Homens que jogam (Playing men, Matjaž Ivanišin, 2017)

olhar de cinema

Por Kênia Freitas

    Na sequência final de Homens que jogam o diretor/personagem contempla o horizonte e cantarola a música My pony, my rifle and me. A canção toma conta da cena e segue completa pelos créditos de encerramento do filme. Sua inserção nos remete a famosa interpretação de Dean Martin e Ricky Nelson, em Rio Bravo (Howard Hawks, 1959) e reforça o lugar do cinema e das imagens nos processos de construção da masculinidade que o filme investiga. Afinal, após a sua exploração, sua crise com e a sua desconstrução da masculinidade, Homens que jogam encerra o filme fazendo referência a um dos fundadores do cinema clássico dos EUA.

Através da imagem sonora citada o cinema de Howard Hawks entra no filme trazendo a sua construção de uma postura de masculinidade ideal. Em muitas das suas obras ecoa o questionamento sobre quais as condutas e escolhas difíceis fazem parte da constituição de um homem justo, honrado, de um herói. A criação dessas imagens e narrativas de masculinidade idealizadas atravessa toda a história do cinema narrativo. O  maior ponto de inflexão de Homens que jogam neste longo debate é o de situar a constituição da experiência masculina ocidental não pela perspectiva do universal, mas pelo que essa experiência possui de singular e específico em sua constituição.

    Em uma primeira camada a investigação sobre a performance da masculinidade é feita de forma direta por uma câmera documental que observa e/ou ouve as explicações de diversos homens no ato de jogar. Há uma evidente escolha pelo inusitado na seleção dos jogos: as lutas de azeite na Turquia, o rolamento de queijo pelas ladeiras da Itália, a Morra jogada com passionalidade hipnotizante na Croácia e na Eslovênia, entre tantos outros. O filme se entrega e nos guia a esses universos de convivência lúdica exclusivamente masculinos. Universos que são ao mesmo tempo de competitividade, de relações de poder e de domínio, mas também de prazer do contato e do encontro. A forma de filmar é a do encantamento, da vibração e do gozo conjunto dos espectadores com os homens filmados em seus múltiplos jogos.

Grande parte desta performance de construção da masculinidade é demonstrada pela disputa e contato dos corpos filmados nos jogos: quem tem mais força, quem lança melhor, quem permanece no círculo de dança por mais tempo, etc. Mas trata-se também como explicam os  jogadores da Morra de “entrar na cabeça do outro”, da disputa por poder também por jogos mentais de quem emana com mais convencimento a projeção ideal de masculinidade. O lúdico e o violento tornam-se elementos inseparáveis nestes processos.

Então, valendo-se de todo artifício meta-narrativo do documentário performático contemporâneo, o filme propositadamente se quebra diante do espectador: mudando o dispositivo do seu funcionamento até aquele momento. Com um intencional e descarado cinismo o narrador anuncia ao público que o diretor está em crise e não sabe mais o que filmar. E, para que nenhum espectador tenha dúvidas, a crise é filmada da forma mais exemplar possível: o homem branco sozinho, prostrado e pensativo diante da sua cerveja. A partir dessa quebra o filme assume o cinema também como mais um jogo performativo entre os outros filmados anteriormente. O documentário vira a câmera para si, encenando a fragilidade destas construções de masculinidade impostas e as suas consequências sobre os homens. A primeira parte vibra com os jogos e embala o espectador na investigação. Começando pelo próprio filme, a segunda torna-se artifício de desconstrução do ato de jogar (e também do ato de interpretar e atuar, como sugere o sentido da palavra em inglês no título original do filme).

Assim o fazer cinema, o ato de construir ou montar imagens narrativas é pensado como parte desta performance de construção de masculinidade. A ideia de uma crise de criatividade ressitua o filme de forma crítica na discussão do imaginário de uma performance de artista homem também idealizada e limitadora: o imaginário do artista/diretor que deve ser genial, um grande homem (e não somente um realizador de imagens). O não saber como seguir o filme (que leva as não-imagens) torna-se uma tradução da impotência expressiva masculina.

E diante da impotência de performar o jogo, o filme passa a investigar o substituto possível: o prazer não de jogar, mas de assistir a outro homem jogando. Ou seja, o lugar da pulsão escópica como parte ativa na construção desse papel de masculinidade e do seu gozo. Esse assistir pode ser tanto individual: o relembrar de uma partida histórica de tênis; quanto coletivo: a recepção de uma multidão em transe (multidão majoritariamente masculina) do atleta vitorioso. Neste ponto, a primeira parte do filme é ressignificada dentro da narrativa. O espectador do documentário é implicado na observação sobre o prazer escópico que o filme de início proporcionou e agora esmiúça como parte constitutiva de uma forma de ver que corrobora na constituição de ideais de masculinidade insustentáveis.

E voltamos as sequências finais com esse diretor/personagem prostrado, impotente para seguir com o processo de investigação deste tornar-se homem coletivo e singular pelos jogos e pelas imagens dos jogos. A letra de My pony, my rifle and me fala justamente sobre um sonho de um vaqueiro solitário (acompanhado apenas por seu cavalo, seu rifle e por si) de chegar a um lugar idílico, um lugar inalcançável  e imaginário sem as obrigações sociais e de trabalho. No filme, um lugar talvez em que não seja mais necessário aos homens fazerem papel de homem nos jogos pitorescos, nas relações da vida e, especificamente, no jogo cinema.

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