Por João Pedro Faro
J.C Rousseau nunca está sozinho, seus termos de cinema não permitem. Em um regimento particular de criação, invariavelmente composto pelo realizador, um tripé, sua câmera e um gravador, forma-se a aliança de enfrentamento do acaso que perpassa quatro décadas de imposição fílmica. Enquanto sua linha sonora segue a lógica da exploração do tempo ulterior à gravação das imagens, seus enquadramentos se apegam ao presente do registro, o tempo impossível onde o agora é perpétuo caso produza encontros, formas e direções que satisfaçam o desejo por signos concretizados e brechas narrativas estipulantes. Ou seja, ao decorrer do tempo da bobina de filme que se concentra em imprimir um único plano do mundo (que só será cortado pelo fim da linha da película), dentro das preciosas limitações do espaço e dado o ponto de exploração irremediável do tripé, deve acontecer algo de cinético que, picotado ou não pela póstuma montagem do registro, esteja perfeitamente encenado.
Seria injusto e até desanimador pensar esse cinema como sendo um trabalho de empirismo, até porque não se trata de botar nada à prova de um mesmo método, mas também não podemos deixar de notar que em seus filmes há uma série de experimentos em andamento que caminham para resultados que, mesmo misteriosos, soam conclusivos. O que está acontecendo em filmes como Jeune femme à sa fenêtre lisant une lettre (1983) e o que acontece durante os 10 anos de filmagem de seu projeto mais extenso e complexo, La vallée close (1995) é uma conjuração de limites que, postos ao enfrentamento do registro (a bobina de filme que corre dentro da câmera), em um libertador processo autoritário de gravação, ordenam os elementos diante da lente para que suas particularidades se expressem como um cinema pronto, esteja a câmera enfrentando objetos tácteis (janelas, mapas, cadernos, lâmpadas, portas e espelhos) ou aleatórios (passantes, ruas, mares, árvores, nuvens).
Diferente de outros cineastas que colecionam registros, como Mekas ou Sonbert, ele não está interessado em uma certa espontaneidade presente nas gravações que perduram pela passagem de tempo. Pelo contrário, seu tempo é controlado pela sua encenação, e deles não se espera nada de espontâneo, e sim um cumprimento do que os seus limites impostos na imagem prometem. Em seu primeiro curta, Venise n’existe pas (1984), de 11 minutos, gravado com uma Super8 em um quartinho de hotel em Veneza, é possível desmontar um pouco de sua lógica misteriosa de expressão através de uma atenta revisão de suas poucas sequências.
É enfadonha a tarefa de transcrever um filme num texto, mas nesse caso não há escapatória. Venise n’existe pas pode ser visto como organizado em três partes. O primeiro enquadramento apresenta a janela do quarto, uma fixação recorrente do realizador devido às suas funções múltiplas: é tanto um objeto táctil que serve às encenações (ela abre, fecha, reluz e reflete), quanto um meio de controle da encenação do aleatório (o controle da luz do sol, como se fosse um enorme diafragma, além dos claros limites das bordas da janela que enquadram dentro do enquadramento, que fecham o aleatório da paisagem exposta dentro de uma especificidade irremediável, o que não poderia estar mais próximo das intenções do cineasta). Dessa janela, que reflete um pouco de luz em alguns móveis mas não o bastante para que foquemos no quarto, vemos um enorme barco que vai cruzando águas venezianas. Um barquinho menor cruza rapidamente a paisagem atrás desse barco maior. O som de seu motor vai dando lugar a uma canção em italiano que ressoa pelo espaço (ela vem do barco?) e que vai indo embora à medida que o barco vai sumindo pelo canto direito da janela. A tela fica preta por um instante, é o primeiro corte. Sem a música, ouvimos um trecho de áudio que parece gravado no meio de uma praça, onde som de carros e burburinhos de conversa se confundem. Ouvimos uma buzina. Ainda vemos o mesmo mar, do mesmo plano, e a música anterior retorna. De repente, um barco vem entrando pelo canto direito (seria o mesmo barco?), como se chamado pela canção repetida, e depois, pelo canto esquerdo, um barco menor também vem chegando. No momento em que parece que vão se chocar, a bobina de filme acaba, com a tela bege anunciando seu fim. A imagem retorna, e ainda estamos na mesma janela, com o mesmo enquadramento, só que com menos iluminação. As bordas do quadro, antes percebidas pelos poucos reflexos de luz, agora estão em um breu completo. Portanto, as bordas do quadro se tornam exclusivas da janela, tornando o enquadramento necessariamente vertical.
O que segue é a visão da água por esse quadro vertical que vai escurecendo aos poucos, picotando progressivamente a visão rumo ao entardecer. Vários barcos surgem na estreita paisagem, aparecem sem adentrar os lados, simplesmente se materializam na água, deixando claro que não estamos vendo o tempo escorrido, e sim retalhado. Esses barcos somem e aparecem da tela com certa rapidez, sempre aparecem no meio do caminho e desparecem antes que possam sair por um dos cantos da janela. O tempo não é mais o mesmo, mas o som se repete. Ouvimos a mesma canção (como se o barco do primeiro plano ainda ressoasse, ou deixando claro que o som não vinha mesmo daquele barco) e depois os mesmos burburinhos e os mesmos carros. Parece um loop de suspensão do tempo, onde todo o tempo é o agora, o passado não ecoa, ele se faz inteiramente presente no tempo como se nada realmente deixasse aquela permanência da câmera. A paisagem vai escurecendo até que os barcos se tornam apenas pontos de luz em uma escuridão imensurável. Quem está saindo do lugar primeiro: os barcos ou a janela?
Um filme acaba, entramos na tela bege e depois chegamos a um novo enquadramento. Agora vemos a janela fechada (é a mesma janela do primeiro enquadramento, mas a vista está parcialmente coberta por uma cortina). Com a luz clara vinda da janela e o distanciamento promovido pelo quadro, podemos ver um espelho, um armário, além da cortina, todos refletindo uma iluminação azul que dá uma continuidade torta e inventiva para a água do mar. O cineasta adentra o quadro pelo canto direito, de costas para a câmera, e caminha até o espelho. Seu rosto está distante e turvo, sua expressão não nos diz nada, ele é mais um objeto táctil (talvez seu corpo em tela seja o elemento mais controlado de todos, mais do que suas janelas ou seus móveis, seu corpo é um objeto de cena que o cineasta pode controlar totalmente a presença e as inflexões). Ele deixa de olhar para o espelho, adentra brevemente o quadro da janela deixando sua silhueta em contraluz, e sai pelo mesmo lado que entrou. O som é o mesmo que percorreu os diversos tempos do enquadramento anterior, a canção italiana do barco fantasma seguida pelos sons urbanos. Agora, acontecerá algo realmente chocante, um contraplano!
O contraplano mostra o resto do quarto: uma porta fechada ao lado de uma cama arrumada, modulados pelo domínio da luz azulada que vem da conhecida janela. O cineasta adentra o plano, novamente, pelo canto direito, e senta na cama. Ouvimos mais uma vez o mesmo som de carros e burburinhos. Toca a buzina. Nesse momento, ele interage com o som pela primeira vez, virando o rosto no momento em que a buzina toca. Agora está olhando para a janela, com o rosto iluminado, culpa dessa buzina perene que prova que o único tempo existente é o tempo do registro e, desde que esse registro soe, o tempo presente em que ocorreu nunca deixa de materializar-se. Ele deixa de olhar para a janela e deita na cama por alguns segundos. A canção italiana do barco volta a tocar. Ele levanta e retornamos ao enquadramento anterior. Ele caminha até a janela e abre a cortina com rapidez, mas assim que ela deixa de encobrir parte da janela, a bobina de filme acaba. Não ouvimos o som dessa cortina abrindo. Vamos para a tela bege e depois para a tela preta.
Em seu último pedaço, o filme se concentra em um único plano que abre desfocado. É uma imagem indecifrável e estática, uma paisagem borrada de cores e formas. Agora quem produz o som é o próprio cineasta. Ouvimos ele discar um telefone e desligá-lo antes que alguém atenda, seguido por um cântico que parece fazer com a boca fechada, uma série de assobios e a repetição da mesma negativa. “Non, non, non…”. Surge o som da cortina abrindo junto com o ato de focar a imagem, como se a janela da lente finalmente permitisse que a visão borrada se revelasse.
Agora vemos perfeitamente uma pintura de Veneza, dessas típicas de quarto de hotel, que retrata a paisagem mais turística possível (a ponte de Rialto) com uma estranha profundidade de campo e de texturas quase fotográficas. Pintada no topo, está algo que pode ser tanto a lua quanto o sol. A sombra do cineasta passa pela imagem, que volta a desfocar-se, contraindo todas as consequências da iluminação em que está submetida. Seu reflexo passa mais uma vez pela pintura, mudando mais uma vez a iluminação sobre ela e voltando a deixar a imagem focada. Ouvimos um som ambíguo, algo como uma avenida ou uma estrada, um som que não parece pertencer a nenhum dos elementos anteriores e que não pertence a nenhum dos outros sons que haviam estado em loop nos momentos anteriores do curta. Uma sombra se projeta sobre a imagem, umas luzes se formam sobre sua superfície, mas a pintura está permanentemente focada. Esse local de passagem que é o quarto de hotel, tão comum aos filmes do cineasta, é propulsor de criação por ser essa permanência breve e limitada, nada pessoal, que por si só já prepara toda uma série de limitações que são custosas ao seu modo de registro. Do táctil ao aleatório, o movimento se conecta pela imposição da câmera contra o tempo, pela força do breve e do limitado em se tornar perpétuo, como se o momentâneo fosse a única forma possível de presenciar o firmamento cinematográfico. Depois de encararmos a pintura de Veneza por mais uns segundos, a bobina se encerra, voltamos pra tela bege e então pra tela preta. Silêncio. Aparece escrito: “Venise n’existe pas”. Não é um título, é uma conclusão. O filme acaba.