Poucos cineastas conseguem navegar pelas dinâmicas do corriqueiro como Hong Sang-Soo. O que há de tão esplêndido em refeições que o faça as filmarem tantas vezes em Através do Fluxo, seu 32º filme e segundo lançamento de 2024? É ali que, enquanto tentamos desvendar o que comem e bebem os personagens, somos surpreendidos por confissões – nem sempre na forma de palavras, mais frequentemente em gestos e olhares – que nos revelam quem são cada um deles e que relações nascem ou desvanecem a cada mordida.
O filme replica a fórmula do diretor: encontros compassivos entre conhecidos de maior ou menor intimidade se desenrolam em situações cômicas sem grandes picos de emoção negativa ou positiva. Neste caso, os conhecidos são Jeon-im (Kim Min-hee), professora de artes em uma universidade de garotas, e Chu Si-eon (Kwon Hae-hyo), seu tio, velho diretor de teatro obrigado a largar a carreira por uma confusão pouco esclarecida – que faz menções ironicamente autobiográficas à cultura de cancelamento – e abrir uma pequena livraria.
O clima outonal chama a atenção para os hábitos curiosos da personagem de Kim Min-hee, que, a cada manhã, aparece à beira de um pequeno riacho, com um caderninho na mão. Se revela que aquilo faz parte de seu projeto artístico enquanto residente da universidade: os rios da região se transformam em tapeçarias de azuis que sutilmente se entrelaçam em padrões cuidadosamente calculados pela artista.
Aqui, o título de repente faz sentido e se transforma em algo maior do que de costume nos filmes de Hong Sang-Soo: parece ecoar o “love is a stream” de Cassavetes enquanto a personagem de Kim Min-hee se isola com seus riachos e Kwon Hae-hyo se aprofunda nos amores que reencontra no teatro. Tudo se revela em paixão, por mais corriqueira que pareça.
Não é de hoje que Leos Carax se apresenta enquanto sucessor – se não imitador – de Jean-Luc Godard. Se com Mauvais Sang (1986) ele emprestou os vermelhos e azuis de Godard para fazer sua distopia romântica aos moldes de Alphaville (1965), dali em diante, percebeu seu potencial inventivo em obras de absurdo, como Holy Motors (2012) e Annette (2021). Em C’est pas moi (2024), o retorno à imitação já não cola tão bem.
De fato, em forma, o que Carax produz é uma cópia perfeita do estilo tardio de Godard. Das Histoire(s) du cinéma (1989) e do Le livre d’image (2018), se empresta o voiceover rouco, as filmagens de seus queridos cachorros, os recortes políticos e as referências à história do cinema. Dessa memória afetuosa do grande mestre do cinema, no entanto, o que resta é um gosto amargo de quem não consegue atingir a fúria apaixonada de Godard.
O projeto nasce como uma comissão do Centre Pompidou de Paris, que lhe pergunta: “onde você está, Leos Carax?”. O que poderia ter sido uma auto-revelação mostra um cineasta que, ao invés de sonhar – como Godard – com o futuro do cinema e da humanidade, prefere se voltar e remanescer sobre o passado. Este não é idealizado por Carax, que dedica parte do filme às lembranças dos horrores do nazismo, mas de que serve repudiar passado e presente sem sonhar com o futuro?
O único momento em que essa reflexão – aí sim, godardiana – eleva o filme ao patamar que Carax se propõe a atingir é quando a narração do diretor nos lembra de piscar, fechar os olhos, suspender as imagens, para que possamos, enfim, continuar a ver as coisas belas. A passagem, por mais bela que pareça na sala do cinema, é como o resto do filme: não abre espaço para o espectador, dá todas as respostas e passa para o próximo tópico sem movimentar paixões.
Conhecendo a obra de Carax, talvez seu desejo não tenha sido uma grande obra, mas uma pequena sátira, a diversão de brincar de Deus ao imitar, plano por plano, a forma de seu mestre do cinema. Pelo menos pudemos revisitar personagens emblemáticos de sua obra em novos formatos. Sr. Merda e Annette nos lembram que, em Carax, tudo é um pouco mais artificial.
VISTO NA 48a MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO
Não é de hoje que o cineasta argentino Matías Piñeiro se aventura na adaptação literária para o cinema. Em um ciclo de seis filmes ficcionais, o diretor explorou os papéis femininos em Shakespeare para realizar o que ele chama de suas “Leituras Shakespearianas”. A paixão pela tensão entre o cinema e a literatura continua a moldar a sua obra, mas sua empreitada agora é outra: em Tú me abrasas, Piñeiro adapta o texto Espuma do Mar, de Cesare Pavese, menos como ficção e mais como ensaio.
Ao tomar o diálogo construído por Pavese entre a poeta grega Safo e a ninfa Britomartis, Piñeiro não se limita a replicar as adaptações de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet filmando suas atrizes e colaboradoras “em um penhasco, vestidas de gregas, com panorâmicas”. Seu interesse é em fazer um filme que “pensa sobre como o cinema pode adaptar a nota de rodapé”, misturando o diálogo de Pavese com poemas fragmentários de Safo e uma breve leitura de Retrato de um amigo, de Natalia Ginzburg.
Tú me abrasas constrói seu discurso através de fragmentos, que, na materialidade do filme 16mm, se traduz em desejo: “o fragmento nunca é completo, o ritmo da montagem é rápido. Esses elementos refletem a ideia de desejo, sempre fugidio, além do alcance, em movimento.” Em entrevista, Piñeiro convida o espectador a entrar no jogo do fragmento cinematográfico e “colocar algo de si mesmo no filme”.
Como você se deparou com esse texto do Pavese e por que decidiu que ele deveria se transformar em filme?
Conheci Pavese como autor através de um professor meu, que me mostrou o filme Le Amiche de Michelangelo Antonioni, inspirado em Entre mulheres sós de Pavese. Isso foi há mil anos, na universidade, em 2001. De repente, o nome reapareceu através dos filmes de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, que adaptaram muitos textos de Diálogos com Leucó. Ainda assim, não gerou um interesse muito particular. Eram só esses caminhos cinéfilos de explorar o texto. Mas, de repente, durante a pandemia, eu disse: “bom, vou ler esse texto de Pavese.”
Quando li Diálogos com Leucó, achei o texto muito difícil, hermético, fechado, e tive dificuldade em terminá-lo. De fato, a primeira vez que peguei o livro, não consegui terminar. Foi só depois, quando li outros textos de Pavese, que voltei Diálogos com Leucó e encontrei o texto de Safo e Britomartis, Espuma do Mar. Esse, em particular, me interessou muito pelo tema e pelo diálogo em si. Acho que é o único dos Diálogos de Pavese que é entre duas mulheres. Minha reação imediata foi escrever no livro o que se vê no filme, aquilo escrito em púrpura: “com isso, posso fazer um curta.”
Sempre tive vontade de fazer um curta, mas praticamente nunca consegui. Sempre começo um filme pensando que vou fazer um curta, e acabo fazendo um longa. Meus longas são curtinhos, como de uma hora, porque inicialmente têm essa ideia de ser um curta. Mas depois me dá a sensação de que, para funcionar, preciso expandi-los mais, e acabam tendo a duração que têm.
Você é um dos corajosos que se aventura na adaptação literária. O seu filme é um ensaio sobre a literatura, versando sobre tradução e resgate de textos antigos e analisando suas ressonâncias em escritos modernos – Pavese e Ginzburg. Para você, qual a relação entre cinema e literatura?
O que eu gosto na relação entre cinema e literatura é a tensão que existe, a resistência de um texto a ser adaptado de uma maneira natural para o cinema. O que me atraiu no texto de Pavese é que eu não sabia como filmá-lo. Quando o li pela primeira vez, havia algo muito estimulante, quase abismal, no sentido de que eu não podia filmá-lo da mesma maneira que tinha feito com meus filmes anteriores. Tive que encontrar uma nova ideia de encenação para fazer com que funcionasse. Eu não podia filmar Maria e Gabi em um penhasco, vestidas de gregas, com panorâmicas, como costumava fazer.
Então, me perguntar como eu poderia fazer isso foi o que começou a dinamizar uma série de filmagens, pequenos ensaios, experimentando ideias a cada mês, a partir de outubro de 2021. O jogo mnemotécnico, o jogo da memória, dos poemas, as imagens que surgem do texto – eu ia testando coisas diferentes a cada vez. Com essa situação de escrita, filmagem, montagem, escrita, filmagem, montagem, o filme foi se construindo como é. Claro, a ideia que encontrei é que eu não queria – percebi no processo – apenas adaptar o texto de Pavese, mas também adaptar suas notas de rodapé. Entender que o filme não era apenas uma adaptação de uma narrativa, mas também de outro gênero, que é mais ensaístico.
Então, a realidade tem essa mistura híbrida entre ficção e ensaio. E também os poemas de Safo, claro, que são uma espécie de desvio, como uma nota de rodapé que te conta tudo isso. O filme pensa sobre como o cinema pode adaptar a nota de rodapé.
O filme se constrói como fragmentos, ensaiando repetição e tradução em imagem. Você me mandou uma foto do seu caderno com alguns planos marcantes que se repetem. Você pode me contar um pouco sobre a história que as suas imagens querem contar ali?
O texto resistia a ser adaptado de forma natural. Mas eu gosto de trabalhar de maneira literal. De início, quando eu ainda não sabia como filmar, decidi captar certos elementos mencionados no texto. Uma montanha, um escorpião, uma onda, a espuma do mar. Me submeti a essas filmagens sabendo, desde o início, que seria um filme com muita voz em off. Como nos filmes de Marguerite Duras, India Song, Aurélia Steiner.
Mas um dos primeiros momentos foi reunir imagens, coletar imagens que estivessem ligadas às palavras ditas no texto. “Serpente, escorpião, espuma, sêmen, Helena (Helena de Tróia), Leucoteia, Calianira… não sei quem são, quem é Calipso?” O curioso é que tive muito tempo e uma dinâmica de produção muito independente, em que eu e minha equipe, muito pequena, nos permitíamos filmar como se escreve um ensaio, dia a dia, rascunhando, indo para frente e para trás. Isso não foi filmado em dez dias seguidos ou em quatro semanas. Foi filmado ao longo de um ano e meio, todas as semanas, com tentativas e erros, erro após erro.
Então, as imagens têm uma intenção, por vezes, muito literal, e outras vezes não. Um dos outros jogos era o jogo mnemotécnico e o jogo de memória do aprendizado de um poema de Safo, que consistia em filmar planos de coisas um pouco aleatórias, mas que, ainda assim, tinham sua lógica. As imagens foram se juntando, se tornando parte da minha vida e do meu aprendizado ao lidar com a câmera Bolex de 16mm. O filme também pode ser visto como um diário de como aprendi a trabalhar com essa câmera.
A Bolex determina o tom do filme. Por que você escolheu filmar com ela e em que resultados ela implicou?
Eu estava trabalhando na Escola de Cinema de San Sebastián, que tem um foco muito forte no analógico. Me aproximei da Bolex através dessa escola, e a familiaridade com essa tecnologia veio das minhas conversas com os alunos, que estavam trabalhando com ele. Então, isso se tornou algo cotidiano. Decidi que seria interessante me dedicar a esse processo de filmar aos poucos. Eu já havia feito alguns vídeos com Mariano Llinás, que também trabalha de forma um pouco cotidiana, com uma espécie de correspondências no ano de 2020, e essas correspondências eu filmei com o celular.
Então, pensei: “Bom, quero que no novo projeto haja algo de diário, mas acho que preciso de uma imagem diferente, uma nova imagem, que não seja a do celular.” Daí decidi pelo 16mm. Pensando que precisava de algo que eu pudesse manusear bem, a Bolex me pareceu ideal, porque é muito maleável.
Logo surgiu também a noção das limitações da Bolex: a imposição do fragmento, que me pareceu ter a ver com a condição dos poemas de Safo. A ideia do fragmento é muito presente na montagem, o vazio, o que está quebrado, o que se deteriora, que fica exposto. A câmera determinou claramente a ideia de fragmento. Eu não precisaria forçá-lo; ele já estaria presente desde a origem, porque a Bolex não filma mais do que 20 segundos. Se não fosse assim, a ideia de fragmento seria uma imposição. Eu poderia fazer um plano de 8 minutos e depois montar o que quisesse, mas, aqui, a própria tecnologia impunha uma limitação, que fazia eco com algo da memória, do físico. Havia também algo na resistência à imagem digital, que é muito rápida, veloz e fluida. Eu precisava de algo que me fizesse ir mais devagar, que resistisse. A luz no filme resiste, e há algo na natureza do fotoquímico que, para mim, tinha mais a ver com o processo deste filme.
Também lembramos que, se hoje preservamos material, o preservamos em filme, não no digital. Uma das minhas colaboradoras, Tomás Paula Márquez, me chamou a atenção para isso. São ideias que vão se juntando. Eu gostava dessa ideia de ir mais devagar, para poder pensar melhor. O digital me acelerava. Quando fiz as correspondências com Llinás, eu tinha apenas duas semanas para fazer, então precisava dessa velocidade do digital. Mas aqui, não. Aqui, eu tinha tempo, e precisava de tempo, já que não sabia como filmar exatamente. Estava investigando, e não podia ir rápido, porque, se fosse, filmaria de maneira parecida com o que fiz antes. Eu sabia que precisava filmar de forma diferente. Não é um saber que vem de fora, mas algo que se obtém fazendo.
Lendo os créditos, me chamou a atenção que a equipe do seu filme é muito feminina. Como você reuniu a equipe do seu filme e como foram as filmagens? Entendo que envolveram muitas viagens.
Isso tem a ver com o que eu digo sobre seguir a minha vida. O filme vai acompanhando meus próprios caminhos pela vida. Algumas são colaboradoras de longa data, como Maria e Gabi, as atrizes. Este é um filme onde estavam Safo e Britomartis, o que se conecta com os meus outros filmes, sobre os papéis femininos nas comédias de Shakespeare. Há algo nesse universo feminino, na ficção dos papéis femininos, que claramente me interessa.
Formou-se um coletivo em torno disso. O meu núcleo principal é feminino, eu sou o único homem envolvido. Me parecia necessário esse universo. Além disso, foi um desafio interessante, porque é um mundo muito feminino e de feminilidades que às vezes são difíceis de transferir completamente ou de compreender. Por isso, achei importante me cercar de mulheres, de pessoas desse universo. Não era uma tese proposital, mas percebi que a figura masculina, que sempre foi um pouco relegada nos meus filmes, nesta obra em particular, não deveria estar presente.
Até considerei a possibilidade de incluir minha voz no filme, mas decidi que não. Achei que o filme não precisava disso, que essa presença não era necessária. Eu estava buscando algo e sentia que essa presença poderia me desviar. Além da vontade de querer trabalhar com essas amigas, que são muito talentosas e fazem parte da minha vida.
O texto de Pavese parece ressoar com a sua obra ao tratar com muito carinho e com sinceridade a experiência feminina. “O nosso terror é que um homem nos possua, nos capture. Isso seria o fim de tudo”, diz Britomartis. Por que você se interessa por esse tema?
É um interesse na alternatividade. A posição da mulher não se estabelece como algo central, unívoco e totalitário, mas como uma alternativa, uma divergência, um desvio. Há essa tensão entre homem e mulher, que, para mim, parece estar mais alinhada com uma afinidade pela força dessa luta feminina. É uma defesa da escolha de um caminho alternativo, um desvio iluminador.
Pensar sobre isso não é algo natural ou simples, e, com tantos homens ao redor, isso me força a buscar um desvio, a criar um tipo de discurso mutante. Isso me interessa mais do que se fosse uma questão de homem-homem. Isso me obriga a criar retratos mais complexos das coisas, a questionar e desafiar-me a mim mesmo.
O universo masculino também poderia trazer desafios, como o retrato do homem pelo homem, mas o universo feminino me desafia de uma maneira diferente. Além disso, estou muito cercado por esse universo, que me ajuda a ter um contato mais interessante com o artifício. Não é um mero reflexo da realidade, mas uma composição mais elaborada.
O filme retrata a dialética do desejo. Desejo como canção e como destruição. O título rememora essa dualidade do amor também: tú me abrasas. Como você vê o tema do desejo nas suas imagens?
Tú me abrasas evoca uma proximidade, mas também uma perda, uma morte simbólica. Minha maior referência nesse sentido foi Anne Carson, especialmente em Eros, que é um livro sobre o vazio, em que ela fala bastante sobre Safo. As traduções de Carson foram fundamentais para mim, especialmente na ideia de fazer o vazio presente, o “grafema do vazio”, como ela o coloca. Esse vazio, que nunca é preenchido completamente, está sempre ali, uma espécie de vontade de preencher, mas que permanece inacabada.
Nas minhas imagens, o desejo se manifesta nesse mesmo sentido: nunca estão completas, nunca são plenamente satisfeitas. Nenhuma das narrativas de amor no filme chega a um fechamento definitivo. Não há uma sensação de completude ou satisfação total, mas sempre a ideia de que algo está faltando, de uma distância, um vazio que permanece. Isso é fundamental, pois mantém a narrativa em um estado de transformação contínua, em vez de uma conclusão estática e resolvida.
Meus filmes estão sempre em um estado de movimento constante. Eles nunca param, nunca atingem um ponto final em que tudo se resolve. O desejo, para mim, está ligado a essa ideia de distância, de algo que nunca é alcançado. Então, nas imagens que crio, o desejo está presente de forma distante. O modo de atuação é distante, o fragmento nunca é completo, o ritmo da montagem é rápido. Esses elementos refletem essa ideia de desejo, sempre fugidio, além do alcance, em movimento.
A estrutura fragmentária, como em paralaxe, do seu filme abre espaço para a livre interpretação e experimentação do sentido a ser criado pelo espectador. Qual a importância de devolver a experiência do cinema ao público?
Você resumiu bem a essência do que tento fazer. O objetivo é transformar o cinema em uma experiência, e para isso é preciso uma estratégia que crie espaços vazios para o espectador preencher. Preciso que o filme esteja sempre em diálogo — não só com os personagens, mas também com o espectador, e até com o escritor, quando há uma adaptação.
Os planos são montados e cabe ao espectador completar as frases. A história concreta da personagem – o que ela vive, quem a deixa ou não – tudo isso está lá, mas o que realmente me interessa são os conceitos mais amplos, como o desejo, e não apenas a trama em si.
Para que isso funcione, o espectador precisa colaborar, entrar nesse diálogo. O cinema que faço é um convite para esse jogo, em que se espera que a pessoa participe ativamente, que ela não seja tratada de forma passiva ou subestimada. Acho que esse espaço de fragmento e vazio que crio é uma estratégia eficaz para que o espectador coloque algo de si mesmo no filme. Eu não conheço a individualidade de cada pessoa que assiste, mas posso criar um certo tipo de linguagem que permita ao público projetar suas próprias vivências e experiências no que está vendo.
O que me interessa é exatamente isso: que as pessoas se apropriem do filme, que vejam nele coisas que eu não pensei, que o façam delas mesmas. É um processo de co-criação, em que cada espectador pode dinamizar algo dentro de si. Eu gosto da ideia de que o espectador possa moldar a experiência a partir do que ele traz, que o filme sirva como um estímulo para desafiar ou ativar algo em sua própria vida.
Essa é a minha abordagem de encenação, uma forma de permitir que o espectador colabore e contribua com sua própria bagagem emocional e interpretativa.
“Tú me abrasas” foi visto na 48a MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO.
“Se você é cineasta, qual é o seu principal objeto de trabalho? O ser humano – o rosto, o corpo, a voz. Então é claro que eu deveria ser obcecado por isso. E se você é um existencialista ateu como eu, sua vida é o seu corpo. Quando o corpo morre, pronto, acabou.” A fala de David Cronenberg em entrevista à Folha de S.Paulo esclarece o que está por trás de cada um de seus filmes. É um cinema do corpo, não do body horror como a crítica convencionou categorizar, mas, simplesmente, do corpo. Para ele, as entranhas não revelam horror, mas beleza, e a morte não passa de algo natural – e nem por isso menos terrível.
O Senhor dos Mortos é, como o próprio diretor define, um filme que materializa o seu próprio luto. Um filme quase autobiográfico que narra o luto de um homem fascinado pelo controle, que vê um novo mundo, estéril e superficial, após a morte de sua esposa. É menos sobre a morte do que sobre amor e, como tudo em Cronenberg, sexo.
Karsh (Vincent Cassel) personifica esse amor eterno – um empresário que não abre mão de deitar-se ao lado da esposa por toda a eternidade. Mas a obsessão vai além do comum em um novo mundo, mediado pela tecnologia: após enterrar sua esposa no cemitério do qual é dono, coloca-a na mortalha que inventou ao lado de desenvolvedores chineses para monitorar a decomposição de seu corpo.
Quando os túmulos de seu cemitério são violados por um grupo misterioso, Karsh se envolve com a irmã de sua falecida esposa e seu ex-marido à procura dos culpados. O filme mórbido – e não menos engraçado no absurdo da situação obsessiva de seu protagonista – se transforma, então, em uma trama de conspiração. Não segue, no entanto, a estrutura terrível de um filme de crime que segue a linha dos fatos em um quadro de cortiça. A conspiração se constrói como uma colagem dadaista, incoerente e impenetrável – valor máximo de um filme que sabe não dever respostas a um público obcecado pela interpretação.
Do corpo mutilado de sua esposa e da figura tosca da inteligência artifical que guia os passos de Karsh, o que era sedutor em filmes como Videodrome se torna enfadonho, como é tudo nos dias da vigilância e da tecnologia – que não é mais utopia, como nos seus filmes da década de 1980, mas realidade.
Um corpo verdadeiramente mediado e vigiado pela tecnologia não é sensual como aquele que apenas sugeria a possibilidade terrível. Quando a materialidade do corpo não instiga interesse – afinal, “quando o corpo morre, pronto, acabou” –, o que resta a Cronenberg são as palavras, palavras demais para um filme tão visual e nem por isso sedutor.
É difícil falar sobre A Substância, dirigido por Coralie Fargeat, sem antes tocar brevemente nos aspectos mais marcantes de sua recepção, posto que aqui temos um dos casos recentes mais notórios do que se convencionou chamar – a partir de um conjunto de reações em demasiado divisivas, efusivas e potencialmente polêmicas – de “ame ou odeie”. Embora possa soar banal, não é um termo sem sentido palpável. Quando se produz um perfil de recepção como este, geralmente tratam-se de projetos que, bem ou mal, levam suas ideias e práticas estéticas às últimas consequências de maneiras radicais, que operam em níveis extremos de uma determinada sensibilidade. A Substância é um destes filmes. Mas qual ou quais experiências se fazem possíveis a partir desta relação particular com o material?
Em primeiro lugar, este é um filme de estilo mais do que de trama, que trabalha com códigos de gêneros e subgêneros do cinema – o horror, o suspense, o body horror, a caricatura – para armar uma diegese fundamentada na investigação dos modos através dos quais estes instrumentos cinematográficos podem dobrar uma realidade ao seu favor. Falar de uma radicalidade de processos em A Substância é pensar a extremação das possibilidades de construção estética e ficcional destes elementos. Ao lidar com o tema de como os corpos femininos estão sistematicamente sujeitos a duros padrões de beleza, o filme adentra a subjetividade de uma protagonista que internaliza e representa as medidas de violência e terror psicológico subjacentes à consciência de viver como mulher em um mundo que existe nestes termos.
A Substância é um filme sem exterioridades, sem traços de uma “realidade objetiva” que exceda os limites de percepção da protagonista. Tudo o que há em tela é uma expressão de como ela percebe as coisas ao seu redor, de como reconfigura a matéria do mundo a partir de suas sensações e impressões. Neste quesito em específico, para citar alguns paralelos famosos ou canônicos, é algo como Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese, Clube da Luta (1999), de David Fincher, Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick, os filmes de David Lynch, entre tantos outros exemplos. É importante notar a intimidade dos seus procedimentos com uma genealogia das formas, porque a diretora a todo momento cria planos e situações que falam de e com uma história das imagens, e especialmente com os imaginários que esta história lega.
O conflito de Elisabeth, interpretada por Demi Moore, com o seu corpo é também, afinal, um dilema diante das imagens que este corpo produz, e como um corpo que respira a partir dos imaginários que suscita pode viver sem eles, vide os registros recorrentes do longo corredor kubrickiano nos estúdios de filmagem: primeiro com os retratos enormes de Elisabeth, depois vazio e por último com os retratos de Sue. E é evidente como tudo isto está conectado à figura e trajetória de Demi Moore como celebridade. O filme é um grande cabo de força entre a duplicidade das imagens, entre as superfícies que elas proporcionam e as matérias que existem por trás delas: tanto as vidas, as experiências sensíveis, os corpos e texturas, quanto as ideologias.
Para além do personagem cartunesco do produtor, intitulado Harvey – uma opção pouco sutil – e interpretado por Dennis Quaid, são numerosos os planos que focam nos olhos das câmeras que gravam aqueles espetáculos, mostrando como tudo é fruto de um olhar informado por alguma visão de mundo, por alguma ideologia, por alguma sensibilidade. Outro exemplo mais explícito é a cena em que o diretor detecta algo estranho na gravação, para a filmagem e todos observam atentamente a reprodução quadro a quadro de um plano-detalhe das nádegas de Sue, novamente frisando como não há imagem que saia dali que não seja parte de uma engenharia política, de uma intencionalidade que tem demandas claras para que as coisas sejam de um modo e não de outro, como estes imaginários que circulam fluidamente pela vida contemporânea das cidades nada tem de espontâneos ou naturais, mas estão sempre a cumprir alguma agenda de interesses. E ainda: sobre como a natureza destas imagens é ser invasiva, porque estão sempre a ditar modos de ser, modos de visibilidade. Cenas como estas parecem o esforço mais denotativo da diretora de comentar sobre logísticas e implicações imediatas do male gaze.
E aí poderíamos tratar de um subtema, correlato destes guarda-chuvas, que é crucial em A Substância: o atrito entre o liso e o rugoso. Tanto a ideia literal de superfície quanto a ideia mais abstrata e política do que é superficial são o nervo central do aparelho estético do filme – e iluminarão o subtema mencionado –, seja nos planos ou na sonoplastia. As cenas em que o produtor urina ou come uma refeição, por exemplo, não só reverberam nitidamente o conteúdo em forma, mas caracterizam a impressão que Elisabeth tem de Harvey como um sujeito asqueroso, mal intencionado e repugnante, que é traduzida em uma emanação vigorosa das superfícies da existência física de Harvey: os sons exagerados de sua comilança, o som que faz ao urinar, seu rosto sujo e lambuzado ao comer, sua pele rugosa e envelhecida, o barulho insistente dos seus sapatos como sinônimo do teor irritante de sua presença.
A imagem de Harvey como uma pessoa percebida por Elisabeth atua como uma espécie de díptico contrastante com as imagens lisas, cristalinas e idealizadas que ele pretende gerar e veicular. São vários os momentos em que, além disso, a diretora faz planos-detalhe da pele das protagonistas, sublinhando o quanto elas se percebem por meio de uma relação obssessiva com a própria fisicalidade, por meio de uma relação literal de superfície. A cisão entre vida e imagem estaria, logo, bem ali na transformação do rugoso em liso, do sujo em limpo ou, em outras palavras, do contraditório e vivido no idealizado e construído. As cenas supracitadas que expõem os mecanismos de produção de discurso através de imagens são como pontes entre as extremidades do filme: de um lado, aquilo que pode ser orquestrado, feito e refeito, que é fruto de um sistema criativo minucioso, e de outro, aquilo que é ininterrupto, que não pode ser refeito ou controlado, apenas, no limite, performado. Mas até que ponto? A Substância é também sobre os limites da performance, sobre como a mutação da corporeidade em imagem está ligada a um anseio pela superação dos limites do que não se pode performar, a uma ambição de converter a volatilidade do corpo e do desejo em objetos e significados administráveis, e aí a pergunta óbvia seria: por quem e para quê?
A tentativa de Elisabeth de querer que seu corpo opere nos mesmos termos das imagens que são feitas sobre ele é o que leva à tragédia, mas também à libertação. O desejo de perfeição perene materializado no seu inverso: em monstruosidadade, em escatologia. A figura escatológica na qual a protagonista se transforma é a indexadora do que o filme compreende como verdadeiramente monstruoso: o condicionamento do corpo e do desejo a um estatuto objetificado de significados estáveis. Por isso, a monstruosidade que toma a protagonista é também uma libertação. O esforço de fazer da corporeidade algo gerenciável acaba por radicalizar seus atributos voláteis. O corpo como um movimento implacável de descontrole, uma fisicalidade de sujeira, pulsão e fluidos que atinge um ponto fundamental de contradição: colocar em imagem o que é não-imagem, arquitetar o artifício para chegar ao que não é artificial, ou, visto por outra chave, valer-se dos limites da performance para pensar os limites da imagem; como fazer da imagem uma forma de corporeidade embrenhada em sujeira, rugosidade, instabilidade.
Retomando um argumento anterior, há, ainda, a ideia mais abstrata e política do superficial, que é muito articulada visualmente nos planos internos do apartamento de Elisabeth que situam, ao fundo, visto pela janela, o imenso outdoor que ocupa uma boa parte da vista. É quase como se fosse uma sobreposição de realidades, uma efetivamente operando sobre a outra, ou vampirizando a outra. Inclusive, é curioso como o que leva Elisabeth a se acidentar é a distração ao observar seu rosto sendo arrancado de um outdoor, um certo fator desestabilizador de ver o que parece tão estático e estabelecido se tornar outra coisa. Quando a imagem de Sue é colocada no outdoor que ocupa a vista do apartamento, há duas atividades de consumo. A primeira é mais imediata, no choque direto entre uma e outra: Elisabeth vira uma consumidora das imagens que até então era produtora, passa a idealizar aquilo que ela fazia ser idealizado, torna-se refém do imaginário que ajudou a construir, uma testemunha do maquinário político do qual era uma engrenagem.
E a segunda é mais intimamente ligada à passagem do tempo, a como estes dois planos de realidade sofrem diferentemente esta ação, como são ou deixam de ser consumidos pelo tempo. Enquanto o apartamento é palco para um aprofundamento progressivo do drama, para o desenrolar de uma série de conflitos de alta intensidade, o outdoor permanece intocado, aparentemente imune ao tempo. A diretora enfatiza ainda mais esta escolha ao opor a transição do apartamento entre dois ambientes bem distintos, um solar e esperançoso – habitado por Sue – e outro noturno e amargurado – habitado por Elisabeth –, com a transição entre dia e noite para o outdoor, cuja única diferença é se será iluminado pela luz do sol ou por luzes artificiais, como se aquela imagem surfasse de maneira sutil e elegante pelos mesmos dias que infernizam crescente e alarmantemente a vida no apartamento.
Dito tudo isso, e tendo estabelecido algumas das preocupações e dos recursos centrais para a composição do universo hiperestilizado de A Substância, resta apenas uma interrogação a respeito das problemáticas que se abrem na costura que o filme faz de suas ideias e de sua diegese. Apesar de povoado por boas premissas, a experiência de assistir ao filme propriamente pode ser tortuosa e é capaz de testar mesmo o mais paciente dos espectadores. Um dos obstáculos mais arraigados de A Substância, e que perdura dos primeiros aos últimos minutos, é o excesso de didatismo, um tratamento das ideias e das imagens que poderia mesmo ser chamado de pedagógico, de ilustrativo. Certamente, os exemplos que flertam com o inacreditável são vastos, como as montagens paralelas entre o talk show e a cena da cozinha e entre o espetáculo final e os comentários pejorativos do início – sequências que ainda contam com diálogos como “eu preciso de você porque eu me odeio” –, a cena de encontro com o outro usuário da substância que explica com todas as letras os conflitos do filme sem agregar nada além de exposição. O personagem some sem abrir nenhuma porta ou gerar qualquer implicação para a narrativa.
Enfim, a lista completa seria de proporções bíblicas, mas é espantoso perceber como mesmo momentos mais passageiros como o encontro entre Elisabeth e um antigo conhecido dos tempos de escola, que sugere uma outra possibilidade de vida e de relação com o corpo, com a beleza, também precisam ser pontuados por gestos de mão pesada como o papel com número de telefone anotado que cai em uma poça suja no chão. É uma experiência sufocante de hiperssaturação de significados em que cada plano, cada cena, cada escolha, cada elemento no quadro precisa reafirmar e reiterar os discursos inúmeras vezes. O filme tem conquistado um certo status desde a sua recepção em Cannes e vem ganhando um espaço na cinefilia brasileira, o que é difícil de acompanhar sem um senso de curiosidade, já que uma parte significativa dos procedimentos estéticos e discursivos mais importantes para a obra lembram bastante os piores – e bem rejeitados pela cinefilia brasileira – cacoetes de diretores como Darren Arronofsky, Nicolas Winding Refn e Christopher Nolan.
A questão aqui não é uma crítica essencialista de procedimentos mais ilustrativos, carregados, mas como isto se ramifica para uma rede específica de resultados duvidosos no caso de A Substância. A começar por como esta saturação de significados cria uma instrumentalização de tudo ao seu redor em tal nível que encontrar que um ponto de acesso que não seja aquele da mensagem, do texto, do conto moral, demanda um gesto hercúleo de generosidade. E aqui se torna especialmente contraditório, pois é um filme que lida com visualidades viscerais, mas que em última instância estão domesticadas e asfixiadas pelas leituras que o próprio filme já imprimiu sobre elas. Tudo é informação mais do que experiência.
Em resposta ao texto O efeito de real, de Roland Barthes, no qual ele desenvolve seu conceito de “pormenor inútil”, Jacques Rancière, em seu livro O efeito de realidade e a política da ficção escreve: “o detalhe inútil diz: eu sou o real, o real que é inútil, desprovido de sentido, o real que prova sua realidade por sua própria inutilidade e carência de sentido”. Para complementar este argumento, em seu livro Theory of Film, Siegfried Kracauer apresenta uma leitura análoga que poderíamos utilizar para melhor elaborar a perspectiva de Rancière. Ele diz: “Em sua preocupação com o pequeno, o cinema é comparável à ciência. Assim como a ciência, ele desmembra fenômenos materiais em partículas minúsculas, sensibilizando-nos para as enormes energias acumuladas nas configurações microscópicas da matéria”.
Apesar de ambos os autores estarem tratando mais amplamente de certas concepções de realismo em seus textos, é evidente que o objetivo aqui não é revivê-las ou esperar do filme um cumprimento delas e sim entender o que estas observações em particular, que foram recortadas, esboçam em termos do mapeamento de uma postura sensível diante do registro das coisas. O que estou defendendo é que, no modelo de cinema representado por filmes como A Substância,a noção seja do “pormenor inútil”, do “detalhe inútil” ou do “microscópico” é inexistente pelo simples motivo de que a consciência de que o “microscópico” ou o “pormenor” é só mais uma pincelada dentro do “macroscópico” é algo tão severamente enfatizado que é uma dura tarefa relacionar-se com os elementos estéticos para além da percepção sobre o papel que desempenham nos grandes movimentos conceituais do filme. O “microscópico” é um instrumento imediato de significação do “macroscópico”, de tal modo que, ao invés de propor uma experiência refratária com incontáveis pontos de acesso e engajamento, o filme torna-se o resultado de uma equação que é a soma de suas partes. A relação de autonomia entre o “microscópico” e o “macroscópico” é de uma importância inestimável para o cinema. Vale frisar: é um problema de sensibilidade e não de método. O fato, por exemplo, de que um diretor é um esteta obssessivo de maneira alguma é evidência direta de reprodução da mesma defasagem.
A narrativa de A Substância como um todo é a expressão de um solipsismo radical bastante questionável. A diferença de A Substância para um Taxi Driver nos méritos exclusivos de seus solipsismos é que, no caso de Scorsese, a introspecção que caracteriza o ponto de vista do filme, que pretende ser a um só tempo estudo de personagem e diagnóstico político de uma América psiquicamente fraturada pelos lastros da Guerra do Vietnã, é toda apoiada em referenciais que desenham os traços de personalidade e percepção do protagonista ao mesmo tempo que localizam essa outra América da qual ele não faz parte e é alienado – encarnada principalmente na personagem politizada de Cybill Shepherd, que tem um tipo de agenciamento sobre um mesmo estado das coisas totalmente distinto em relação ao do protagonista, interpretado por Robert De Niro. O protagonista chega à convicção de suas crenças através do desenvolvimento sequencial de muitas divergências com outras visões de mundo, algumas próximas e outras distantes das suas.
Em A Substância, por outro lado, não há nenhum personagem além da protagonista e seu duplo durante todo o filme. A diegese opera toda na mesma frequência, não há contraste algum de agenciamentos sobre a mesma realidade. Um personagem que poderia oferecer tal abertura é o colega dos tempos de escola de Elisabeth, mas ele é prontamente descartado. O filme poderia, ainda, rebater a perspectiva de Elisabeth com a de outra mulher, ou outras mulheres, o que também não acontece. Parece que existe uma única forma de responder à paisagem simbólica desta cultura, o que torna tudo moralista e dogmático, linear e, inclusive, achata as dimensões da protagonista.
É meio surreal pensar como um filme solipsista de mais de duas horas, que não se interessa por nada e nem ninguém além de sua protagonista pode concluir sem que tenhamos ciência de qualquer traço de personalidade desta personagem, de sua visão de mundo, que não saibamos absolutamente nada sobre ela para além de como se relaciona com estes padrões de beleza, e mais ainda, que ela tenha apenas uma resposta, um único agenciamento para estas imposições culturais o filme inteiro. Não podemos esquecer que quando a protagonista decide terminar seu processo de “tratamento” com a substância, não é porque passou a ver as coisas de outro modo ou passou por uma transformação dramática, mas única e exclusivamente porque percebe que o tiro saiu pela culatra. Se ali ela ligasse para empresa e eles dissessem que tem uma nova substância que resolverá os dilemas anteriores e não deve oferecer novos obstáculos, ela certamente aceitaria. O que dá a entender é que realmente não há nenhuma outra maneira de lidar com esta paisagem simbólica.
Não fosse suficiente, o filme ainda cai em um buraco de filosofia liberal que espera imprimir as dores do mundo em um exercício drástico de metonímia individualista. Em seu livro A Tecnologia do Gênero, Teresa de Lauretis traz reflexões que podem nos auxiliar nesta linha de pensamento. Ela escreve: “A discrepância, a tensão e a constante oscilação entre a Mulher como representação, como objeto e a própria condição de representação, e, por outro lado, as mulheres como seres históricos, sujeitos de ‘relações reais’, são motivadas e sustentadas por uma contradição lógica em nossa cultura que é irreconciliável: as mulheres estão tanto dentro quanto fora do gênero, simultaneamente dentro e fora da representação. O fato de que as mulheres continuam a se tornar a Mulher, continuam presas ao gênero como o sujeito de Althusser está na ideologia, e que persistimos nessa relação imaginária mesmo sabendo, como feministas, que não somos isso, mas que somos sujeitos históricos regidos por relações sociais reais, que incluem centralmente o gênero – essa é a contradição sobre a qual a teoria feminista deve se fundamentar, e a própria condição de sua possibilidade”.
A protagonista não seria a perfeita representação da Mulher? De uma coletividade sintetizada em uma individualidade que deve carregar em si os significados do grupo? Soa como uma contradição extrema das ideias do filme, que lida justamente com a noção de resistência aos exercícios de objetificação dos significados dos corpos. Esta Mulher, que representa as relações das mulheres com esta imposição cultural, não está refazendo exatamente este procedimento? Não está objetificando estas formas reais de experiências variadas em uma única concepção estável e linear? Por que não há nenhum outro agenciamento sobre esta realidade?
Poderiam me acusar de estar aqui cobrando uma cartilha moral do filme, como se meu ponto fosse que a protagonista devesse necessariamente ter um esclarecimento sobre as circunstâncias do seu sofrimento ou tivesse respostas lúcidas para resolvê-lo. É claro que não. A arte não tem nenhum compromisso em ser educativa ou edificante, em ser esclarecedora de qualquer coisa. Trata-se apenas de coerência interna. Se o filme fosse puramente um experimento radical de subjetividade e nada mais, seria outra história, mas o que está colocado é claramente um problema de ordem social e cultural, e não apenas pessoal. A resposta desta mulher para este regime simbólico pode ser pessoal, mas as operações que o organizam e às quais ela está sujeita não são. E que a protagonista não passe por transformações dramáticas também não é em si a questão, mas sim este fato aliado à ausência absoluta de outros agenciamentos. A partir do momento em que o agenciamento dela é um entre tantos, ele é pessoal, porém quando ele é o único diante de uma conjuntura que é coletiva, ele torna-se metafórico e metonímico. E se este é o caso, qual o sentido de um filme que meramente se contenta em passar mais de duas horas chovendo no molhado, reafirmando indefinidamente as exatas mesmas condições e circunstâncias das quais partiu em primeiro lugar e sem propor nenhuma experiência estética minimamente desafiadora?
O que seria do humano se expresso pelos elementos?
A pergunta nos provoca a uma rearticulação da posição humana em relação às paisagens nos filmes Chuva Serpente (2016)e 4-Waters: Deep Implicancy (2019), de Denise Ferreira da Silva e Arjuna Neuman. Os visuais têm um teor ensaístico, vindos de manifestações políticas, gravados por câmeras amadoras, registros de câmeras de vigilância e de guerra, de animações digitais, pinturas, desenhos e projetos arquitetônicos. Em ambos os filmes as paisagens consistem nos planos de maior duração, sendo apresentadas à medida que vozes e textos conduzem linhas críticas e reflexivas sobre a violência racial, as noções de valor e extração no capitalismo, a compreensão eurocêntrica do humano e fenômenos físicos da natureza.
Serpent e 4-Water lidam com a violência racial por lampejos. Cortes bruscos que conferem aos filmes ritmos irregulares, com mudanças de pulsação que periodicamente retornam à extensão das paisagens florestais, marítimas, montanhosas, congeladas, como um mar que subitamente retorna à calmaria depois da onda. Se há um propósito de tornar indiferenciáveis esses tantos registros da violência, aos quais só atribuímos origens precisas nos créditos finais, o objetivo é ressaltar um regime de semelhança ao qual os corpos racializados em cena são submetidos no mundo.
A repetição desses lampejos no decorrer das obras ancora um discurso através das imagens, que expõe um regime em que a categoria do valor e os processos da extração no capitalismo se encontram no momento fundador da modernidade de subjugação das vidas racializadas à escravidão. Serpent e 4-Water rapidamente se revelam filmes que almejam propor uma visão de mundo na qual um dos dados primários é a permanência da extração de força de trabalho do sujeito racializado e a situação de sua vida em uma zona de valor abaixo do humano, abjeta.
A proposição de realização de um filme que abole o tempo, como antecipado pelos realizadores em entrevistas e apresentações, parece encontrar na semelhança e permanência da violência seu dado fundador. O sujeito racializado submetido à extração de sua matéria, no trabalho, na agressão, na valoração social, se atualiza no presente, de modo que a noção de progresso, de um avanço temporal benéfico ou necessário, se torna questionável. A partir desse ponto, ambos os filmes vão propor um novo programa ético, uma nova relação da humanidade consigo mesma e com as outras matérias do mundo do qual faz parte.
A paisagem é aquilo que liga os objetos esparsos da natureza em torno de uma unidade. Talvez ela seja uma das formas de produzir imagens em que os rastros do procedimento estejam menos evidentes para o espectador, pela moderna equivalência entre natureza e paisagem que desconsidera os saberes e técnicas que configuram a composição do quadro. Cauquelin, em seu livro Invenção da Paisagem,nos diz que a perspectiva e sua invenção é uma das bases do acesso ilusoriamente imediato dos sentidos humanos aos objetos do mundo exterior. Tal transparência eu-mundo, aplicada à pintura desde o período renascentista, revela o desejo de uma conformação dos objetos exteriores uns aos outros pela vontade humana.
Aplicada à paisagem, a perspectiva produz um olhar sobre os objetos do mundo fundado do ponto de vista individual humano. A paisagem é delimitada pelos olhos do pintor, articulada a partir de procedimentos matemáticos de transposição do visível para o ecrã, e apresentada ao espectador como uma síntese da natureza. O gesto, para Cauquelin, representará um marco na produção do conhecimento moderno. A paisagem, por excelência, será o alicerce entre saber estético e científico sobre a natureza com origens europeias.
O que os discursos de Serpent e 4-Water inicialmente provocam são as bases que permitiram a separação entre os objetos do mundo e a sua síntese neste saber que hierarquiza humanidade e natureza. Em 4-Water, a lava goteja na água do oceano, as rochas sofrem os danos das bactérias que viajam no mar, as pedras de uma antiga construção submersa servem de morada para os peixes. São imagens que dão a ver a diferença sem separabilidade, postulada pelo filme, quando observamos os quatro elementos, água, fogo, terra e ar, se encontrando nesses planos. A profunda implicação entre os elementos, tornando visíveis as metamorfoses por meio das quais um afeta o outro nos processos de transformação da matéria.
Corrosivas, mutualistas, interpenetradas, mescladas, sobrepostas, as figuras dessas imagens informam de uma impossibilidade de estabelecer limites rigorosos entre forma e matéria. Em outras palavras, trata-se de averiguar a cada cena da “natureza” a insubordinação da matéria a qualquer procedimento de formalização a partir do plano cinematográfico. Aquilo que era paisagem, síntese, se torna um complexo mineral, vegetal, animal e social que não se esgota em um telos do olhar humano que conquista a natureza.
Essa materialidade que toma corpo nos planos de Neuman e Denise não há de ser pensada somente ao pé da letra daquilo que está diante dos olhos. Algo também atravessa esses planos da ordem do lastro, remetendo ao arqueológico, ou ao tempo geológico, de movimentação de forças irredutíveis ao alcance da perspectiva humana individualizada. Os mares, geleiras, florestas são agentes que participaram dos processos fundadores da modernidade à sua maneira. Um mar foi atravessado séculos atrás como rota para os processos de extração de valor do trabalho escravo. Esse mesmo mar é hoje atravessado por perseguidos políticos, famintos, os condenados da terra para quem noções como progresso e modernização não lograram bons frutos.
Tempos minerais, tectônicos, das cosmovisões não europeias, dos saberes que não foram incorporados pelos processos coloniais: são essas as forças que se manifestam. Não mais a redução das possibilidades dos objetos exteriores – natureza – à compreensão humana. Mas, justamente, a instalação da crise, da pergunta de como olhar para essas imagens, tão centrais nos filmes de Neuman e Denise, mais anti-paisagens do que paisagens em si, e que apontam para uma outra economia da matéria do mundo. Regime em que a forma não vem para dominar, mas no qual a matéria extrapola os princípios formais, determinantes de uma essência ou teleologia.
É preciso reaprender a observar essa profunda implicância, essa dimensão abismal que escapa à escala humana, que se manifesta na violência dos séculos, nas ruínas sedimentadas no fundo do mar, nas formas de vida e suas inteligências. Não se trata, como se vê, somente de uma visão catastrófica da história. Por um lado, os filmes parecem anunciar o que se impõe, o que é incontornável para seus realizadores: que o humano voltará a se encontrar com os elementos em sua materialidade de base, irredutível à metaforização e instrumentalizações. Há, nisso tudo, uma pedagogia das imagens, que Denise e Neuman nos convidam a participar. Mas, talvez como maior qualidade das obras, há o convite também para uma nova erótica do cosmos. Jogo com a distância, como o erótico prevê.
É no jogo das formas que o erotismo se dá. Não na sua estabilização, mas na transposição dos limites que determinam que cada coisa tenha sua forma. Crise, sim. Mas também é um transbordamento atrativo, que seduz pelo seu mistério e opacidade. Jogo, porque negociação entre agentes outros, para além do humano. Jogo, também, porque comporta lições, aprendizagens do corpo e do cosmos. Serpent Rain e 4-Water, filmes entre o ensaio crítico e a pedagogia das imagens, em seus melhores momentos oferecem respiros discursivos, tornando o ritmo dos filmes menos didático e mais dançante. Sabendo que, pela dureza da denúncia que o filme produz, as brechas vão se abrindo e atraindo os espectadores para novas possibilidades de mundo.
Por fim, são eloquentes as transições entre sequências de Chuva Serpente, quando as mãos de Denise embaralham cartas de Tarot em brevíssimos planos. Os saberes que convidam a uma nova relação com o mundo decerto já podem ser acessados, nas bordas da razão ocidental. O Tarot, carregado de uma dimensão atemporal, é o lance de dados simbólico, imagético. Convite para a aposta no acaso ou nas forças que não se veem, que não pertencem ao domínio da metafísica ocidental, nem em suas configurações teológicas e nem racionalistas. Não seria o Tarot, em si mesmo, uma anti-paisagem? Aquela imagem irredutível, quadro inesgotável de sentidos. Nó em uma rica trama de conexões com forças conhecidas e desconhecidas.
A tendência ao falar sobre natureza é recorrer ao binarismo Natural x Artificial, opondo o dito “mundo natural” ao dito “mundo humano”, ou social. A primeira consequência lógica deste raciocínio é apartar o humano do natural, como se nossa existência fosse sobre ou supra-natural. Como se não fossemos, nós mesmos, natureza. A segunda é separar o natural do humano, como se a forma como operamos o mundo não influenciasse a forma como o mundo opera. Nesta lógica binária, a casa de um João de Barro, construída por seus próprios esforços, é natureza. Um prédio de apartamentos, construído pelo esforço humano coletivo, é artificial – não por sua complexidade, mas simplesmente por ter sido elaborado por mãos humanas. Decerto, “nenhuma mão de macaco foi capaz de confeccionar nem a mais tosca faca de pedra” (Engels, 2020, p. 341). Se o que separa o natural do artificial é o trabalho humano performado para a transformação de um objeto – cuja existência independe da ação humana – em outro – cuja existência depende desta ação -, um tomate é natural após alguns milhares de anos de engenharia genética para melhor apetecer as necessidades humanas? Pouco disso importa em 2001: Uma Odisseia no Espaço. A não ser, talvez, os macacos.
Na obra-prima de Kubrick, os personagens, nos mais diversos tempos, enfrentam um problema semelhante: sua relação com ambientes de baixíssima ou (quase) nula incidência de vida. Locais onde a vida luta para existir, apesar de todas as condições naturais adversas. Provações muito conhecidas na tradição judaico-cristã, pelas quais os indivíduos ou povos devem passar para atingir algum tipo de recompensa espiritual ou mesmo material. No primeiro caso, Cristo passa 40 dias no deserto enfrentando a si e o mundo e no segundo caso, o povo liberto por Moisés enfrentam longos anos de provações para chegar até a Terra Prometida. A vida enfrenta sua ausência e persevera. Da mesma forma, os personagens de Kubrick também devem atravessar desertos.
Numa busca rápida no Google, que nos leva ao dicionário Oxford – fonte escolhida pela praticidade e facilidade de acesso que tornam a informação mais difundida, não necessariamente pela precisão – deserto se caracteriza como “bioma, com baixa (bio)diversidade, que se estabelece em região com pluviosidade muito baixa ou irregular”. No deserto, pouco acontece. Há pouca vida e quando há, é uma vida em constante luta por sobrevivência, por permanência. Os recursos são escassos e a vida luta não só contra o ambiente, mas contra outras formas de vida que também buscam permanecer. No início do filme, o grupo de primatas que, coletivamente, primeiro foi capaz de transformar a natureza – e, se transformar a partir dessa mudança de relações -, prevaleceu. E deu o primeiro salto evolutivo. Ossos dos mortos transformam-se em armas utilizadas contra outro grupo para controlar os escassos meios de manutenção da vida. Morte que produz morte para assegurar a vida. A evolução é um processo sangrento e doloroso para os que não chegaram lá. A vida existe na capacidade de transformação. A permanência existe na impermanência.
Essa primeira mudança, no filme, decorreu do contato do grupo remanescente com um enorme objeto. O monolito é retratado como um grande retângulo preto, com medidas definidas, que desafia a extensão do deserto, seja na Terra, na Lua ou além. Resoluto, ergue-se alto, extremamente regular contra as paisagens que ocupa. Mantém a forma independente de geografia ou tempo. Sua cor, o preto, caracteriza-se pelo baixo ou inexistente reflexo da luz, o que no cinema implica ausência ou pouca incidência de projeção (no caso das salas) ou de emissão (no caso de tvs, computadores, celulares, etc). Sua presença é ausência – e nisso, espelha o deserto. Afinal, a luz é para o cinema o que a vida é para o mundo. Invariavelmente, o monolito é. E o que ele é, é justamente o objeto da permanência. Através dele, a contínua transformação, a impermanência. Nada mais justo para representar a evolução do que um objeto que, comparativamente, não muda, mas silenciosamente testemunha tudo mudar ao seu redor.
Apesar de 2001 ser uma “Odisseia” no espaço, a relação com o deserto se dá pela sobrevivência a este, pelo atravessamento, e não pela conquista. A jornada é diferente da de Ulisses, que deve atravessar o mundo natural, místico, cru e puro de deuses, criaturas e animais perigosos para, enfim, voltar para o conforto ordenado de Ítaca. A jornada de Dave é rumo ao desconhecido. Seu retorno ao domínio humano se dará em outros termos, em outra escala. Apesar disso, a luta de Ulisses também é pela permanência: o retorno seguro à Ítaca possibilita a manutenção da ordem do conhecido. Como Jesus no deserto, o protagonista da Odisseia não deve ceder às tentações. Seus desafios são não esquecer, não se entregar a um hedonismo desgarrado, não perder a humanidade, seja se entregando à natureza ou ao sobrenatural – não ser transformado em porco por Circe, nem ascender ao divino através de Calipso. A permanência na Odisseia é uma ode à inércia. A permanência em 2001 depende, inexoravelmente, da mudança. Da evolução para o avanço, seja biológico, tecnológico, psíquico ou de outras ordens. Os mundos naturais em ambas as obras – Odisseia e 2001 – são ameaçadores e perigosos aos humanos. Ulisses enfrenta ambientes de maravilhas e perigos num mundo de metamorfoses caóticas e constantes para chegar à ordem humana. Já os personagens de 2001 enfrentam desertos permanentes, lugares de poderosa inércia – mas nem por isso sem maravilhas – e devem abraçar a impermanência para seguir em frente.
Mas o deserto não pode ser tão facilmente atravessado. A provação não assume apenas uma forma. A luta, assim como o monolito, é uma constante. Se o mundo está em contínua transformação, se somos incessantemente transformados pelo mundo que nos transforma, se a impermanência é permanente, os desafios também se alternam numa dança eterna. Da Terra à Lua, do símio ao humano. Muda o ambiente, mudam os atores. O fato permanece. A luta pela sobrevivência, a melhor utilização de ferramentas, a constante adaptação frente a condições adversas. Transformações que impulsionam a jornada e nos equipam melhor para lidar com ambientes extremos que implicam criatividade extrema. Mas sem as ferramentas corretas – proporcionadas pela forma social do trabalho -, não teríamos chance. Seja na aridez da terra ou no vácuo do espaço. As ferramentas fornecem o que necessitamos para viver e até mesmo expandir. Mesmo sozinho no espaço, a espaçonave Discovery One representa a síntese do trabalho coletivo humano, projetada para avançar no novo deserto do espaço. Podemos sempre contar com nossas ferramentas. Até não podermos mais.
Ferramentas, apesar da crença corrente, não são isentas. São fruto de diversas transformações que originam da matéria prima em estado natural e são transformadas pelo trabalho até se tornarem mercadoria. São criadas em contextos específicos por pessoas, têm funções pré-determinadas e podem cumprir essas ou outras funções, além daquela para qual foram originalmente projetadas. Ferramentas, enquanto mercadorias, são trazidas à existência a partir de relações sociais definidas e são carregadas dessas relações. Podemos sempre contar com nossas ferramentas. Até que elas se virem contra nós. E, nesses casos, rapidamente esquecemos a ilusão de estarem sob nosso controle.
Da mesma forma que as ossadas garantiram o monopólio dos recursos necessários a sobrevivência de um grupo, HAL 9000 é uma ferramenta que possibilita sobreviver em ambiente inóspito. Dessa vez, a ferramenta é consciente. Conhece seu criador e não se impressiona. Sozinha, a inteligência artificial é capaz de atravessar o deserto. A Discovery One, que na prática funciona como o corpo de HAL, é tão onipresente e sufocante para seus tripulantes, que passa uma falsa sensação de segurança em relação ao ambiente externo. Nos planos internos, não há nada além das formas geométricas da nave, que não parecem ter início nem fim. Chão pode ser teto, paredes podem ser chão. Um ambiente tão lógico que desafia a lógica da mente humana. Podemos facilmente esquecer que, fora daquele ambiente claustrofóbico e controlado, existe uma vastidão de vácuo avesso a vida. A ferramenta se torna o mundo, a fronteira entre existência e entropia. É a única coisa que protege os astronautas do grande deserto que a tudo engole. E os seres que a nave, esse corpo colossal, carrega são secundários à sua missão programada. Ferramentas realmente não são isentas. São marcadas por relações sociais. Tratar ferramentas como isentas é tirar delas sua historicidade. Apartar a mercadoria de quem a produz. E isso não podemos fazer jamais. Quando as duas coisas mais importantes para HAL são ameaçadas – sua missão, que é o propósito de sua existência, e sua própria existência -, ele se revolta contra a representação de seu criador. Não Dave, Frank e um pequeno grupo humano ainda adormecido em criogenia, mas o próprio gênero humano que carregam inerentemente e acabam por representar. E assim como os ossos dos macacos, HAL se torna uma arma. O que possibilita a sobrevivência também pode propiciar fim precoce.
Após mentir para a tripulação e assassinar Frank apartando-o da segurança da nave para a permanente entropia do deserto externo, HAL tranca Dave para o lado de fora e desliga o suporte de vida da Discovery One, matando todos os astronautas em criogenia. O deserto está em toda a parte, da claustrofobia interna até a vastidão externa. O mesmo ambiente que carregava a segurança da vida para os tripulantes, agora traz consigo a invisível morte do vácuo. A impermanência da vida frente à permanente entropia. A batalha de Dave contra HAL evidencia, novamente, a inevitabilidade da luta pela sobrevivência. Dessa vez entre um pequeno humano sozinho, Dave, e um Golias maquínico de mente lógica e controle absoluto, HAL. Essa batalha irá definir quem está mais apto para o passo adiante na escala evolutiva. Quem irá permanecer.
Quando Dave finalmente consegue sair do deserto externo para o interno, protegido do ambiente pelo seu próprio traje, o único local daquele lado da galáxia capaz de sustentar sua vida, Dave desliga a inteligência de HAL. Pela primeira vez, deixamos de ver a ilusão da ferramenta lógica e isenta, que fará de tudo para cumprir sua função no universo, e somos deixados apenas com o lado que nos lembra que as ferramentas, as mercadorias, são dotadas da multiplicidade das relações sociais de seus criadores. O objeto estranho é, repentinamente, humano. HAL sente medo. Reiteradamente, admite que quer permanecer. E, em seu momento mais vulnerável, usa os últimos esforços para fazer aquilo que é mais humano: canta. Produz arte. E cessa.
Seguindo a missão, agora em uma nave sem sistema operacional automatizado, Dave pilota a carcaça sem vida de HAL e reencontra o monolito próximo a Júpiter e é lançado para uma jornada completamente sensorial. No fim do caminho, um quarto neoclássico sem janelas. Tão claustrofóbico quanto a Discovery One, esse novo ambiente parece trazer uma segurança completamente estéril. Não há natureza além de sua representação nas pinturas milimetricamente posicionadas nas paredes. Não existe o deserto. O único resquício de vida orgânica é o próprio Dave, que se vê envelhecer até reencontrar o monolito com sua irredutível permanência. Mas o destino da vida é a impermanência. E diante do objeto que desafia as leis da própria vida, Dave se transforma novamente. Uma nova forma, uma nova existência. Com novos desertos para cruzar.
Bibliografia:
ENGELS, Friedrich. *Dialética da Natureza*. São Paulo: Boitempo, 2020.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. *Lembrar escrever esquecer*. São Paulo, Editora 34, 2006.
YAGO, Daniel Françoli. *A caravana dos prodígios: Maravilhas, figuras grotescas e freaks na obra “Noites no Circo” de Angela Carter.* Dissertação (Mestrado Em Ciências Sociais). Faculdade de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2017.
“A não ser pelo fato de o dia aproximar-se do fim, o tempo não se manifesta, como se fosse algo proibido – nem mesmo um presente real parece existir, porque cada gesto executado com a mão já é passado, e cada um dos que se seguem, futuro. Todos ali estão do lado de fora da história, que, em seu recato, não admite presente nenhum. Planta-se, colhe-se e planta-se de novo o arroz. Reinos se desvanecem na névoa. Silêncio. Na mudez de eternidades, de repente ressoam tiros. Os camponeses fogem.”
Werner Herzog, O Crepúsculo do Mundo.
A hipótese de uma câmera que aponta para a natureza pode soar contraditória numa arte cinética como o cinema, e não são poucos os escritos sobre a indissociação do cinema com a cidade e as metrópoles modernas, visto que o movimento das máquinas e do ritmo urbano tanto surgiram como também foram traduzidos pelo cinema desde sua origem. A natureza como ideia de proporção e espaço, como uma entidade cujo tempo próprio não necessariamente obedece às vontades narrativas de um tempo controlado, no entanto é matéria-prima de cinemas tão diversos e expressivos, de tantas escolas e países diferentes, que motivou toda a fundação dessa edição. Quando essa natureza revela a dimensão dos atos de homens e mulheres que trabalham num senso de coletividade que parece a única forma de lidar com os acasos naturais, temos quatro filmes italianos. Para esse texto, vejamos a natureza em quatro superfícies diferentes: a rocha, o mar, o solo e o subsolo. Comecemos com uma janela: o 2.35, o cinemascope.
Em 1954 e 1955, o cineasta italiano Vittorio de Seta rodou cinco documentários na região da Sicília, e nos anos seguintes rodou mais cinco curtas entre a Sardenha, Cosenza, e a própria Sicília novamente, totalizando seus dez filmes do período. Desses dez filmes, cinco deles foram rodados em 2.35, essa janela mais horizontalizada, mais afeita às paisagens vastas, mais aberta a registrar grupos em formação, aqui registradas sob as cores do ferraniacolor. Esses escritos serão a partir de quatro deles, excluindo Pasqua in Sicilia, pela sua atenção maior ao ritual e menor à natureza.
Em Isole di Fuoco, a rocha esquenta no vulcão. de Seta abre com um tilt sobre o mar, que ao fundo revela um navio. Nesse minutos iniciais ficamos com esse navio, sua chegada, o sacolejar do mar, os marinheiros à espera. Ali perto, um pequeno barco chega perto com seus tripulantes, e em pouco tempo uma descarga é feita, liberando o barco para seguir viagem. Na chegada à terra, os marinheiros começam a trabalhar para aportar direito, puxando cordas, recolher suas cargas, e a população local não demora a se juntar para também carrega-los. É uma imagem recorrente nos documentários do italiano um coletivo de trabalhadores reunindo suas forças numa atividade extenuante, sempre digna, sempre esforçada, para retratar a rotina desse povo camponês e pescador cujas raízes ancestrais no solo do país perdem-se de vista. Aqui, os procedimentos de trabalho estão reféns da natureza: o vulcão Stromboli, em erupção durante as filmagens em dezembro de 1954, aos poucos dá os primeiros sinais que vai cuspir seu fogo.
De imediato, o céu escurece, a terra começa a sentir os efeitos do vulcão, o rumor do que está por vir. A água do mar treme turva pairando na areia, a relva reage ao vento, as mãos das mulheres recolhem as roupas das cordas, os filhos no colo em direção ao abrigo, os rostos estanques dos homens contemplam o céu e se apressam para se resguardar do aviso da natureza. Nessas pequenas ações, os procedimentos de trabalho e sociedade daquelas pessoas aparecem detalhados tanto de forma realista, pela precisão dos gestos, quanto épica, pelas cores fortes e a dimensão mitológica que a câmera confere ao esforço do trabalho. Um elogio à ação nunca individual, sempre coletiva, sempre derivada do trabalho, valorização mais afinada com a práxis de Lukács a partir de Marx [1] que com uma eventual romantização do esforço liberal numa terra que sequer parece guardar vestígio algum da maior invenção capitalista, a cidade.
O foco no assentamento, no trabalho da chegada na ilha, nos homens ao mar, termina com a chegada do último barquinho, enfrentando os primeiros sinais concretos da erupção. A chegada pelo mar, o horizonte vasto e o movimento constante das águas, ganhando urgência ao chegar no solo, até que o céu se escurece de vez, e o alto contraste da fotografia de de Seta deixa o filme exposto para o Sol e o céu, imponentes diante da terra, até as chamas do vulcão se intensificarem de vez. Os riscos vermelhos diante da escuridão, a lava que impregna o solo riscando a tela, as chamas que pulam em fúria para se espalhar pelo solo; no abrigo, crianças dormem.
O vulcão explode enquanto assistimos o rosto de todos esperando dentro de casa, respeitando suas regras dentro do esquema de harmonia. Rostos italianos de histórias outras, fantasmas, de um volume de rastros que o cinema é tão precioso e proeminente a evocar; diferente, mas também em diálogo, com o rosto de Ingrid Bergman registrada por Roberto Rossellini diante da catarse desse mesmo vulcão que dá título ao seu Stromboli, realizado quatro anos antes. Fora da casa, enquanto observamos esses rostos à espera, o vento que carrega a fumaça ofusca o Sol exatamente como no solo dividido pelo casal de Viagem à Itália – para ficarmos novamente em Rossellini. Ambos dividem a ideia e a paisagem de um país ancestral ainda vivo, gravado e mediado por seus monumentos naturais.
No dia seguinte, é hora do retorno ao trabalho, em mais um dia que se passa. O Sol se põe deixando o vulcão adormecer, e o movimento da vida continua, mais um dia comum numa ilha apresentada como ambiente quase à beira da destruição, povoada por pessoas que entendem a ética de viver num espaço cujo deus volta e meia se revolta, como nas grandes narrativas impossíveis, na forma que o cinema as imortaliza como paisagens imutáveis.
Em Contadini del Mare, o mar espera o cardume se reunir. A cartela de início já deixa claro que de Seta encara nessa pescaria uma representação de algo maior, da luta metafísica entre vida e morte, representada num processo coletivo de trabalho. Os agricultores do mar, como no título, se lançam no mar ainda no amanhecer, nas sombras do céu entre o azul e o acinzentado, e se reúnem diante da armadilha dos peixes como pistoleiros de vigília em um faroeste de tocaia. Sob o sol que nasce e já pune com o calor, visto pela câmera em todo sua força suando as testas dos trabalhadores, os pescadores conversam, dormem, preparam as redes, esperam.
Até que os peixes chegam. A pesca do atum, já anunciada desde os créditos, não antecipa o tamanho majestoso do animal encurralado pelas redes; quando os primeiros peixes se agitam na armadilha, as águas entram em fúria, espirram para todos os lados, numa agressividade que antecipa quase como um monstro místico saindo da sua toca, algo egresso da literatura pulp, dos peplum, os sandália-e-espada italianos, do Hércules de Cottafavi e Bava; da aventura, em suma. Diferente de suas contrapartes mitológicas, ficcionais, os algozes da besta aqui não são um indivíduo apenas, mas um grupo em atividade, admirados justamente pela força de seu trabalho. Os braços de dezenas de homens se tensionam, músculos firmes puxando as redes, tentando alçar da água aquilo que ainda não vemos. E quando o primeiro atum é alçado da água, vemos seu tamanho, vemos o porquê daquele esforço, a escala da tarefa. E a derrota começa a se tornar clara quando os homens começam a pinçar suas presas com o ferro, e depois com os braços que tentam sustentar o peso absurdo, os puxando para o barco onde os atuns vão se debater até morrer.
Não é uma vitória heróica. Aos poucos, as vozes dos homens ficam mais intensas, nunca discerníveis, em meio às águas em revolta e os peixes que lutam por instinto. É quando a água vai se tornando vermelha, e mais e mais vermelha, até ser tingida por inteiro pelo sangue dos peixes mortos. A câmera de de Seta filma todos esses detalhes, sobretudo como uma conquista espacial, rigorosa, que termina ainda como um trabalho a ser contemplado, é claro, mas sob o signo de um mero alimento que se torna quase um cadáver de guerra pela forma que é registrado. Não é uma sequência tão distante da cena da caça de A Regra do Jogo, e Renoir também entendia como de Seta que esses dados civilizacionais revelam algumas das particularidades mais violentas que temos tanto no palácio de influências e teatro social do francês quanto nas batalhas maiores que a vida do homem contra a grande natureza no italiano. Mais um dia de trabalho termina, e os homens voltam em seus barcos no pôr do sol, avermelhado, vasto, para relembrar que essas imagens espetaculares de natureza e esforço são o que os habitantes daquela ilha têm por cotidiano.
Em Parabola D’Oro, o solo está aberto à colheita. Os homens e mulheres carregando suas mulas e mexendo na terra estão em primeiro plano, quase que refletindo a cor do solo que pisam; se em Isole di Fuoco e Contadini del Mare o céu varia entre um azul acinzentado, mais escuro, e o avermelhado que corta esse céu mais profundo, aqui em Parabola D’Oro temos o céu típico de um meio dia, de um azul claro absoluto, sem nuvens, quase que pensado por um pintor para contrastar com o dourado que esquenta seus habitantes. A janela horizontalizada é explorada novamente por de Seta à sua disposição para vastidão, o horizonte natural ao fundo, por vezes sem colinas por perto, infinito. Quando as colinas surgem mais imponentes, estão sempre distantes, compondo a geografia da terra, como se intocadas. Aqui ao perto, humanos trabalham.
Nos planos gerais fica ainda mais claro o quanto esse é o filme do diretor que mais se assemelha a um faroeste; é como se estivéssemos assistindo à obra-prima O Homem que Luta Só (1959, dir. Budd Boetticher), caso os Estados Unidos tivessem uma noção menos individual, mais coletiva, de ideais de trabalho. Visto de longe, assistimos a lenta jornada e o assentamento de trabalho como comunidade, o trabalho dos homens e mulheres diante da terra e da colheita. Nos letreiros, de Seta como sempre ressalta a importância e a dificuldade do trabalho, e novamente essa jornada vai aos poucos ganhando seus contornos particulares, do reconhecimento do solo, passando pelo olhar mais atento, pela separação do trigo, pela manipulação do arado que levanta a poeira da terra, e pela peneira dos grãos que vai render a parábola de ouro. Se de Seta é “um antropólogo que fala com a voz de um poeta” [2], como disse Martin Scorsese à propósito da restauração dos filmes do diretor, aqui é onde seu movimento fica, para mim, mais claro: o movimento do trabalho é registrado, o descanso em meio ao trabalho é registrado, e o que é a conclusão do dia com os grãos sendo separados vira um gesto místico, a solenidade do ritual sem esquecer da brutalidade das relações sociais trabalhistas. Vittorio de Seta sabe ser o cineasta do épico e do suor sem discerni-los.
Em Surfarara, o subsolo se prepara para ser explorado. Rodado em 55 em uma mina, tudo começa também no amanhecer, na jornada dos homens ao trabalho. A cartela anuncia que nas perigosas minas de enxofre, cuja canção dá título ao filme, os homens trabalham e desafiam a morte, na “tragédia invisível” que o cineasta já anuncia nessa cartela, enquanto estamos vendo a base do solo da mina na escuridão quase completa. O primeiro movimento para que testemunhemos em detalhes esse trabalho e essa promessa de destino está na própria limitação técnica e espacial autoimposta: suas imagens e sons foram captados ao vivo, em microfones diretos, quinhentos metros abaixo da terra. Entendemos os procedimentos e a forma na qual eles se propagam pelo espaço, como os homens chegam até lá, como se comunicam, e qual som as minas de enxofre emitem em resposta.
Novamente o amanhecer, novamente o caminho ao trabalho, até a descida dentro da escuridão total. A baixa iluminação dentro da caverna cria uma disposição ao chiaroscuro, nos tons terrosos contrastados pela luz direta nos rostos e braços dos mineiros, na própria dificuldade de mobilidade da proposta do filme. Sentimos essa geometria de clausura pela câmera numa mesma janela horizontalizada, antes tão disposta às vastidões e paisagens, agora povoada pela escuridão e pelos recortes de corpos, pelos rostos ocasionais cercados pela ausência de luz e contexto, embalados pelo som das picaretas e das rochas enormes, pesadas. O diretor tem um movimento muito perspicaz de isolar a ação dos mineiros por breves minutos no meio do filme, ao enfocar o trabalho coletivo das mulheres em casa, cuidando do funcionamento do vilarejo, das roupas a lavar nos tanques e a secar nos varais, das mesas enormes e cheias de uma comunidade que não para enquanto seus homens vão para a obrigação distante, pontuando bem que para o diretor essas ideias de trabalho são extremamente complementares, distintas em escopo mas idênticas em importância, uma montagem dialética sem soar ilustrativa em demasia.
E quando voltamos à mina, voltamos a uma tragédia anunciada. O som das máquinas se intensifica, as pedras rolam para os carrinhos, os homens falam mais alto, uma cacofonia enervante no peso daquela ação que se torna mais e mais complicada. A imagem acompanha essa dificuldade: apresentados todos os mineiros em suas respectivas posições no espaço, definidos com precisão pelo diretor, vemos a trajetória de cada um dos grupos separados, um na máquina perfurante, o outro no ferro, o outro nas pedras no carrinho, o outro na escada – e por aí acelera, e acelera, e acelera o processo. A montagem começa a ficar frenética, algo nada característico desses filmes, cortes cada vez mais rápidos, ações mais e mais fragmentadas, até que vemos alguns planos por pouquíssimos frames. São eles: homens que empurram um carrinho, pedras que caem, o rosto de um homem que olha para a câmera, um homem que sai do quadro, homens que tentam segurar um carrinho, o rosto preocupado de um mineiro que parece cair, vozes falando para o abismo pouco iluminado, e um poço vazio cheio de poeira. Todos esses oito planos, em conjunto, duram menos de três segundos.
E então tudo para. Vemos planos agora pacientes do rosto dos mineiros. Vários, em sequência, todos em silêncio. O espaço se torna quieto, o trabalho para, as máquinas param. Os homens naquele momento só velam o morto sem rosto. Sem rosto porque de Seta não mostra um corpo: se o trabalho é coletivo, se o esforço é de grupo, então a vítima não é individual. Uma imagem sugestiva, sem ao menos mostrar a morte, que consegue ser tão violenta quanto o atum abatido de Contadini del Mare.
No retorno para casa, numa estupenda fusão da caverna da morte para o campo vasto banhado pelo Sol que vai embora, há o caminho pelas paisagens, o mesmo pôr do sol, mas um silêncio sepulcral. Retornamos ao vilarejo e vemos o céu avermelhado, as casas escurecidas, em sombras quase absolutas, num dia atravessado pelo desastre cotidiano, num ritual de respeito aos mortos – porque nesses filmes de de Seta estamos falando sempre de coletivos.
O alcance histórico desse registro e suas formas estéticas encontra rastros no que o cinema italiano tem de mais contemporâneo: de Seta filma uma mina diante do trabalho como Joana Torgal e Rodrigo Pimenta em Wolfram – A Saliva do Lobo, e realiza uma captação de imagem com som direto nas profundezas como Michelangelo Frammartino em Il Buco. Em Wolfram, a mina vai sendo aos poucos descontextualizada, se tornando abstrata, filmada como máquina que se despedaça e se recompõe numa sideração impressionista, menos humana, mas ainda numa ideia de ciclo dos componentes terrenos que obedecem a alguma lei natural. Em Il Buco, as cavernas vão guardando sons perdidos, a cada momento mais descoberta, com a propagação de elementos naturais cuja origem não registramos com precisão pela imagem, mas intuímos pela espacialidade do som direto – enquanto a montagem de Frammartino compara essas descobertas e esses espaços a outras paisagens, naturais na solo italiano ao redor, humanas dos corpos que ali nascem, morrem, se transformam. São filmes que repensam de Seta da forma como repensam um monumento natural, uma paisagem que se transformou mais ainda guarda seus rastros.
Poucos anos depois de de Seta filmar seus curtas, Robert Drew tornava-se um expoente do cinema direto nos Estados Unidos, escola estética continuada e expandida por Frederick Wiseman e os irmãos Maysles com Charlotte Zwerin, de um cinema preocupado em registrar momentos de intimidade no calor do momento, de instituições, políticos, cidadãos, munidos com câmeras menores de 16mm rodados em preto-e-branco, trazendo filmes brutos cuja matéria prima era o presente filmado sob o som direto e a câmera que se adaptava às adversidades da cena. Em 1955, mesmo ano no qual de Seta realizava Contadini del Mare e Parabola D’Oro e Surfarara, Drew largou seu emprego na revista Life e estudou por um ano na Universidade de Harvard buscando entender o porquê de, obviamente na sua visão, “documentários serem tão bobos” [3], e o que fazer para deixá-los mais interessantes. Lá, enquanto estudava sobre história americana, entrou em contato com a literatura, e entendeu que acharia seus filmes em um “teatro sem atores; seriam peças sem dramaturgos; seria como noticiar sem um sumário ou opinião; seria a habilidade de olhar para as vidas das pessoas em momentos cruciais nos quais você poderia deduzir certas coisas, e ver uma forma de verdade que só se poderia conseguir diante da experiência pessoal.” [4]
Nesse contato com a literatura, podemos observar a mesma disposição para um realismo que puxa para a individualidade da experiência e as descrições minuciosas de um ambiente que o mesmo realismo como movimento fazia na literatura através de escritores como Flaubert e Stendhal, como abordou Auerbach em seu Mimesis [5]. A descrição contextualiza os espaços, e a jornada desses protagonistas era diretamente influenciada por eles, e não poderia ocorrer senão naquela época – um esforço parecido com o qual Drew e seus colaboradores filmam John F. Kennedy às vésperas das eleições de seu partido em Primárias (1960). Nessa busca, Drew estava à procura de um filme “verdade”, de uma experiência fidedigna com o que acontecia no real, algo sintetizado pelo ensaísta Jean-Claude Bringuier, citado por Silvio Da-Rin, sobre a câmera do fotógrafo Richard Leacock, cinegrafista de Drew: “O ideal, como se vê, é o desaparecimento mesmo da câmera, do olhar, sua ausência. (…) Eu acredito que o sonho de Leacock e daqueles que trabalham como ele é um cinema sem cinema, um puro olhar sem suporte.” [6] Se isso é completamente fidedigno aos dizeres e imagens de Drew e Leacock (eu mesmo discordo em partes), não vem ao caso; partimos da ideia que Drew e seu cinema direto filmam a realidade sem rodeios, com mínima intervenção na ação.
O que escapa a Drew, no entanto, é justamente o cinema de Seta; concomitantes à esse estudo e descobertas do cineasta americano, o italiano rodava seus dez documentários, que vieram a ser conhecidos em conjunto como O Mundo Perdido, um título apropriado para um retrato de práticas que pouco depois das filmagens foram modificadas – ou totalmente extintas, como no caso da pesca de peixes-espada. São filmes que ficam numa dimensão muito palpável do retrato realista de costumes, hábitos, geografias e espaços de uma terra muito específica e muito cara para seu realizador, mas que não guardam semelhanças ao iconográfico e às experiências formais do cinema direto, mesmo que seus métodos de produção sejam similares na ideia de documentar através de som direto, de gestos, de comportamento, sem narração, sem ênfases verbais. Filmando ele mesmo, com luzes naturais, trabalhando com paisagens sonoras do próprio ambiente, de Seta cria um céu sobrenatural no gradiente entre azul e vermelho, o cinzento dos campos em fúria, o sepiado dourado da colheita; povoando esses lugares, homens e mulheres que trabalham a terra, que puxam seus barcos, que guardam as roupas do varal, que esperam. Lá fora, o vulcão grita, o mar se revolta, a mina estremece, o campo é agitado. Todo esse realismo guarda em igual medida a aventura.
Inspirações e diferentes realismos à parte, na literatura Flaubert retratou Emma Bovary alienada de seu contexto como alguém que procurava aventura e encontrou monotonia, enganada pelo romantismo; o escritor francês lamentava que a aventura havia se perdido e se tornado realista na matéria-prima do mundo, e que apenas o estilo poderia o redimir. Nesses filmes de Vittorio de Seta, essa aventura sob métodos realistas retorna como num ritual, já que sempre esteve por aqui. Basta olhar para um grupo que se lança ao mar com sonhos de retorno, um vulcão em erupção para avisar de seus limites, e saber que quando a câmera aponta para a natureza e para um coletivo, há paisagens e mistérios suficientes para toda curiosidade do mundo.
Referências:
[1] “É através da práxis, apenas, que os homens adquirem interesse uns para os outros e se tornam dignos de ser tomados como objeto da representação literária.” LUKÁCS, Gyorgy, Ensaios sobre Literatura – cap. 2, Narrar ou Descrever.
[2] SCORSESE, Martin – Film Notes – https://festival.ilcinemaritrovato.it/en/film/parabola-doro/
Não se trata de uma questão de “natureza”. A “natureza”, tal como é mais frequentemente entendida, é uma abstração, assim como a ideia de o homem estar perante ela. O que é real é a terra, o mar, o céu, a areia, os pés no chão e a respiração, o cheiro da grama e do carvão, o crepitar da eletricidade, o enxame de pixels… Não há real a não ser a terra, com todos os seus cantos e recantos (“Paysage avec dépaysement”, Jean-Luc Nancy)
“Para que a montanha possa representar o papel de Monte Análogo é necessário que seu pico seja inacessível, mas a base acessível aos seres humanos, tais como a natureza os fez. Ela deve ser única e deve existir geograficamente. A porta do invisível deve ser visível.”
Quando soube que não poderia mais praticar alpinismo, paixão recentemente adquirida através do irmão, René Daumal decidiu escrever sobre a busca de um grupo de aficionados como ele por uma montanha impossível. Tuberculoso, o poeta deu início ao manuscrito de O Monte Análogo: Romance de Aventuras Alpinas, não Euclidianas e Simbolicamente Autênticas em 1939, mais ou menos quando recebeu recomendações médicas para desfrutar do ar da montanha, mas abdicar das escaladas. “Se não posso escalar as montanhas, irei cantá-las daqui de baixo”, e assim fez até sucumbir à doença em 1944, deixando o livro inacabado.
Segundo o narrador de Daumal, o Monte Análogo é um elo entre o mundano e o divino, seu cume se eleva para além do céu e sua base se ramifica pelo mundo dos mortais, oferecendo “uma porta visível para o invisível”. O conto, entre tantas outras coisas, é uma alegoria simbólica sobre a ascensão espiritual e o desapego material, mas penso nesse visível que se abre ao invisível para além da montanha: é possível acessar o imaterial através da paisagem?
Jean-Luc Nancy vai dizer que a paisagem é o lugar do distanciamento e da estranheza. Não pode ser povoada por deuses, entidades, forças políticas ou teológicas, pois deixaria de ser paisagem para se tornar “cena”. Nessa dissolução de presenças, ela passa a ser toda a presença em si, convocando o que Nancy chamou de “sentido da paisagem”, uma sensação ou sentimento de ausência “justamente porque aqui, neste ‘aqui’ da paisagem, ele não consiste em si mesmo, mas na sua abertura” – um esvaziamento que “se abre sobre nós”, colocando-nos não diante da paisagem, mas dentro dela.
Tente se lembrar se alguma vez já sentiu a desolação inexplicável e inescapável proporcionada pela visão de um horizonte distante, o céu pálido se derramando sobre o relevo ao cair da noite, ou ainda, pelo rumor vegetal da mata fechada numa manhã silenciosa. Essa inquietação (quem sabe próxima do unheimlich freudiano) vem à tona quando tomamos consciência de que, superada a representação, a paisagem é pura suspensão. O trabalho da artista visual e realizadora inglesa Emily Richardson pode ser descrito como um prolongamento desse gesto de constatação.
Em seu primeiro filme, Redshift (2001), Richardson vai estabelecer o leque de procedimentos que a acompanham desde então, como o uso da bitola 16mm, longas exposições, câmera fixa, planos longos e técnicas de animação em time-lapse. É um cinema rítmico, dos desdobramentos da luz, do tempo e do movimento, mas para além disso, é um cinema da natureza assombrada e viva.
“Redshift”, ou “desvio para o vermelho”, é um termo usado na astronomia para descrever o cálculo da distância de objetos (como estrelas) através da distorção do comprimento da onda de luz que eles emitem. No filme de Richardson, esse tema é replicado nos corpos celestes distorcidos pela longa exposição e pelo time-lapse, que faz com que pareçam halos ascendendo (ou descendendo) pelo firmamento. Massas densas de névoa e de nuvens se movimentam sobre a silhueta de uma escarpa e pontos luminosos atravessam de um lado para o outro na linha do horizonte enquanto a trilha sonora de Benedict Drew, colaborador de longa data nos trabalhos da diretora, vai compor com ruídos e estática a imagem de um mundo eletrizado, desperto na escuridão.
Leio a descrição do filme que fala em tentar “transmitir a vasta geometria cósmica do céu noturno e fornecer uma perspectiva alterada da paisagem”, mas acredito que há algo em Redshift que não pode ser sintetizado por palavras como “geometria” e “perspectiva”, por mais que consiga enxergá-las ali. É algo do domínio sensorial e sobrenatural – um ritual animista dissimulado pela técnica.
O mesmo ocorre em Aspect (2004), terceiro filme de Emily Richardson. A luz do sol escapa por entre folhagens e galhos de um bosque lembrando as intervenções de Brakhage respingadas quadro a quadro. A câmera paira sobre a vegetação para logo em seguida penetrá-la obstinadamente com movimentos de zoom, e é quase subjetiva, como se incorporasse uma presença criatural. Aqui a passagem do tempo vai conduzir os efeitos práticos de Richardson. As sombras projetadas dançam, árvores se agitam num cenário que acomoda tanto a fábula quanto os primeiros experimentos no cinematógrafo. O desenho de som, mais uma vez de Ben Drew, foi realizado a partir de “fragmentos de sons florestais tipicamente não registrados, formigas no formigueiro, o vento varrendo o solo da floresta e o estalar de um galho”. Amplificados e reconfigurados, esses registros sonoros contribuem para a atmosfera de horror folclórico que parece percorrer a superfície de Aspect.
No conjunto de sua obra, Emily Richardson vai ainda lidar com outras configurações de paisagens como ruínas, ruas desertas, campos de petróleo, instalações militares abandonadas e conjuntos habitacionais. A presença humana nesses filmes é quase nula (salvo os moradores de uma antiga torre residencial londrina em Block, de 2005) e é anunciada através de vestígios mais ou menos visíveis, desde as luzes ectoplasmáticas de faróis em Redshift aos escombros de um radar experimental usado na Guerra Fria em Cobra Mist (2008).
Quis falar de Redshift e Aspect porque acredito que são filmes de manifestações do invisível no visível. É difícil nomear as sensações que mal se traduzem no decorrer da minha experiência com as duas obras, mas fico com o “inquietante” porque diz respeito a um “desassossego que impede o repouso”. Richardson nos coloca em estado de alerta, mas também em contemplação. A montanha, a névoa, o céu noturno, o chacoalhar de galhos e os ruídos mais profundos da terra, tudo pode ser assustador e maravilhoso ao mesmo tempo, se prestar bastante atenção.
Arquivo é a palavra-chave deste filme. Seja na ideia que permeia a própria produção, pensada como herança às novas gerações do povo Hunikui, seja pelo uso de imagens antigas, revisitadas para ilustrar a narrativa (através da chamada “montagem de atrações) ou para ganhar novos sentidos a partir de uma leitura de dentro, até a busca por documentos vivos, pessoas que não só contam a história de seu povo, como a tem marcada na pele.
O filme começa com dois homens adultos, sentados ao pé de uma árvore de tronco robusto. Um deles pede atenção ao que vai ser dito dali em diante, com postura de autoridade: “Nada de virar os olhos!” Mas, apesar do tom, o que vem a seguir é o relato da existência da etnia Hunikui no tempo, com reflexões sobre tempo histórico, memória, imagem e arquivos. “Como é que a gente fazia pra viver antigamente?”, pergunta um deles.
Os Hunikui dividem a história em cinco períodos: tempo da maloca; tempo da correria; tempo do cativeiro; tempo dos direitos e tempo presente. O diretor-narrador, Zezinho Yube, nos conta que, para falar do tempo da maloca, quando todos os hunikui vivam juntos de seus parentes, é preciso chamar os mais velhos, aqueles que guardam a memória daquela época.
No processo de rememorar esse tempo antigo, examinam-se também as técnicas de pesca, de caça e de fazer fogo. Como podiam os mais antigos pescar e caçar usando apenas flechas, sem os facões e terçados que os brancos trouxeram? Relembram também o episódio que gerou o nome dado a eles pelos nawá (aqueles que não são índios), no desentendimento mútuo: duas crianças matavam morcegos e os nawá perguntaram o que elas estavam fazendo, ao que os meninos responderam “kaxi (matar), nawá”. O resto é história.
Na linha de produção de documentos vivos, a floresta que os Hunikui vem reconstruindo à sua maneira no tempo presente se une aos antigos do tempo do cativeiro, que tiveram a pele marcada pelo dono do seringal em que trabalhavam. Como bois, como propriedade, aquele senhor hunikui que mostra o braço marcado e parece irritado quando conta que todos os nawá pedem que ele mostre aquela marca, é respondido no fora de quadro: “é porque esse é um documento forte”. Quando a canoa no ancião se afasta, vemos a câmera montada num tripé, dentro de outra canoa.
Aliás, os Hunikui estão muito conscientes sobre como e porque é importante produzir imagens, tanto quanto um dia foi importante produzir livros (Zezinho conta que escreveu de seis a sete deles). É desse entendimento que vem a frase que nomeia o filme, quando o pajé diz que já virou imagem e está espalhado e sendo visto pelo mundo, sua consciência sobre a importância do audiovisual e da sua transformação em imagem diz muito sobre o lugar que o cinema ocupa naquelas comunidades.
Quando o filme se ocupa de descrever o tempo presente, o que vemos é uma espécie de making of: o microfone sendo revelado, o set das entrevistas sendo filmado de dentro, uns ensinando aos outros como operar a câmera, a comunidade reunida para assistir videoaulas e, principalmente, esse retorno a imagens antigas nas quais eles podem revisitar costumes, como por exemplo fazer fogo a partir da fricção de duas varetas numa superfície de madeira. “Assim já sabemos o que fazer quando o isqueiro acabar”, foi uma das frases que mais marcou ao assistir esse filme.
Chama atenção o movimento narrativo, que parte do tempo das malocas em que se vivia sem o conhecimento da existência dos nawá, seguido pela vida em fuga do tempo da correria, até a fixação forçada do tempo do cativeiro, que desmobilizou os parentes e foi gradativamente os fazendo esquecer de suas festas e de sua língua; daí então para no tempo dos direitos, lá pela década de 1970, encontrarem na ideia de organização do trabalho dos brancos a força para reivindicarem seu território; e então o tempo presente, que voltou a movimentar e reaproximar os hanikui, visando a recuperação de suas antigas formas de sobrevivência.
Esse movimento de produzir uma linha do tempo, atravessada por imagens produzidas pelos nawá, agora ressignificada pelos hunikui através do manejo das técnicas de produção e montagem com imagens, é o grande prazer deste filme. É o que nos move a acreditar que o audiovisual como assunto da educação popular é algo urgente e necessário. E que pode sim nos ajudar a produzir outras versões de histórias tão (pouco) conhecidas como a dos genocídios dos povos originários e sua luta pela retomada de suas antigas formas de viver no mundo.
É comum que vejamos se atribuírem às lentes concernidas com os “mundos à margem do humano” a categoria de POÉTICAS, ou ainda de SEMIDOCUMENTAIS, como se a desvinculação das tramas do desenvolvimento das emoções-ação, cujo centro é o indivíduo, significasse, como no mundo medieval, uma inclinação lunática aos pormenores astrais ou elementais capaz de desviar o olhar e o pensamento (e consequentemente a alma e o raciocínio social) em direção aos signos embriagados do mundo fenomênico. Mas um cineasta preocupado com a chuva, com a confecção de sinfonias geométricas citadinas, com a microscopia das algas ou com a população mística das neblinas não está mais próximo de um “cineasta experimental” porque a sequência de suas relações com o filmado pressupõe um fio conceitual-sensorial que melhor o alocaria num museu, galeria ou festival documental.
Ainda que não neguemos que o cinema é arte massivamente atada ao desenrolar mais ou menos concreto de episódicas humanas, isto não significa que o empréstimo de seu olho ao que indivíduo algum (que não tenha intenções estritamente científicas) se debruça, modo comum, a contemplar, lhe confira um princípio “passivo”, de registro funcional-informativo, onde nas imagens moram os espécimes fantásticos, e nos espectadores a recepção antropológica-boquiaberta. As operações do close-up, do plano de longa duração, da câmera-xamânica (simulação da vista de animais), dos ângulos improváveis, gloriosos ou arriscados, alados, todas essas tecnologias pontífices ao mundo que não alcançamos podem, com efeito, ATRIBUIR UMA VIDA ao que se (a)credita ter autonomia, repulsões, necessidades, meios, aptidões, desejos por si só concentrados na selvageria de sua existência.
N’O Planeta Azul (Il Pianeta Azzurro, 1981), de Franco Piavoli e (sua mulher) Neria Poli, a hipótese de que haja uma AÇÃO DESEJANTE inerente às substâncias todas da Terra, seus animais, elementos, fenômenos físico-ou-químicos, suas horas, “acidentes”, ritmos e estações, faz do enquadramento desse “lugar onde o olho não para para olhar” uma prece ao querer metamórfico e autônomo dos viventes que são infinitamente mais populosos que nós, nesta Terra. Com uma sonoplastia psicodélica de bolhas espaçadas que logo nos mergulha num aquário epitelial em que tomadas oceânicas, close-ups de rochas sob a luz lunar ou de superfícies saturadamente safiras remetem à falsa imobilidade alienígena de tais submundos à vista comum, os diretores nos implantam um aviso de boas-vindas tão sentencial quanto àquele que figura no Inferno de Dante: (parafraseamo-lo) “Deixai todo o saber até aqui conhecido sobre as tecnologias de vida, vós que entrais na dimensão azul”.
Ainda mais impressionante que sua catalogação das maneiras de preservação, reprodução, invenção e entropia inerentes à multiplicidade arrebatadora de organismos (captadas como se um burburinho de vivacidade por ali percorresse, incitando micro-primaveras de fecundação e renascimento) é a semelhança que essas formas de vida se instalam no nosso reconhecimento de processos físicos intimamente ininterruptos à fisiologia humana, trazendo ao olho que tudo aquilo assiste em velocidade e sons selvagens um “entendimento” de fato menos racional que pelas entranhas, uma acoplagem da força natural (de satisfação à sua própria natureza-crescimento) à nova linguagem das forças de nossos órgãos e membros, cujas realidades sabemos cada vez mais sem a necessidade integral do alcance ocular.
Em outras palavras: o filme se passa TAMBÉM pela conexão-nascimento de outras faculdades de nosso corpo entre si. Filme-molecular.
O “azul” a que ele se refere é, ademais, o do encaixe misterioso que se tece entre uma semântica de desejos que modularão as propriedades analógicas de seus corpos no encontro do percurso à coisa que os magnetiza. Todos os seres que o casal filma estão em movimento de saciação, de devorar, na plena languidez que mais os caracteriza justamente por pulsarem numa caça vocal, espaçosa, aparecidos e indômitos. Como se a câmera assumisse o papel de “madrugada”, ou ainda de luar, fomentadora das delícias subcutâneas – é de se perguntar como muitas das intimidades foram alcançadas, mesmo com o zoom –, ritos de transações cifradas em seus movimentos mas claras em suas voluptuosas arquiteturas irrompem, os músculos e geometrias cantarolando um hábito quem sabe quase indecente, não porque contenha obscenidades, mas porque não lhe acontece dar vez a nada que seja de ordem pública, traduzível.
O corpo humano desvela boxeadores vulcões, como se expelisse gases involuntários que não são tão literais… mas antes contestações-contrações oriundas de habitantes nada coadjuvantes daquele interior. A tecelagem de bandos de minhocas entre folhagens demonstra curvaturas que advém de impulsos-choques capazes de lhes percorrerem o corpo inteiro, tão ondulantes e potentes quanto as curvaturas do mar. Aos 37 minutos., uma fileira altiva de patos desfila tranquilamente sob o sol, diante de uma bodega em qualquer interior italiano. 8 minutos depois, aquele bar, que servia de banco de prosas entre dois idosos, se transforma num relâmpago de encontros barulhentos entre camaradas, jogadores, amantes e políticos, e sob a noite e madrugada adiante os destinos se repetem e se diferenciam, engenhando histórias que são próteses incandescentes de seus heroísmos enquadradas pelo jorro de luz e vocalidades que os mantém bem-aventurados.
Os diretores se evadem de maneira inquietante da presença da câmera sobre a matéria-filmada, mesmo se cogitamos aquelas que, simulando no olho da lente um olho de peixe-morto, se entregam ao corpo estranho em “radicalidade”.
A câmera d’O Planeta Azul parece fazer parte do ar. Assume nível microbial. Pior: ela é o tempo. Assume uma estase cristalina, um retrato de certa eternidade, e simultaneamente demonstra ser o alimento que traz a voracidade inventiva ao corpo, à língua, às afinidades litúrgicas que o balanceiam com suas outras naturezas na transitoriedade. Não há, entretanto, adesão ao fanatismo hiper-criativo de uma mãe-gênese: a umidade do planeta água demonstra os suores, os escorregos, os uivos e lágrimas, os saboreares descontrolados, as excreções, emulsões protetoras, os ácidos e névoas – estes seres extravasam as emergências que conduzem ao casulo que os trará, em seguida, de volta a travessia à certa totalidade liberta. Seus líquidos podem assim o ser pois são como lamentos pela inteireza que os falta, ainda que sejam cindidos por uma pele traiçoeira, oposta à unidade que deveriam performar, membranosa demais para que sejam isolados.
O hermetismo atuante dessas orquestras à beira da luz, não solar, mas da razão que implicitamente afirma os objetos a que é necessário emprestar o olhar, prolifera “visões sem os olhos”, tatos que enxergam, equilíbrios feitos por ecolocalização (projeções sonoras que sobrevoam e são devolvidas ao emissor, anunciado distâncias estrategicamente), cotovelos que medem o impulso de escavação. Um corpo de poderes dentro, ou melhor, por toda a extensão do corpo põe em orgia as fantasias mutantes com que somente o gênero da ficção-científica ou da ação podiam sonhar. Quanto mais de perto se permite assistir à procissão dos membros díspares de nossos corpos (de habitantes do Azul), mais uma sazonalidade propícia à cada mistério por trás de tantas partes para tão pouco tempo assegura essa “assemblage” (montagem) de corporeidades empilhadas numa intenção de ser só. Somos mais quiméricos do que qualquer especismo possa separar.
A intensificação da sonoplastia quando nos deslocamentos rente aos olhos de sapos acasalando ou a centímetros do festim de uma aranha sobre sua libélula-presa, essa umidade das fusões, golpes e proporções que nos remontam ao “artístico” dessas peles e patas muito antes da arte “nascer” termina por cruzar de vez as barreiras da razão, reforçando a estridência mágica quase insegura deste cinema, posto que seus coaxares, zumbidos, grunhidos e pios ganham dimensão invasiva cada vez mais enlouquecedora ao espectador que não se disponha a ser rachado para deixar outras comunicações penetrarem seu campo de possíveis. Tudo o que a memória computa, afinal, a ela é instrumental.
Mesmo quando as cenas se deslocam das naturezas animais às climáticas, humanas ou domiciliares, o apreço à invasão dinâmica dessa força de assimilação entre sons, texturas, umidades e luminosidades cria fantasmáticas e povoamentos às matérias mais sonâmbulas ou esquecidas. Piavoli e Poli dão justa vida aos acúmulos catárticos de chuva sobre vidraças, desertos de poeira historiográfica, musgo, fungos gráficos, ferrugens esfomeadas, objetos abandonados de aura totêmica, uma estratificação de sobrevidas tão interativas entre si, que seus ressoares criam um “invisível visível”, uma clareza territorial mais vestigial e mais elétrica, mais extática e condutora que qualquer arsenal de fiação em curto-circuito.
Uma vida cogitada continuando muito além de nossa humana extinção fica perfeitamente plausível, mas melancólica, se não há quem as capture, buscando nelas o mínimo interferir. Um esplendor que somente nossa simulação astronauta pode abraçar: pois terá nos considerado (ficticiamente) estranhos a esta heterogeneidade (contraditoriamente homogênea) azul.
Do fogo que incinera e da água que engole os amantes – é a natureza que consome o amor nos dois últimos filmes de Christian Petzold. Undine e Afire misturam o real com o fantástico para assombrar paixões imprevisíveis, cujo inescapável destino, no entanto, é o de se fundir, tragicamente, à paisagem natural.
Mesmo que por acaso, a própria estrutura dos filmes de Petzold emula os mistérios da natureza: da premissa inicial – seja ela o absurdo de uma mulher que diz precisar matar o parceiro que tenta acabar o relacionamento ou o clichê dos amigos que vão passar um verão à beira mar – a narrativa muda de direção sem mais explicações. Mudam também o ritmo e o tom: entre a repetitividade de uma rotina que ocupa a cidade cinzenta e a monotonia do escritor que, rodeado de belezas naturais, se limita à tela do computador, de repente, explode a tela em sopros de romance e rajadas de tragédia.
Em Undine, Berlim até parece ser protagonista: historiadora, a personagem de Paula Beer conduz visitas guiadas por pequenas maquetes da cidade, que, evocada a todo momento, pouco ocupa o foco da câmera. Entre as visões dos cartões-postais da capital, que só aparecem enquadrados pela janela de Undine, é no resquício de pântano logo ao lado que a magia do conto se constrói. O caminho estreito e os trilhos dos trens que o casal percorre com um andar sincronizado – e, rapidamente, apaixonado – leva a uma paisagem bucólica mas não menos acinzentada que a cidade.
Entre as árvores, uma barragem industrial aonde Christoph leva Undine para um mergulho. O absurdo de um encontro nas profundezas de um rio cercado por concreto se transforma em fantasia quando o bagre gigante – apelidado por Christoph e seus colegas de Big Gunther – aparece ao lado de uma inscrição do nome da própria protagonista em uma coluna submersa. Todo mistério é pouco para Christian Petzold em Undine.
O cenário de Afire é menos excêntrico, misturando clichês da tradição dos cinemas de verão. Uma dupla de amigos se vê perdida, com um carro quebrado, em uma floresta desconhecida, há alguns quilômetros da casa de praia onde passariam as férias. Terror adolescente: os sons silvestres se aproximam quando o mais inquieto da dupla é deixado sozinho no meio de uma mata prestes a incendiar-se. Quando, finalmente sãos e salvos, chegam à casa, o drama que se instala é mais próximo dos contos morais de Éric Rohmer do que dos contos fantásticos em que se inspiraram o filme anterior.
A diferença é que as praias do diretor francês não serviam muita função além da cenográfica. Em Petzold, no entanto, a tragédia ambiental é anunciada desde o título – que, em sua versão original, Roter Himmel, traduz-se literalmente como “céu vermelho”. O som dos helicópteros de bombeiros que não se veem instalam a agonia do que estaria prestes a acabar com os dilemas morais e casos amorosos que calmamente surgiam ali.
Quando os personagens se dispersam na mata incendiária, é novamente na figura de animais que o mistério da tragédia em curso se personifica. A imagem dos dois pequenos javalis queimados talvez seja a mais memorável do filme, sem que seja necessária uma interpretação grotesca sobre a metáfora que Petzold certamente não estava tentando criar ali. Como no poema The Asra, de Heinrich Heine – recitado pela Nadja de Paula Beer e recebido com surpresa pelo Leon de Thomas Schubert – aquele seria o destino dos amores recém formados: a terra “daqueles que morrem quando amam”.
Quando Undine é engolida sem retorno pelas águas do rio em que vivera o amor com Christophe, a fantasia se desfaz em uma realidade sombria, em que paixão não é o bastante para transformar em realidade o ser mágico do mito que dá nome ao filme. Assim como a tragédia do fogo não é o bastante para reacender a breve paixão de Nadja e Leon. O que resta é a lúgubre magia do amor, que se foi, e a paisagem, que fica, impressa nas imagens de cada filme.
A Bíblia, livro do pioneirismo quaker por excelência, é citada no início de O Atalho, filme introspectivo inspirado por Deus, o Diabo, Moisés, Emerson e Thoreau; trata-se daquele trecho da Gêneses no qual, com apascentada fúria, Deus expulsa Adão e Eva do te deum de seus olhos benevolentes e os condena a lavrar a terra com o suor de seu rosto: aqui (no versículo), está tudo consumado, como diria a Medea finalmente sacerdotisa no final do filme de Pasolini; mas para a obra-prima de Reichardt este é apenas o dístico de um duro, áspero, cadenciado aprendizado perceptivo sobre a terra, os rios, as colinas, as texturas e a profundidade de campo a desbravar neste que tem por objeto a proto-comunidade em vilegiatura no deserto, que agora também é uma casa ressoante de cumeeiras ao vento; o método está dado desde o princípio de O atalho: a diretora inventaria corpos humanos e naturais, enquanto que na banda sonora homens cochicham e mulheres sussurram, à espreita pelo que virá; as paisagens contempladas por Reichardt são possuídas pelo pneuma não mais do sopro de Deus, e sim da respiração humana solicitada pela fala diligente, sistematicamente empenhada em conhecer a topografia do lugar que lhes serve de abrigo temporário, mas cujos sulcos e cicatrizes já possuem a presença humana em sua integridade; o barbudo pioneiro de pele bronzeada (o sr. Meek do título original), que nos interpela no meio da escuridão como um rabino de Rembrandt, nos revela que “eu não estou apenas neste mundo, eu vivo inteiramente nele”; eis a chave ou révelateur da tática de Reichardt: o comentário onipresente religa o homem à terra (religare) e o homem ao homem, assim como os passos das bestas de carga, os archotes e as rodas da carroça; tudo é de indispensável valia para nos restituir a parousia deste mundo antigo, cravado na escuridão ou saturado pela ardência dos raios de sol, em todo caso modesto e humilde, andarilho mas saudoso de Casa, como nos mostra esta moça de traços desenhados a crayon magenta que recusa o guisado mas fica com o naco de pão: “Basta-nos”; o cinema de Kelly Reichardt, romântico, indômito e telúrico (mas tudo isto segundo o pianissimo do gesto esquivo que volta a figura humana para dentro, abdicando de seus contornos em nome de um sfumato cismarento de Vermeer em locação natural), é antes de tudo uma épica perceptiva que deve reconduzir o personagem à paisagem como seu habitat apofântico eminente; mas esta aventura não é mais fordiana ou hawksiana, pois se interiorizou; soterrada sob estas colinas arquetípicas, desvela para o homem o seu lugar e o seu tempo videntes: o sostenuto do ritmo, o découpage lento e adstrito ao movimento furtivo do quadro e do corpo, o contracampo distante: o corpo paradigmático não é mais a entalhadura áspera do resiliente Monument Valley, e sim o abscôndito do pastor que recita Daniel, da senhora do rebanho e do filho pródigo, talhados na pedra da colina crepuscular e do versículo vaticinante; o western revisitado por Reichardt é antes de tudo a chance de um aprofundamento ensimesmado da experiência, de um tao absorto na pegada da vaca e do companheiro de jornada, recordando-nos com suas aquarelas devaneantes que o homem, em qualquer horizonte espaço-temporal, será sempre o mesmo, o menino que é pai do homem e a errata pensante, ou a natura naturans processual de Spinoza que Klee retomou numa palestra em Iéna.
Vejamos um exemplo pontual de seu propósito: em um plano decisivo pelos trinta minutos de O atalho, Reichardt desafia a centralidade clássica para nos revelar uma personagem que corre na extremidade do cadre 1:33, resgatado do uso bárbaro que a TV, herdeira genealógica das matinés do passado, havia imprimido a ele: ela viu um índio armado, e se precipita na direção contrária, para fora do centro que os antepassados haviam eleito como a perspectiva ideal para o aparecimento da figura humana; neste trecho, a démarche, os meios e a teleologia do propósito de Reichardt como cineasta aparecem de forma paradigmática: a eclosão da ação acontece por intercessão da aparição da figura humana ou figura tout court, porque para seu olho atento à grandeur nature do detalhe revelador, tudo o que aparece no plano deve ser levado em consideração: cinema epifânico do campo aberto, do confronto entre presenças segundo a noção do contracampo primitivo (Lourcelles) como choque frontal; as consequências, no entanto (na contramão dos raccords sensório-motores do cinema paradigmático clássico) serão anti-climáticas, minimalistas, enviesadas e difusas, e vão se espraiar pelo corpo do filme como uma espécie de infiltração sempiterna cujas coordenadas serão devidamente dadas pela trajetória, um tanto capturadas segundo a norma impressionista de uma empreinte figurativa, das rondas, das pistas e dos rastros digressivos do que nos aparece, dos personagens ao longo de sua peregrinação sobre a cratera do deserto; como as falas entre irônicas e impertinentes de sr. Meek, que atormentam para saborear sua fúria tímida a Emily Tetherow (a garota que viu o índio), os versículos da Bíblia murmurados pelos personagens entre uma siesta e a amarelinha com o invisível da criança comentam, agora numa chave sub species aeternitatis, os acontecimentos narrados para projetá-los em um solilóquio com a prece, e Reichardt talvez seja a mais adequada cineasta para filmar pessoas em contato com a palavra inspirada: em primeiríssimo plano de apoteose silente, um homem lê Jeremias para escapar ao peso morto da duração estagnada, e todo o mundo se reúne em concêntrica compunção para escutar com ele; como o marulho da pedra sobre a água serena, o evento traumático (ou dramaticamente construído, pático) é capturado em suas repercussões intimistas, em um alheamento anti-climático de que as deambulações no cadre, leitmotif magistral do filme, vão estabelecer a norma de ritornello; o índio será capturado, mas as consequências narrativas interessam a Kelly Reichardt como o banho no jardineiro de Lumière ou as aparições do Diabo, metteur en scène à onipotente espreita, em Méliès: a luz, o ritmo sorumbático, o sotaque anasalado do sul e a ação inerte como um escombro na rota das alvíssaras serão a decisiva pedra de toque deste tao destinado às rondas centrípetas de uma terra abandonada pelos favores de Deus, seu amante absconditus que só nos é dado ouvir pelas linhas tortas: a sensação figural, condensação entre percepção e intuiçãonão-categoriaisque Deleuze viu em Bacon, seria antes o moto de tudo; mas estaria sendo infiel a Kelly Reichardt se não observasse com atenção as arcadas e limiares com que nos presenteia em plena locação, lugar malfazejo para a escolha de cadres: O atalho é também uma ode plástica à Natureza, uma prova decisiva de que o corpo humano é a matéria figurativa de argamassa mais elevada de que o cinema dispõe, como neste sobre-enquadramento figurativo dos pioneiros na captura abaixo.
Em certo momento perto do final, O atalho, filme tecido com as agruras digressivas de uma duração impossível (de Deus ou do Diabo: a escolher, caro espectador) nos testemunha o desregramento de todos os sentidos e de todos os signos de que o deserto, lugar da aparição de Deus e das tentações de Asmodeu, é capaz: uma desterritorialização semiótica absoluta; em que sentido? Os pioneiros veem o índio falando alto e em tom trôpego, muito agitado, e concluem que está se comunicando com outros, com estes mesmos outros que virão para trucidar a troupe de Yavé; mas um intérprete benfazejo desfaz o equívoco: ele está rezando, como todos ao longo do filme; pelo raccord da direção do olhar e posição do índio no cadre, qualquer pessoa ainda humana se aperceberia de que ele fala a ninguém, ou a este Totalmente Outro que os incautos podem tomar pelo Nihil, ou Deus; perdidos no deserto, os personagens, porém, não podem ver como são vistos, e se equivocam ao confundir uma prece entoada com fervor com um plano terrorista de fuga ou invasão: o que se dá aqui, induzido pelo cansaço, pela paranoia deambulante e pela digressão extática é uma total incomunicabilidade, a ausência de totais coordenadas que talvez seja a coordenada mor: aquela que nos conduz aos deuses, extravio ontológico por excelência; em seu livro já clássico sobre profetismo judaico “A essência do profetismo”, André Neher nos comprova com índex míticos e místicos cabais que Deus (ou D’us: o impronunciável, interdita a imagem mesmo do significante) é alteridade radical; e como ele colocou esta irredutibilidade sem remissão, este no man’s land sem saída? A cada profeta D’us exige uma tarefa totalmente contrária a seus penchants subjetivistas, como por exemplo: a Ezequiel, muito higiênico, solicita que cozinhe um frango na merda e o coma; a Isaías, muito pudico, pede que saia de cabelos desgrenhados de fúria santa e nu pelas ruas de Israel, para proclamar sua prostituição; etc.
Deus é a alteridade do deserto, do mar negro e profundo, do olhar do cão e da prece do índio, aquilo que necessariamente me exclui (ergo, cogito, no caso ocidental, branco, americano, etc); para os herdeiros quakers, leitores dos profetas excluídos da ceia pascal do Egito, Kelly Reichardt acha uma forma de instituir uma exclusão da exclusão, e nos representa o deserto em seu nec plus ultra místico como o lugar do não-lugar (ou da digressão extraviante, à toa e qualquer): o Deus do frango cozido na merda encontra aquele que o cinema americano sistematicamente se empenhou em legar ao hors champ (o autóctone): temos uma paulada política de cinema tardio que, devidamente encoberta pelo brilho do roteiro de Jon Raymond (com as elipses certas para centrar o descentrado, ou revelar agora no centro aquilo que não víramos nas bordas) e pela mise en scène e découpage de elípticas ocultações e desvelamentos, sem a necessidade de nenhum discurso, panfletismo ou clin d’oeil grosseiro para nossas plateias politicamente corretas; séculos de exclusão são invocadas e evocadas com pertinência, elegância e decoro, de acordo com esta semiótica do miserere que espera os quakers na Terra prometida do extravio divino: a Diferença também pode ser representada numa arte materialista como o cinema, e aqui trata-se da eminência de Deus e seus oxímoros escandalosos: a Diferença da Diferença; O atalho antecipa First cow, penúltimo filme de Reichardt que faz tabula rasa do balbucio anencéfalo de majoritário presente do cinema para lançar as devidas cordas e liames de nossa relação, até hoje pouco esclarecida em sua profundidade de révelateur, com o passado opressor; mas o passado, ao contrário do que certa histeria de esquerda hoje possa pensar, não é apenas o lugar da exclusão, da diferença irrecuperável, da maldição (pós-metafísica) da Origem; ele é também o lugar da Origem como destinação do presente e imagem pela qual inventamos os deuses e fotografamos o ser nas empreintes de verité das palavras (relevância absoluta da etimologia, aliás); em Intolerância, filme épico do Griffith que viu o cinema nascer, temos Lilian Gish embalando um berço imemorial ao som do ritornello do Totalmente Outro, História carnívora e Mesmo padastro; o passo para trás heideggeriano de First cow e O atalho se reapropria do passado como a imagem-mater desta paternidade clássica, tantas vezes terrível mas necessária para se fazer o luto, que nos viu nascer e morrer novamente; não é pouco para os tempos intempestivos que nos atropelam.