Nós (Us, Jordan Peele, 2019): apocalipse subterrâneo

Por Kênia Freitas

No conto “Aqueles Que Se Afastam de Omelas”, Ursula Le Guin descreve uma cidade paradisíaca e feliz: com festivais de verão, prosperidade, bela arquitetura, sem soldados e sem clero, sem reis e ditadores, com orgia e drogas e sem culpa. Omelas pulsa arte e inteligência em uma felicidade não pueril. Há, no entanto, um grande porém: toda essa felicidade é dependente da manutenção de uma criança com problemas mentais suja, doente, subnutrida, e constantemente maltratada, em um porão imundo. E a narração não deixa dúvida:

“Todos eles sabem que está lá, todo o povo de Omelas. Alguns deles chegaram a vê-la, outros se contentam apenas em saber que está lá. Todos eles sabem que tem que estar lá. Alguns deles entendem o porquê, outros não, mas todos entendem que a sua felicidade, a beleza de sua cidade, a ternura de suas amizades, a saúde de seus filhos, a sabedoria dos seus estudiosos, a habilidade de seus fabricantes, mesmo a abundância da sua colheita e o clima agradável de seus céus, dependem inteiramente do sofrimento abominável desta criança” (Ursula K. Le Guin).

A felicidade descrita no início do conto e a ciência da criança torturada como a sua base de manutenção criam a complexidade ética da história de Le Guin: é possível ser feliz às custas da desumanização brutal de uma pessoa? Ou se é mais feliz ainda sabendo-se do sofrimento e da dor de Outro, que poderiam ser mas não são suas? A salvação de uma única criança valeria pela infelicidade de milhares de pessoas e de toda uma população? Se não, mais uma vez, é possível ser feliz em Omelas? Como?

Sem mais respostas, a última parte do conto apenas nos diz que alguns jovens e algumas pessoas mais velhas eventualmente partem em linha reta (não se sabe bem para onde, embora eles pareçam saber) e se afastam de Omelas.

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Em Nós (Us, Jordan Peele, 2019) o apocalipse se mostra justamente com a ressurgência de seres subterrâneos e maltratados – os acorrentados (Tethered). Diferentes da criança de Omelas, eles não são um Outro distante na aparência, mas cópias dos seres da superfície: ligados por um espelhamento corporal, eles repetem de forma tosca mas inevitável as ações dos seus duplos do lado de cima. Dois corpos presos pelo compartilhamento de apenas uma alma, como Red – a chefe da rebelião dos acorrentados – explicará para Adelaide (a sua cópia que vive na superfície).

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Nós não é construído, no entanto, em uma chave comum de filmes apocalípticos de grandes eventos – nos quais o fim do mundo (ou do mundo como conhecemos ou o fim dos EUA lido como o fim de todo o planeta) é contado de uma perspectiva dos macro poderes e dos seus agentes (governantes, cientistas, mídia, forças policiais, etc.). Jordan Peele ancora o seu filme a partir de uma narrativa do trauma e da sobrevivência de uma mulher negra de classe média comum, Adelaide: ex-bailarina, mãe de dois filhos, levando uma vida aparentemente tranquila e próspera com o marido. Como heroína desse apocalipse, Adelaide não pretende salvar o mundo ou encontrar alguma solução de convivência com os duplos, mas apenas seguir viva (matando quantos acorrentados forem necessários para isso).

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O fim da vida como se conhece em Nós chega pela rememoração do trauma de infância de Adelaide, ao voltar para a casa de férias e para a praia em que tudo aconteceu. Imageticamente o filme trabalha com sinais de um alinhamento cósmico: a simetria do 11:11, um círculo que se encaixa perfeitamente sobre o outro, repetições e duplos. Sinais que anunciam que algo excepcional está por acontecer.

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Nesse sentido, vale retomar a ideia de apocalipse não apenas como um sinônimo para o fim do mundo, mas como uma revelação (na sua etimologia original): a palavra faz mais referência a uma ideia de desvelamento, de iluminação de um segredo divino. Na bíblia, o livro do apocalipse descreve visões terríveis da luta final entre o Bem e Mal como uma revelação (em algumas interpretações, um aviso) aos humanos para que se alinhem e confiem na força de Deus  (que sempre triunfa ao fim). Ou haverá consequências…

A ideia de um Deus punitivista paira sobre a narrativa de Nós. De forma mais evidente com as menções do versículo bíblico Jeremias 11:11: “Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei”. E na referência ao mito “Das 4 Criações” do povo nativo americano Hopi, que aparece como uma narração na casa assombrada quando Adelaide e Red (o seu duplo acorrentado) encontram-se crianças pela primeira vez. Nas duas narrativas originárias, as passagens evocadas falam de um Deus que pune aos humanos por estes terem esquecido das suas origens e espiritualidade. Esse esquecimento das origens e as suas consequências se mostram peças chaves para pensar a relação entre Adelaide e Red[1] e a rebelião dos acorrentados liderada pela segunda. O trauma criado quando a acorrentada rouba o lugar de seu duplo na superfície desdobra-se em Adelaide em um apagamento/esquecimento e em Red em uma pulsão vingativa e punitivista (tal qual dos Deuses…). Se o apagamento/esquecimento é o que permite a sobrevivência (e a felicidade?) de Adelaide, é ele quem impulsiona a ira de Red.

Editorial use only. No book cover usage. Mandatory Credit: Photo by Universal/ILM/Kobal/Shutterstock (10162635c) Lupita Nyong'o as Adelaide Wilson/Red 'Us' Film - 2019 A family's serenity turns to chaos when a group of doppelgängers begins to terrorize them.

Assim como no conto de Le Guin, o que me move no filme de Peele não é encontrar equivalências concretas às metáforas e alegorias propostas nas narrativas especulativas. Os acorrentados (e a criança) são e não são ao mesmo tempo toda uma gama de grupos oprimidos: os povos de África escravizados, os povos indígenas dizimados pela colonização, os operários sacrificados no capitalismo industrial, os pobres, os imigrantes, as pessoas racializadas em um mundo organizado pela supremacia branca, etc., etc.[2]. O que assombra em Nós e “Aqueles Que Se Afastam de Omelas” são as implicações éticas internas às narrativas e o seu desdobramento no mundo.

E um dos atravessamentos principais das duas narrativas é a linha divisória entre os que são considerados parte da humanidade e os que não. O título do filme aponta para esse pertencimento de forma dúbia. De um lado, “Us” como “United States” abreviação comum entre os estadunidenses para se referir aos EUA – importante aqui lembrar quando Adelaide pergunta à Red quem eles são, e ela responde “nós somos americanos”. De outro, “Us” como “nós”, essa terceira pessoa do plural que agrega um conjunto incerto de pessoas e/ou grupos: Nós da superfície? Nós a família de Adelaide? Nós humanos?

A linha entre humano e não humano que o filme invoca implica em uma estruturação justificada de opressões. Assim, se os acorrentados são criaturas não humanas e sem alma, apenas cópias rudimentares dos humanos da superfície, então é aceitável o seu aprisionamento nos subterrâneos e o seu extermínio durante a sua rebelião (?). E se Red pode se tornar Adelaide como lidar com essa divisão?

E essa linha imaginária das humanidades também implica em um questionamento de quando as engrenagens do apocalipse entraram em ação. Quando os acorrentados foram criados em uma tentativa humana de assumir o lugar de criação divina? Quando o projeto fracassou e os acorrentados foram abandonados à própria sorte? Quando Adelaide e Red nasceram com uma ligação acima do comum? Quando a criança do subterrâneo trocou de lugar com a da superfície? Ou quando, por fim, Red buscou à sua redenção junto com os demais acorrentados à categoria humana?

O que o apocalipse filmado por meio do trauma de Nós nos indica é que na linha divisória entre o humano e o não-humano fins de mundos estão sempre em ação – em Omelas, na Califórnia, ou em qualquer porão imundo. E esquecer disso pode despertar iras divinas ou subterrâneas.

[1] Seguirei chamando de Adelaide a cópia que inicia a narrativa na superfície e de Red a acorrentada, pois isso facilita o entendimento. Ainda que tecnicamente pela troca ocorrida na infância os nomes estejam invertidos.

[2] Esse fio no Twitter traz algumas dessas possibilidades de leitura do filme: https://twitter.com/kenialice/status/1111105047142825985

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