Suçuarana (Clarissa Campolina e Sérgio Borges, 2024)

Sem teto nem lei

Por Geo Abreu

Geralmente, mulheres, inclusive enquanto personagens de ficção, tem sua existência
relacionada à casa, ao ambiente doméstico e à domesticação das coisas. Por isso mesmo, na
fuga desse lugar comum, encontrar filmes que se inscrevam na tradição de mulheres
andarilhas é uma espécie de reparação. Em Suçuarana, a protoganista Dora é uma mulher
sem teto nem lei, que percorre o mundo com rumo: a terra prometida por sua mãe, outra
mulher andarilha.

Assim como em Os Renegados (1985), de Agnes Varda, filme em que acompanhamos Mona
em sua jornada de libertação (“Você escolhe a liberdade total e encontra a solidão”), Dora
caminha pelo mundo aceitando todo tipo de emprego, dormindo em barracos e lugares aos
quais não foi convidada apenas por não querer se apegar a nada nem ninguém para além do
fardo de suas lembranças. Ainda assim encontra um companheiro, um cachorro caramelo com
feições e orelhas de lobo, o tipo de cachorro ancestral cuja natureza vem sendo moldada por
anos e anos de experiência entre o campo e a cidade, a lida com a selvageria do mato e a
selvageria das pessoas. A certo ponto, depois de aceitar sua companhia, Dora o nomeia
Encrenca e apesar de não termos qualquer indicativo sobre a sexualidade da protagonista, a
presença cênica daquele cachorro me remeteu a história contada por Donna Haraway sobre
uma história contada a ela por Paul Preciado, sobre a parceria entre mulheres lésbicas e
buldogues, algo que remonta a histórias antiguíssimas da presença indomável de algumas
mulheres no mundo e a construção de relações significantes com outros que humanos.
Nessa jornada a protagonista encontra outras tantas mulheres que tocam a vida de maneira
solitária e em algum grau se parecem com ela, vagando num mundo em que não há paz para
nós, as mulheres andarilhas. Até que, num golpe de mágica cinematográfica, Encrenca a salva
de uma situação perigosa e a conduz para um lugar cuja comunidade se organiza em torno das
ruínas de uma fábrica, tirando dela o que ainda tenha valor, objetos de ferro e outra máquinas.
Aqui cabe a digressão de um breve momento em que as escolhas do cinema de Clarissa
Campolina, que nos acostumamos a ver, como em Solón, se impõem como uma experiência
de estranhamento do conhecido: a sequência de imagens trêmulas de uma mina de ferro como
símbolo de perturbação do mundo como conhecemos e do arruinamento progressivo dele. Uma
forma peculiar de assinar a mineiridade e a estética deste filme.

A partir de então, Dora se conecta a um universo de comunidade, troca e ancestralidade, o que
teoricamente poderia significar o apaziguamento da busca, a ideia que a movimenta através da
história. E como nos momento anteriores suprimidos pela narrativa e aos quais só nos resta
imaginar, a personagem se orienta, observa e aprende com os modos de vida daquela
comunidade num movimento que nos lembra Arábia (2017), de João Dumans e Affonso Uchoa.
Essa imersão por um mundo do trabalho, que em Suçuarana apresenta sua face mais
desconstruída, como um pós-mundo, algo que já ocupa um lugar para além de seu próprio fim:
os rasgos das minas de ferro como cicatrizes do solo mineiro e a fábrica, totalmente destruída;
a antiga vila de seus trabalhadores, cujas casas também estão arruinadas, dando lugar a uma
outra forma de se relacionar com os espaços e o vestígios daquele velho mundo.
Dora, como essa espectadora privilegiada, observa a tudo de dentro da máquina do filme e,
como nós, resolve partir porque o tempo de estar ali é finito e ela precisa voltar a caminhar. No
fim, talvez, sua terra prometida seja mesma a estrada.

Visto na Mostra Competitiva Nacional do 57o Festival de Brasília.

FacebookTwitter