Por Michel Gutwillen
- Destruir e preservar: a morte cinematográfica e o Cinema da Morte.
Um homem com uma câmera na mão. Um homem com uma arma na mão. À primeira vista, pela língua portuguesa, as duas frases em questão possuem significados e significantes diferentes. Já no inglês, usa-se o mesmo significante — shoot — para ‘filmar’ e ‘atirar’. Um diretor de Cinema e um general de guerra dizem o mesmo para seus subordinados: point and shoot (apontar e atirar/filmar). Ora, filmar almeja a preservação eterna de um instante único e atirar (para matar) objetiva a destruição eterna de uma vida. Como podem ações tão repelentes serem representadas pelo mesmo significante em qualquer língua? Afastando-se de uma explicação etimológica em prol de uma aproximação simbólica da questão, no mundo material descobre-se que ‘atirar’ e ‘filmar’ (destruir e preservar), paradoxalmente, andam lado a lado.
Em Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra (1989), o cineasta Harun Farocki aponta para a existência, na 2.ª Guerra Mundial, de aviões de bombardeio que eram equipados com câmeras, de modo que no momento em que as bombas eram jogadas, uma foto também era tirada, preservando aquele momento de destruição para sempre. Já no campo da literatura, o filósofo Paul Virilio, em seu livro “Guerra e Cinema”, analisa a história das disputas armadas em paralelo à evolução tecnológica dos meios ópticos, observando como eles influenciam um ao outro e já assumiram diferentes posições de hierarquia entre si, ciclicamente. Em uma relação de retroalimentação, a guerra existe para fins cinematográficos e o Cinema também serve de instrumento na própria guerra.
No mundo contemporâneo, o drone pode ser visto como o representante máximo dessa retroalimentação entre Guerra e Cinema. Por ser um objeto que simultaneamente consegue disparar um míssil teleguiado como também filmar com uma câmera, a polissemia do shoot sai do campo linguístico para o prático. Fica uma dúvida: é possível estabelecer causa e consequência? As imagens existem porque devem gravar as mortes, ou as mortes existem porque precisam virar imagens? De qualquer modo, com a reprodução dessas imagens de aniquilação, a guerra se transporta para o campo imagético, com fins de dominação psicológica, nas quais a produção audiovisual bélica se torna uma forma de dominação e instauração do medo. Inclusive, consciente desta ambiguidade, hoje o Cinema já abre o território para explorar criticamente essa destruição-preservadora dos drones, como a francesa Eléonore Weber em Não Haverá Mais Noite.
Já indo para uma esfera mais simbólica, pode uma câmera se equivaler a uma arma? É aproximadamente isso que diz o cineasta David Dufresne, em O Monopólio da Violência, reconhecendo a possibilidade dos registros amadores de celular se tornarem uma espécie de armamento popular em detrimento do monopólio da violência do Estado. Ou seja, apesar do verbo filmar aqui não significar literalmente atirar, a câmera pode ser uma arma que a população usa legitimamente dentro da guerra urbana, ofensiva ou defensivamente. Ainda que capturar uma imagem não seja uma agressão imediata, pelo menos no campo mediato ela pode ser usada para constituir provas do crime. Ao empunhar o celular como uma arma para um policial, a pessoa estaria inibindo sua ação ao gerar o mesmo efeito psicológico de medo que estar sob a mira de uma arma.
- As protagonistas de suas próprias mortes em Peeping Tom (Tortura do Medo)
Quando o objeto de destruição passa a se confundir com o de percepção ao longo da história, é porque, na verdade, existe uma associação do ato de olhar com um ato de violência. Em uma das passagens de Virilio sobre a guerra, ele diz que a sua principal finalidade é, antes de tudo, a produção de um espetáculo mágico, no qual abater um adversário é infligir, antes da morte em si, o pânico que vem dela. Ainda que sua história não passe num campo de guerra, os conceitos de Virilio são antecipados em uma obra de ficção de 1960, Peeping Tom, cuja tradução para Tortura do Medo na versão brasileira talvez permita uma maior captura de sua essência. Nesse filme dirigido por Michael Powell, um fotógrafo-assassino filma e mata suas vítimas, simultaneamente destruindo a existência delas no campo material e preservando suas imagens para sempre. Suas motivações se mostram menos pelo desejo da morte em si, mas para conseguir eternizar, em imagens, uma instante irreproduzível em qualquer outro momento: o medo e o desespero na iminência da morte.
Neste contexto, para o protagonista Mark Lewis, a destruição (morte) existe como um meio para um fim: se tornar Cinema. Citando outra passagem de Virílio, em Tortura do Medo, “a morte ganha fins publicitários, [..] pois antes da arma ser um instrumento de destruição, ela é percetível, afetando processos químicos e neurológicos sobre os órgãos do sentido”. Com a posse de uma arma que é uma câmera, é essencial para o assassino que suas vítimas percebam que estão prestes a serem mortas, sendo torturadas pela sensação de medo, já que só assim elas vão reproduzir a imagem desejada por ele.
Se filmar e matar se confundem, quando Lewis está conduzindo uma de suas vítimas para o abate, isso significa que, cinematograficamente, ela deve estar sob a perfeita posição, luz, ângulo e distância para ser enquadrada pela câmera. Em outras palavras, matar exige uma mise-en-scène, em que a cena do crime também se torna um palco ou um cenário, no qual a pessoa vira protagonista de sua própria morte. É exatamente isso que acontece na sequência que se passa no estúdio de Cinema, na qual a personagem da atriz, enquanto ensaia um número musical se movimentando pelos espaços, vai tendo seu posicionamento orquestrado por Lewis, sem que ela perceba algo de errado, até chegar na marcação ideal desejada por ele.
Na equivalência entre filmar e matar, Powell faz com que vejamos as sequências que conduzem ao assassinato a partir de uma câmera subjetiva, que é a própria filmagem diegética que o protagonista faz. Então, o resultado dessa escolha leva à uma confusão tripla do olhar, que envolve o diretor Powell, o protagonista Lewis e o próprio espectador. Nesse sentido, há um movimento pedagógico em dar luz ao próprio male gaze escondido pela indústria hollywoodiana. Segundo Anneke Smelik, em seu artigo Gaze, “nos filmes clássicos de Hollywood, o personagem masculino olha para uma mulher enquanto a câmera filma o que ele vê. Como a câmera filma junto com o personagem masculino, o espectador é convidado – ou melhor, forçado – a adotar uma posição masculina. O ‘male gaze’ é uma estrutura cinematográfica que combina um olhar triplo: câmera, personagem masculino e espectador.” Sendo assim, fazendo um movimento de tornar o simbólico algo literal, quando uma mulher é olhada e desejada pelo male gaze em Tortura do Medo, isso se torna igual a sua sentença de morte. Inclusive, Powell nunca mostra frontalmente os momentos de perfuração, sempre fazendo uma elipse, de modo que a última imagem daquelas mulheres não é a da penetração com a arma, mas do olhar apavorado para a câmera, predominando a ideia da morte pelo olhar do que pela morte física.
Só que Tortura do Medo não fala apenas do olhar masculino biológico, mas também de sua mediação pela câmera, cúmplice dele, e então uma outra consequência da pedagogia de Powell é a revelação do poder psicológico e bélico que está escondido no campo técnico de visão. Afinal, há uma grande diferença entre os planos que mimetizam a visão da câmera de Lewis com aqueles em que a decupagem da cena observa os acontecimentos objetivamente de fora, com Powell formando uma verdadeira dialética entre elas. Quando o espectador observa a cena pela câmera de Lewis, sua figura passa a existir no extracampo. Por não estar visível, ele deixa de ser apenas um homem comum e passa a se tornar uma figura que pode ser construída no imaginário de cada mulher de acordo com seus medos. Já quando o espectador consegue ver a figura de Lewis interagindo com as mulheres, a atuação de Karlheinz Böhm revela um homem de aparência frágil, com insegurança, que fecha os braços em volta de si mesmo, que tem ocasionais gagueiras, que não possui o menor tato social e é até amedrontado pela presença feminina. Ao fornecer a imagem de Lewis, Powell faz o mesmo que o protagonista faz com suas vítimas, levando-lhe a uma situação de vulnerabilidade justamente pelo fato de estar sendo enquadrado.
Por irem se acumulando repetitivamente ao longo da narrativa, toda vez que Powell usa o ponto de vista de uma câmera, cria-se uma antecipação de que a vida da pessoa que está sendo enquadrada corre perigo. De cena em cena, Tortura do Medo vai forçando uma associação de que quem é filmada, é morta. Portanto, vai se instaurando um mal estar toda vez que o espectador também está por trás da câmera, sentindo a violência daquele olhar que se torna uma violação por si só, mas que também é um incômodo por dar luz para sua cumplicidade (principalmente do espectador masculino, que compartilha daquele male gaze). Fora isso, existe toda uma similaridade visual da câmera que Lewis usa com a da mira de uma arma, o que dá ainda um maior simbolismo bélico para as suas filmagens voyeuristas, além de que a arma do crime, que é o tripé da câmera, também existe enquanto um objeto fálico. Em síntese, há uma dupla penetração do protagonista com aquele seu objeto, tanto física quanto do olhar.
Diante da própria incapacidade e medo do toque físico, Lewis encontra no voyeurismo e na cinefilia uma forma de compensar suas inseguranças, se tornando um dominador das imagens daquelas mulheres. Sobre essa questão, surge o termo freudiano da ‘escopofilia’, no qual o olhar é o fundamento da sexualidade humana e também o fundamento do próprio Cinema, pois na sua escuridão o espectador é um voyeur que pode olhar para a tela sem limites ou medo de ser punido por seu desejo. A partir deste conceito, percebe-se como Powell cria uma clara dicotomia entre o ‘encostar’ e o ‘olhar’. Se Lewis não consegue encostar nas mulheres (apenas com o tripé, que é a extensão da câmera), há entre ele e os objetos cinematográficos uma relação muito física e táctil. Praticamente em todas as suas cenas, vemos ele segurando e fazendo leves carinhos em sua câmera, assim como ele gosta de sentir com as mãos os rolos de filme; na cena com a sogra cega, chega a até literalmente abraçar a tela de projeção. Deste modo, o Cinema permite a ele uma distância segura para liberação dos seus desejos antes contidos pela culpa, já que tanto o olhar da câmera quanto as imagens finais são um olhar mediato e mediado, gerando um afastamento de sua parte.