciado é econômico nesse sentido e usa apenas o texto de Woolf, adotando o romance como obra de referência queer, num gesto de tomada para si, de aproximação com a obra de uma autora notadamente identificada com a causa feminista. O talento de Woolf com as palavras, compartilhado com o diretor, também se transforma no mote para a criação de novos mundos, em que a existência de experiências trans é marcada numa linha do tempo bastante extensa.

Usar a ideia de poesia como alegoria para discurso é o que dá o tom político ao filme. No lugar de pôr os personagens para contar suas experiências em entrevistas clássicas, Preciado escolhe misturar os relatos pessoais de cada um com a ficção escrita por Woolf, embaralhando os limites entre “realidade” ou ficção. Em alguns momentos, os personagens trazem a tona essa ideia das pessoas trans como “poetas de gênero” – praticando esse exercício de nomear as coisas num mundo novo, em que suas existências são verificadas e historicizadas – e chegando ao limite do esforço empregado nesse ativismo: “somos poetas contra vontade.”, o que nos faz retomar o meme: “é muito importante a ficção, porque a realidade não tem relatos que te salvem”.

Vale dizer que nesse trabalho com as palavras, Preciado não escreve nem dirige filmes de forma rebuscada. O ritmo é sexy e empolgante. No trecho abaixo, retirado de uma resenha sobre Testo Junkie, algo de fundamental em sua obra ganha destaque:

“Diante disso, parece haver algo de novo na escrita do filósofo Paul B. Preciado: a experiência de ler seus textos filosóficos excita. Suas palavras incendeiam o corpo. Mostram a força do erotismo em sua versão não sublimada. Tesão, portanto, não é aqui apenas uma força de expressão.”[1]

Assim também Preciado dirige o filme, fazendo da auto ficção aquilo que nos move e incendeia, jogando para que nos tornemos aliadas, amantes, fãs. As imagens criadas por ele nos colocam em posição de combate a respeito da política de produção de corpos, da reprodução de um sistema binário que trata a diferença como desvio, ao mesmo tempo em que nos leva a pensar em outras possibilidade de acesso ao desejo, além da projeção de formas livres de estar vivo e criativo no mundo.

Nesse contexto, uma das frases mais românticas que vi em filmes ultimamente aparece na encenação do reconhecimento entre Orlando e Sasha:

“- Você percebeu que eu não sou homem, tampouco mulher?

– Sim. Você é diferente de todo mundo que eu já conheci”

Clichê ressignificado aqui. Viver o amor em tempos que ainda estamos inventando.


[1] https://revistacult.uol.com.br/home/sobre-a-filosofia-paul-b-preciado/

FacebookTwitter

Monster (Hirokazu Kore-eda, 2023)

Por Pedro Tavares

Hirokazu Kore-eda consolidou seu trabalho ao longo dos anos com abordagens melodramáticas em conluio com tramas de temas diversos, mas com poucas mudanças de perspectiva quando se trata da posição do narrador – em comum, o ensejo de transparecer a consciência das emoções. Monster, seu novo filme, significa uma mudança importante neste método. Após uma trinca questionável com Shoplifters (2018), The Truth (2019) e Broker (2022), sendo estes dois últimos produzidos fora do Japão e que evidenciaram certo engessamento do trabalho, seu retorno ao país de origem traz novos desafios na construção das emoções além de elemento-suporte narrativo.

É pela montagem que Monster se estabiliza e é uma surpresa já que seus minutos iniciais apontam para um outro lugar. O filme deixa de ser um drama envolvendo o amor incondicional de uma mãe pelo filho e resolve, pela montagem, sufocar este fio narrativo e estilhaçar as emoções a partir do questionamento. Em diversas camadas, o filme de Kore-eda coloca as motivações e caráter de seus personagens em questão e aborta sua relação com o cotidiano tão tradicionais e que renderam filmes como Like Father, Like Son (2013), Our Little Sister (2015) e o próprio Shoplifters. Em nome do afeto e da dor, Monster oculta a linearidade para evidenciar os horrores da violência e seus desdobramentos.

Há golpes de vista bem interessantes no filme a notar que todas as camadas partem do mesmo princípio. Ou seja, seus personagens estão ligados diretamente e desta costura de sentimentos e traumas que passam pela culpa, amor, ausência e principalmente pela dor, construídos por Kore-eda em microcosmos e nos aproximando das raízes de cada atitude vista. Com o mesmo modus operandi há o seu contraponto, a relação direta com a segurança e como ela é instintiva. Com este extremo, Monster constrói uma relação intensa e devastadora tanto pela percepção infantil quanto pela vida adulta.

O novo filme de Kore-eda se estabelece como uma análise sobre a volatilidade de nossos julgamentos sobre o próximo e como nossa complexidade oferece saídas inesperadas. Em conluio com as mudanças de perspectiva, estas intenções são acentuadas e assim como Kurosawa e Hitchcock que passearam pelo mesmo intuito, colocam, em primeiro lugar, o espectador como grande conjecturador – e também como réu.  

FacebookTwitter

American Lightning (Kurtis Matthew Russell, 2023)

Nas últimas décadas o conceito de cinema independente, em especial o dos Estados Unidos, passou por grandes mudanças. Com a proliferação de câmeras portáteis e aparelhos de telefone celular e das redes sociais, o que estava ligado aos filmes feitos por pequenos grupos e essencialmente com baixo orçamento ganhou novas camadas. O último grande chamariz do cinema independente americano foi o mumblecore que como uma grande teia de amigos e artistas colocou nomes como os irmãos Duplass, Greta Gerwig e Joe Swanberg no mainstream. Nos últimos anos coletivos e movimentos espontâneos foram criados a exemplo do Folk Filmmaking criado pelo norte-americano Don Letz e que independentemente de onde o filme seja ou do seu estilo e gênero, o que caracteriza o filme “folk” é ele estar gratuitamente disponível na Internet. O mecanismo de distribuição, neste caso, é o principal baluarte para a criação de um coletivo. Outros sites e iniciativas como o No Budge que reúne filmes de realizadores independentes via streaming e o grupo Kinet, que conta com integrantes canadenses como Kurt Walker e Neil Bahadur, por exemplo, transparecem como as redes sociais e ferramentas de exibição fundem em como cineastas lidam com a internet para salientar suas produções independentes.

Vindo de Portland, Kurtis Matthew Russell dirigiu seu primeiro longa Silent Monologues e o disponibilizou online no primeiro semestre de 2023. O filme apresenta um drama familiar com a crueldade como sugestão para outros gêneros como a comédia e o film noir. A partir do uso da casa como um grande palco, Russell dialoga diretamente com a assertividade da imagem digital – naturalmente insuave e em certos momentos, violenta. Em American Lightning, seu novo filme, também lançado em 2023, Russell faz desta rota como melhor forma de abordagem. É da ironia que o diretor tira seus comentários sobre o mundo artístico e como a banalização de seus elementos externos podem acabar com qualquer experiência. O processo de produção, exibição e divulgação ganham contornos e labirintos existenciais que acabam por destituir o que é o artista.

Por se tratar de um filme essencialmente independente, o do it yourself deixa claras marcas no discurso sobre o comércio de obras artísticas, a presunção do público e camadas que iludem aqueles que fazem parte de microcosmos que permitem a dissociação do real a partir da falsa ideia de sucesso. E, suportado por uma entrevista com um artista em conflito que conta suas desventuras, Matthew Russell reconstituí estas histórias com acidez e deboche que curiosamente remetem a referências do cinema independente americano de outrora como Todd Solondz, Peter Bogdanovich e Kevin Smith.

O “raio” americano do título do filme é uma boa forma de alusão às sinapses de artistas dispostos a acertar um ponto e que na cruel prática da automanipulação – que é inerente ao ambiente de trabalho – almejam ser alguém para os outros, colocando assim a celebração à arte, e em especial o cinema americano como um grande objeto de estudo. Nele, Matthew Russell coloca em xeque a intenção de produções em cadeia, de autoria e, claro, do ego e talento dos realizadores.

FacebookTwitter

Tia Virgínia (Fabio Meira, 2023)

Por Pedro Tavares

Um corpo presente e um fantasma em forma de lembrança tomam o palco. Sim, o palco, pois Tia Virginia evoca a história familiar num jogo cruel de similaridades com o imaginário de muitas famílias brasileiras como uma peça teatral pelo trato com o espaço cênico. Os personagens vêm e vão, ganham seu cosmo de atenção e flutuam sempre entre o protagonismo e antagonismo com intensidade.

O trabalho de Fabio Meira em concatenar lembranças, mágoas e conflitos vai além de mediar ritmo e gestos destes corpos em constante verborragia. Nivelar rigorosamente as mudanças de tom dos assuntos como uma dicotomia equilíbrio-desiquilíbrio como retrato do cotidiano de uma família que encontra a pacificidade nas frivolidades e que tem Virginia como uma presença a mediar os espaços e tempo e quando e onde a falsa alegria durará.

Enquanto estes corpos passeiam pela casa o grande enigma está em como esta família possui um ideal de perfeição – cada um à sua maneira – e as melhores resoluções, mas sempre a ignorar o corpo presente. Dado este problema, entra a questão da função das imagens que desde sua origem nega-se a implementar a observação fixa e preza pelo dinamismo presumivelmente cinematográfico. Por mais que pareça encontrar um labirinto que necessita de uma fácil e rápida equação para a fuga em diversos momentos, o filme de Meira mantém pelo seu rigor o maior de seus efeitos: enquanto todos andam e falam, o grande estopim está estático, frio, a observar.

E como comentário à essa frieza, Tia Virgínia é um filme que possui certa barbaridade a saber que está a identificar diversos casos dentro de um escopo e que isto potencializa sua eficácia sem que entre em um lugar de fragilidade como discurso. Independente de como se constrói e se localiza este palco, o que está em evidência aqui é como Meira media os jogos de palavras e gestos e como eles podem representar a implosão familiar pela solidez de suas representações.

FacebookTwitter

Interview: Lewis Klahr

Pedro Tavares

Click for portuguese version

Since the 1970s, prolific American director Lewis Klahr has combined animation techniques with avant-garde cinema, which in recent years has helped to retell and reread modern American history. Owner of a unique work, Klahr walks through pillars of American pop culture such as comics, pulp fiction, film noir and has a close relationship with sound – or lack of it. I talked a little with Lewis about his work in general, and, mainly, about his relationship with silence, dyssynchrony, absence, noise, tracks, etc.

This issue of the magazine is about cinema and silence.

Hmmmmnnnn…… I think film silence is still a highly specific sound. For instance, I recently completed a soundtrack for a new film titled Thin Rain. Inspired by Film Noir, Thin Rain tells the story of an amnesiac protagonist who loses his memory after being hit in the back of his head by a gun handle. Before this attack, the soundtrack has symphonic music. Once the protagonist loses his memory the music ends and is replaced by the white noise sound of a blank analog 16mm optical track. We call this optical “blank” but it is full of sound: pops, scratches, and hisses!

Silence was something that caught my attention when I saw one of your films for the first time in a theater. I believe it was Sixty-Six.

I primarily use silence in Sixty-Six as a conventional separator of the individual films, a short duration (5-10 seconds) palate cleanser. But the film Ambrosia, which occurs in the latter part of Sixty-Six, is silent and required careful sequencing to get it effectively positioned because getting a silent film to effectively follow a sound film is an aesthetic challenge. The films in Sixty-Six that directly precede Ambrosia needed to gradually quiet down to provide a successful lead in. Whereas, the film that followed Ambrosia, and returned to sound, had much greater flexibility in terms of what its soundtrack could contain.

Sixty-Six.

 
I would like, if possible, if you could talk a little about the relationship of duplicity that your images involve and the path that I feel is emancipated
from the composition of the images by your use of sound.

I wouldn’t describe my relationship to sound and image as “duplicitous” but that’s an interesting thought. I’m not very clear about what you’re describing or asking but taking my best guess at what I suspect you mean– I am rarely interested in creating a “realistic” or full soundscape. Often my approach results in a limited or focused use of sound in which only some parts of the sound that an image may suggest are represented aurally. The parts of the image that are not represented remain silent and visual.

In your films there is usually a very consistent break in silence, like your most recent film The Blue Rose of Forgetfulness, which reminds me of a musical and is soon at the confluence of silence and a narrative in very strong codes.

In The Blue Rose of Forgetfulness I think the clearest example of what you are asking about occurs in the 4th film of the series— Blue Sun. This film uses as its source material images from a Secret Agent comic book from the late 1960’s. I’ve used a lightbox to illuminate both sides of the comic book page and reveal superimpositions. In my shooting I then seek to harvest the most interesting of these superimpositions.

Blue Sun’s soundtrack has 3 different sections with the first being the playing in reverse of Sibelius’ The Swan of Tuonella. After 8 minutes the piece concludes and this lush orchestral music gives way to an ultra mundane streetscape I recorded of birds chirping and cars passing that lasts for approximately 5 minutes. After this, for only the last 30 seconds of imagery, there is silence which creates a kind of hush, or an absence, like the air escaping a balloon. Full viewer attention is now  briefly given to the images. All 3 approaches to sound significantly alter the way the viewer experiences the image. This shifting of viewer engagements throughout all my films is a major part of their aesthetic engagement and structuring.

I agree I can be described as making “musicals”. On the most obvious level when I use pop songs as my soundtracks the lyrics usually tell a story and often act the way dialogue or voice over narration would in a narrative film. But just as in narrative filmmaking where the script is not the film, the lyrics are not the film here either. My images alter, contradict and also support the lyrics. For example, in my 2010 film Nimbus Smile I use the iconic Velvet Underground song Pale Blue Eyes as the soundtrack. However, the comic book female I’m using as my protagonist very clearly has black eyes not blue eyes. This raises questions about whether she’s the woman being sung about. Simultaneously the mise en scene is filled with images that contain different shades of blue. I hope the audience will notice and question why this color displacement of blue from the female protagonist’s eyes in the lyrics to the décor is occurring and what it might express.

The Blue Rose of Forgetfulness

In Circumstantial Pleasures it is not a change to silence that happens but a large change that occurs in a different way through the train trip and the sounds of warning announcements and the engine itself. How do you think about this type of composition?

Circumstantial Pleasures differs from most of my other features in that it is concerned with describing the contemporary world and only the very recent past. High Rise, the train film you refer to above, is the only film in the entire series that doesn’t use music for its soundtrack. It is a live action film shot on my phone in China during the summer of 2016 on a high speed train traveling to Beijing. Filmed in one continuous, nearly two minute shot are the passing towers of a massive apartment complex that is under construction. This apartment complex has no audible sound. The sync sound heard in High Rise is of the offscreen space of the train tracks and the interior train car in which I am traveling. This film provides a strong contrast from the other films that have preceded it in the series since none of them are live action and all use single framed, collage imagery. But a funny thing happens– the buildings under construction are so cartoon like in appearance that various audience members have asked me what exactly they are seeing—whether High Rise is also an animation and not a live action film. 

What fascinates me about your films is that there is this kind of sound displacement, but at the same time there is a very strong connection with a specific time frame such as Film Noir.  Your soundtracks reinforce a journey into the past, but what you do with silence is a work that is based on contemporaneity in my view, especially when we talk about experimental filmmakers. Do you think there’s any sense in that?

I do, it’s an interesting perception. Being an associational thinker and montagist I very much aim to create experiences that can be understood simultaneously in a number of different ways, even if they may appear to be contradictory or paradoxical. I also include visual anomalies in my films of present day imagery to make it clear that my films despite being historically descriptive are being made in the present.

Circumstantial Pleasures

Does sound in experimental cinema have any influence on your work?

Yes, of course. The most obvious influence being my use of music, both pop songs and classical. I am especially indebted to the films of Kenneth Anger, Bruce Conner, Jack Smith, Ken Jacobs and Harry Smith. The way all of the above filmmakers used music as a collage source material and also as an essential element of their montage was seminal for me as a developing filmmaker.

However, I think it’s worth noting that when I decided to make my film soundtracks as music-centric as they’ve been for the last 30 years, this was considered a very unacceptable choice by the experimental film world. There was this idea (less predominant now but still existing) that being music-centric was outmoded, and too easy an approach (like it was cheating LOL). That being music-centric was something experimental film had outgrown and left behind, rather than being a genre choice with a rich and fertile tradition and history of its own with very high standards of effectiveness just like any other genre. 

Logically, your films are intrinsic to the experience of reading comics alongside the projection that can be composed of a soundtrack or not.

My characters often speak in the word balloons of comic books. Sometimes what they speak is not meant to be understood which is why words are crossed out or sentences are interrupted. These speech bubbles are merely meant to indicate that speech is occurring (there are many similar moments in narrative films where dialogue is inaudible). Also, sometimes I cut out a comic book character and I leave attached some words they are speaking in the story they from which they were taken. These words rarely relate to the story my film is telling. However, these word remnants do clearly suggest the history of my appropriated characters. I want the audience to think about this history of the original context my characters existed in.

My characters speaking in comic book word bubbles rarely speak in voices heard on the soundtrack. I really enjoy this kind of displacement of having sound appear visually. The specificity of this visualization I try to make as precise as possible. For instance, there is a moment in Alcestis, another film from The Blue Rose of Forgetfulness, where the title character has an orgasm and she says “Oh, Oh, Oh”. This is handwritten in pen whereas normally, when Alcestis speaks, it appears as typed words in speech bubbles. The handwriting conveys both the intimacy and individuality of this sexual moment.

And I would like to know how much you want to control the spectator’s interpretation of your film’s meaning and whether this is a consideration for you during the process of creation?

Yes, I do consider the reception of the spectator while making my films. For example, the description of the dialogue in Alcestis I’ve just given above might or might not be understood by an audience. I’m often telling myself a story in my aesthetic choices that I know will only be partially understood by most of my viewers. Through long experience of working this way I’ve learned that each individual spectator will assemble the images to the idiosyncratic specifics of their interests, experience and subjectivity. In effect they often make up their own version of the story that has little to do with the one I’m trying to convey. I am comfortable with this openness of interpretation and consider it a strength of my storytelling.

Speaking of The Blue Rose of Forgetfulness specifically, how did you come up with the soundtrack for the film and how was working with these songs as a dramatic device? There is a very interesting use of de-sync in it.

As I created the sequence for The Blue Rose of Forgetfulness I found the flow of the music and sound became the priority for how the films would allow me to sequence them. I was shocked by how specific this flow was. It is probably the strongest sequencing of my films sonically that I have ever created. I’m especially pleased with the flow of the first 4 films—Monogram; Swollen Kisses; Capitulation’s Promise; Blue Sun. This is not something I intentionally set out to accomplish but discovered as an essence/aspect of these films as I attempted to sequence them. It was very surprising to me– I never would have thought to sequence them the way I have. For instance, I imagined that Capitulations Promise, the film with the Lana Del Rey song, could never follow Swollen Kisses the film with the Julie London songs. I thought they would need to be separated because of their similarity of feeling and mood. Instead, I discovered the effectiveness of their proximity intuitively through an arduous process of trial and error which required multiple viewings of different trial sequences. There was an editorial ruthlessness and honesty required to get it right. Very hard work!

As for what you’re calling de-sync (I have not heard this term before and like it very much!) I hold the bar very high in terms of having reasons to use a particular piece of music, especially pop songs. It is often important that the image moves in and out of sync with the music’s beat to create a contrast and counterpoint rhythmically. As I’ve stated I am very interested in changing a viewer’s engagement of the image as a film progresses– so moving from music to silence or sound effects, often produces a significant change that alters the way the images are absorbed and understood by a viewer. I also often edit images to be very active and rapid against a brief silent pause in the music itself. My edits are continuing the rhythm and creating a silent sound that fills that aural gap visually.

Speaking more of de-sync, how do you make it an option in your films?

Swollen Kisses is a good example of how I work with what you are calling de-sync. I created a mash-up of Julie London songs where she is literally singing with herself. I had the idea to do this because I was attentive to Julie London’s phrasing and the distinctly excessive length of time she pauses in between lines of the lyrics. This silent pause was lengthy enough to allow another lyric from a different song of London’s to be sung. The resultant juxtaposition of the lyrics of 2 romantic ballads then creates a new, alternate version of both songs. There is a narrative, poetic openness offered by this approach that encourages viewer interpretation– a new third stream that contains continuities and discontinuities just as my images do.

FacebookTwitter

CINEBH: Dias 5 e 6

Por João Pedro Faro

Anhell 69

Anhell69 (2022), de Theo Montoya, construção ensaística de amizades e convivências urbanas em busca de um resultado fílmico desregrado. Percorre-se Medellin pelo fio da assimilação da memória. É um desfile de conceitos e proposições, sobre a constância de um cinema interrompido, o que se propaga quando um filme não consegue existir. Nisso, conjuga todo tipo de cena, tentando agarrar-se em algo que permaneça.

As maiores intimidades são fortes, a relação constante com a morte e o sexo exposta no processo de “casting”, a fixação de um diretor por um ator, a propulsão da cidade em enterrar tudo que se desdobra em sua terra. O texto em voice over é ingrato, são palavras reiterativas e pouco desviantes que tornam a narração bem menos complexa do que sua empreitada de montagem deve sugerir. A sucessão de cenas que tratam dos mesmos temas gera alguma consideração notável sobre a violência sem descanso, a destruição da juventude como forma de organização de uma rotina urbana, como planejamento de cidade.

Esse efeito não permanece tanto, vai se diluindo dentro dessa ideia de filme “sem fronteiras” (o tipo de premissa que tem, por consequência, a geração das fronteiras mais visíveis). Não é que sua estruturação seja tão misteriosa, mas há o desejo por uma confusão material, ainda que acabe controlada por um início, meio e fim bem demarcados. É possível perceber o custo daquela realidade ficcionalizada, recontada, o impulso de fazer história de si mesmo e de quem está ao seu lado por perceber a facilidade do desaparecimento das coisas. Porém, os limites ainda são muito claros, a fluidez está por trás das demarcações. A única certeza é que a cidade vai engolir tudo até o fim.

Anhell 69

Vieja Viejo (2022), de Ignacio Perez, exercício de performance entre dois jovens atores (Nicolás Zárate e Paulina Moreno) interpretando um casal de idosos. A câmera se contenta em acompanhar seus passos e dar o espaço necessário para que eles façam seu trabalho de incorporação. A rotina é entrecortada por vídeos de celular caseiros, em vertical, que não servem grande propósito ao experimento para além de reforçar o questionamento central sobre percepções de idade, limites físicos e corporificações desconjuntadas.

Seu conceito inicial parece ser suficiente para que o filme não busque caminhos muito drásticos, desenrola-se um drama comum de envelhecimento cotidiano entre os dois que deixa a discussão temática num ponto morto. Não há grande novidade no que busca dizer ou questionar, sua aproximação cinematográfica da proposta conceitual é de poucos esforços, mas o casal de atores é consideravelmente denso. 

Vieja Viejo

El Grosor del Polvo (2023), de Jonathan Hernandez, engana. Começa como um drama materno sem grandes variações, daqueles filmes que mantém o monótono narrativo como assimilação da experiência de sua protagonista (Giovanna Zacarías). Enquanto ela sofre pelo desaparecimento da filha, espalhando cartazes pela cidade, somos lentamente instruídos a imaginar a construção de um suspense, com direito ao aparecimento de um revólver. Somos apresentados a um suspeito, a uma sequência de acasos narrativos de tom fabricado (em contraste com seu procedimento de realismo) e o efeito é o da expectativa crescente.

O filme não se desgruda do subjetivo de sua atriz, e ela carrega o peso de todos os enquadramentos. Quando nos aproximamos de algo propriamente tenso, quando a escalada para o confronto é determinada, o filme acaba. Esse efeito já conhecemos, dos suspenses de encerramento ambíguo, mas geralmente é acompanhado de uma ou outra imagem um pouco mais forte.

Aqui o vazio é claro, e não há interesse ou possibilidade de confronto. Percebe-se, portanto, que o filme nunca saiu de seu ponto inicial: fazer com que a experiência de suspense esteja em pé de igualdade com a subjetividade da protagonista. Não há valor cinematográfico nisso, não mais do que o terapêutico, e saímos com alguma lição sobre sofrimento que simplesmente não nos pertence. E a busca continua…

El Grosor del Polvo
FacebookTwitter

CINEBH: Dias 3 e 4

Por João Pedro Faro

Propriedade

Las preñadas (2022), de Pedro Wallace, lembra a moda dos romenos. Um Doutor Lazarescu sem grandes humores ou uma antítese semântica de 4 Meses, 3 semanas e 2 dias, com uma aparência geral de novelão. O esforço é estabilizar uma abordagem do real através de tragédias reconhecíveis, populares.  São intensas crises de maternidade que perpassam um dia na vida de duas grávidas (Ailín Salas e Marina Merlino), ali na fronteira entre Brasil e Argentina.  Em sua curta duração, os dramas sociais não são interesses individuais, não sustentam particularidade. O marido alcóolatra, as crianças deixadas sozinhas em casa ou o atendimento precário dos hospitais públicos surgem mais como obstáculos aventurescos do que efetivos estágios dramatúrgicos. O miolo é a parte mais efetiva: a câmera estabiliza, filma detalhes das paisagens que a dupla de grávidas atravessa, ouvimos suas reclamações em monólogo, seus corpos ficam reduzidos no quadro. No resto do filme, a câmera instável tem papel impositivo, seu movimento de aproximação com os atores parece preceder ideias mais articuladas de composição. São boas atrizes, colocadas em situações costumeiramente “latinizantes” (essa imagem da mulher grávida, sofrida, cheia de filhos num barraco de madeira) que entregam, em algum nível, o peso de realidade que o filme sugere buscar. Acaba sendo exemplar como um sintoma curatorial (um comentário banal de se fazer, claro, mas que aqui ganha uma boa justificativa para ser feito): esses filmes bem produzidos, “assistíveis”, com a causa social bem declarada e os gastos públicos justificados, presos num campo inócuo, incapaz de perturbar qualquer gosto. Ao fim da projeção, quase tudo parece resolvido, e talvez esse seja o grande vazio. 

Las Prenãdas

Moto (2022) de Gastón Sahajdacny, filme de processos contemporâneos comuns, encontra seu espaço próprio de existência. O “docficção” (sera que poderíamos, em conjunto, encontrar novas palavras para esses filmes?), a cidade como personagem, os tangenciamentos políticos, os motoqueiros (personagens centrais do novo cinema), a dilatação do drama… Tudo que é comum pode ser relevado pelo romance, nos momentos entre os protagonistas Mariano e Constanza, quando enquadrados conjuntamente. Juntos, vivem os dois travellings mais notáveis do longa, um no topo de um morro, com a cidade iluminada em segundo plano, outro ao final, acelerando a motocicleta por uma avenida diurna.  Para um filme com esse título, vale perceber seu movimento de lentidão. Até quando filma Mariano em movimento, a sensação é de uma estabilidade prisioneira, uma vivência urbana demarcada pela impossibilidade de progresso. Córdoba existe como terreno irregular. Por vezes, a cidade integra os personagens, no canto ou no centro dos quadros. Outras vezes, parece vazia, em quadros de paisagem quase aleatórios, desocupados de registros memoráveis.  Entrecortando os momentos de encenação, estão filmagens em minidv de natureza caseira. São as cenas de efeito sentimental efetivo, parte pela trilha lo-fi, mas majoritamente pelo aparecimento dos grãos da imagem (vale questionar porque tão poucos cineastas utilizam extensivamente os efeitos dessas câmeras, já que todos parecem conhecer suas capacidades). Uma das sequências finais com a filmadora caseira, quando o romance já está efetivado, mostra o casal se gravando em um parque, percebendo os arredores com proximidade, o granulado texturizando toda emoção. As variações de luz ganham dimensão justa, os espaços escuros ficam bem preenchidos de movimento, com os ruídos da tela abastecendo qualquer lacuna dramática que poderia distanciar o projeto de variações substancias. No fim é isso, acolhe-se o romance em tela, quando já não há mais o que fazer. O conforto é um problema grave, será possível mantê-lo continuamente como valor de produção?

Moto

O Estranho (2023), de Flora Dias e Juruna Mallon, é aula. O projeto, ao ser descrito, consegue perpassar todos os termos de uso disponíveis no mundo curatorial: territorialidade, ancestralidade, colonialidade, identidade, esse tipo de coisa. Não há mal intrínseco a isso, imagino, já que o cinema consegue existir apesar de sua departamentalização. Durante sua primeira metade, somos apresentados a uma tese um bocado objetiva, compreendemos seu lugar de ocupação e como o filme pretende se mover diante de seu conceito central. Uma câmera precisa dá ritmo ao discurso, somos apresentados a uma cadeia de personagens e percebemos, com fluidez e clareza, suas razões dentro desse cinema.  Quando a projeção avança, sua cadência inicial vai sendo cada vez mais apagada, até desaparecer completamente. A partir de dado momento (uma cena específica de dança, de uma consciência de classe culpada e improdutiva, infértil) e de maneira bruta, o longa vai construindo uma sequência de cenas imperdoáveis, onde o conceito inicial (que já estava óbvio em sua abertura, antes mesmo do título aparecer) vai encontrando novos jeitos de ser explicado ao público, com direito a cinco “talking heads” documentais. Olhando ao redor da sala durante a sessão, dava para confirmar que estávamos todos entre adultos, o que torna ainda mais difícil a compreensão dessa decisão maçante, mercadológica, de escolher fazer um filme que acaba pela metade e resolve, pelo resto da duração, explicar o que acabávamos de assistir, para não deixar nenhuma ponta de dúvida sobre suas boas intenções. A sensação principal é de que as diretoras resolveram encenar algo como uma reunião de financiamento, filmar os pitchings do projeto ao invés de seu roteiro (e faz questionar se há ainda alguma diferença entre essas duas coisas). Se o terror dessas últimas décadas é mesmo o abismo do mercado de cinema internacional, O Estranho entra como a figura mais conforme, reconhecível. Da distância entre a Europa e Brasil, das construções malditas em território nacional, resta uma ponte, um caminho único a ser trilhado, sempre dando cada passo com o máximo de cuidado para não ferir qualquer conexão comercial.

O Estranho

Propriedade (2022), de Daniel Bandeira, é um thriller desconjuntado e imperfeito, com grande carga de entretenimento. Habitamos a terra do gênero cinematográfico como irreconciliador de classes, o que parece natural e condizente com as correntezas contemporâneas. Não chega a ser um filme de cerco, já que seus grandes efeitos não são resultado de uma espacialização muito cuidadosa. Também não acredito que o conflito de classe, gerado pela revolta dos trabalhadores de uma fazenda contra seus patrões, seja o motor de suas construções. Creio em uma terceira opção, mais condizente com o que acontece em tela: o encontro de um equilíbrio perturbador de terrores, onde trabalhador e patrão se encontram igualmente animalizados, amorais, movimentados por uma ocasião odiosa que só abre espaço para a matança. Diferente de outros filmes similares, não há êxtase em toda a sua violência, não há prazer na vingança do oprimido contra o opressor. O que se desdobra é um movimento contínuo, imparável, de horrores situacionais, onde os personagens caminham de acordo com a pulsão de morte. Dentre o extenso grupo de atores que protagonizam a revolta na fazenda, não há grandes personagens a serem lembrados, não há grandes personalidades, isso não parece interessar ao filme. O que prevalece é um movimento conjuntivo e relativamente ambíguo de força, uma série de infortúnios cabulosos, construídos por cima de arquétipos de classe, um furor por violência que não é tão dependente de seu verniz social quanto pode aparentar. Fosse o caso, a construção dos personagens seria outra, o engajamento por suas motivações viria de outro lugar. É um filme “de roteiro”, carregado pelo interesse em seus absurdos acontecimentos sucessivos (uma violência que vai sendo cada vez mais despersonalizada, o que é comum a esses projetos). Não é um thriller de grande elegância, não é um filme de conflitos entre enquadramentos, sua tensão e seu entretenimento são carregados por essa força grosseira e inconclusiva, capaz de pensar em diversas imagens sem necessariamente transformá-las numa ideia fílmica encenada, elas ficam acontecendo por entre essas associações consecutivas de brutalidade. Sobrevive, ao fim da projeção, esse sentimento de horror, um astral negativo, um lugar sem heróis ou idealizações de povo. Está aí um elogio possível, dado todo o enfrentamento necessário para encarar Propriedade.

Propriedade
FacebookTwitter

CINEBH: Dias 1 e 2

Por João Pedro Faro

Prata Palomar

Anotações dos filmes vistos em 26 e 27 de setembro.

Zé (2023) de Rafael Conde é um trabalho consistente, apesar de ingênuo. Encontra-se algumas qualidades em sua aparência. A grande maioria dos planos acontece da mesma forma, com a imagem estática encenando diálogos no quadro, um número reduzido de personagens se conhecendo ou se reencontrando, enquanto o extracampo tenta sugerir um contexto histórico maior para densificar esses encontros.

O clima geral é de uma biografia santificadora. Nesse sentido, a realidade parece custosa ao filme, já que seu posicionamento é o da celebração da memória, de algum tipo de verdade possível, mesmo que afundada no sentimentalismo. A história da vida clandestina de um militante durante a ditadura (interpretado pelo Caio Horowicz) é o tipo de premissa propícia a essas operações, quando se estabelece que a própria conjugação dessa memória já ocupa o espaço das expectativas sentimentais que circundam o desejo de fazer “história”. Ou seja, sua jornada fílmica é circular, começa e termina em um mesmo lugar de percepções onde a realização do cinema cumpre um papel mediador, não criador. Isso é especialmente esclarecido pelo texto, que carrega o efeito de todas as cenas do filme.

Mesmo quando bem localizados no quadro, os atores expressam esse tom de ingenuidade que perpassa todo o projeto: Suas palavras são projeções, espectros, de suas personas, reafirmações cacofônicas do que espera-se de cada personagem. Se o filme parece desejar que sua grande afetação esteja na profundidade dramática, há de se perceber uma distância entre as palavras que são ditas e a teatralidade de suas performances. Enquanto o texto carregado, que não permite tempos de silêncio, didatiza e reitera suas temáticas a ponto de nos questionarmos sobre a confiança do realizador no poder de assimilação do público, o trabalho dos atores é de uma pontuação detalhada, transparece cada sinal de direção em reverberações emotivas. O resultado é uma espécie de anulação dos esforços.

Interessa em Zé perceber um trabalho de rigidez estrutural, superficialmente lustrado por um nível de controle. Caso fosse um drama mais comum, menos inflado de auto importância, esse interesse poderia ser bem maior. Porém, o que sobressai é o seu miolo, sua falência política, uma insistência permanente pelo caminho dos pensamentos curtos, contra a complexidade, pela indiferença às possibilidades radicais de um discurso.

El reino de Dios (2022), de Claudia Sainte-Luce, é um filme simples, daqueles que apostam sua subjetividade no carisma infantil. Acompanhamos a rotina do pequeno mexicano Neimar (Diego Lara Lagunes) e sua vida no campo, cuidando de porcos e cavalos, passando tempo com a avó e aguardando sua primeira comunhão.

A câmera é daquelas que acompanham as andanças e gestos dos personagens em cena, pontuada por breves momentos de estabilidade. Há algumas paisagens de interesse, em especial a carcaça de um avião abandonado, onde Neimar brinca com uma coleguinha. A casa onde mora com a avó e a mãe também é notável, bem iluminada, onde acontecem as cenas mais engajadoras do filme, circundada por momentos de maior desprendimento. Dá para dizer que algumas temáticas tangenciam o filme sem que realmente abarquem sua realização. Pelo título, fica sugestionado que um tipo de crise metafísica ou existencial vá atravessar o jovem Neimar. Isso até acontece nos momentos finais, com alguma rapidez, mas não parece que o filme realmente deseja integrar grandes questões ao seu procedimento. É um trabalho de rotina, daqueles carregados pelo humor e pela “fofurice”, a ponto de que o conflito final (duas mortes sucedidas) parece alienígena ou simplesmente insuficiente para deslocar o sentimento para um espaço de contraste, sendo mais marcante na simplicidade típica desses projetos. Um trabalho familiar, em diversos sentidos, que não tira tanto proveito de variações emocionais quanto de seus procedimentos mais comuns.

El Reino de Dios

Prata Palomar (1972), de André Faria, filme psicodélico e sangrento, deixado às margens da filmografia nacional, integra parte da homenagem a Zé Celso (que co-roteirizou o longa). Descobrir esse tipo de produção em uma grade de festival contemporâneo gera algum tipo de saudosismo diabólico, nostalgia das imaginações latino-americanas mais grosseiras, sempre infladas de ambição, cheias de ideias absurdas.

Mesmo que carregado por algumas imagens comuns da obsoleta “vanguarda” cinematográfica (quem no mundo ainda pensa nesses termos?), como guerrilheiros barbudos, santas violadas (e violentas!), líderes engravatados protegidos por fardados, entre outras passagens reconhecíveis, o longa parece inclassificável. Entre a enxaqueca do cinemanovismo e as fricções dos cinema-de-invenção que surgiam violentamente, entre momentos mais psicodélicos de Nelson Pereira dos Santos e personagens de Elyseu Visconti, Prata Palomar sobrevive de berros e destruições. Proveitosamente apropriando-se das geografias alucinógenas oferecidas pelo século das utopias, o filme atravessa espaços de conflito, da mata fechada à igreja, do terreiro de macumba ao palácio governamental. O ritmo é especial nessas andanças, sendo a primeira parte particularmente veloz e assustadora, cada cena apresentando uma ideia nova, alternando entre imagens alegóricas mais ou menos decifráveis (atenção especial ao espaço secreto que eles adentram no porão da igreja, com as paredes cheias de recortes de revista e pichações apocalípticas). Tudo encaixado na janela quadrada, sempre atenta à composição mesmo em seus momentos mais sísmicos.

Surpreende a constância agressiva do filme (alguns trechos parecem saídos do cinema de terror feito naquela mesma década em alguns extremos da Europa). Os protagonistas passam a projeção inteira brigando, lambuzados de tinta vermelha, de um sangue vívido, muito bonito, enquanto tudo ao redor sugere um mesmo nível de fatalidade. Descamba num terceiro ato realmente carnívoro, preenchido por todo tipo de operação cabulosa e cheio de prazeres no processo. Tudo corre pela tela com voracidade, demonstrando todo o esforço de sujeitos famintos por realizações fantásticas.

FacebookTwitter