Palimpsesto (André di Franco e Felipe Cañedo, 2024)

“O fogo comeu Luzia”

Por Geo Abreu

Uma aflição possível do acadêmico que também é cineasta passa pelas dúvidas sobre como abordar assuntos não tão populares de maneira cinematograficamente interessante. No caso dos arqueólogos, Palimpsesto surge como respiro em meio a filmes comumente duros de assistir.

Tratando sobre o desaparecimento por incêndio da coleção arqueólogica do Museu de História Natural da UFMG,ocorrido em junho de 2020, o filme constrói sua narrativa sobre o luto dos pesquisadores e estudantes que atuavam na reserva técnica dosando as idas e vindas entre informação e ensaio visual, valorizando a própria condição lacunar e a requalificação de um material arqueológico destruído pelo fogo após 40 anos de salvaguarda. Na condição de palimpsesto, a história se inscrevendo nas peças, mais uma vez, a reserva se transformando em sítio arqueológico.

Dividido em blocos temáticos, o filme começa com o encontro dos pesquisadores com o espaço em ruínas, suas dúvidas sobre o processo de resgate e o entendimento sobre a perda para logo se transformar em blocos de encenação sobre o evento, como quando acompanhamos um dos pesquisadores transitando pelo espaço destruído, nos apresentando a ele como se os materiais ainda pudessem ser acessados; a ritualística da entrada no agora sítio arqueológico, antes acervo; a leitura coletiva de diversas notícias sobre a perda de diversos acervos de guarda da memória do país, como o incêndio da Cinemateca Brasileira em 2018 e a uma forma de analisar a progressiva destruição da memória de um país já tão frágil no acesso à sua própria história.

Será que aquelas coisas perderam muito de sua agência? Será que no futuro haverá lugar para a Arqueologia? Em alguns planos, vemos árvores que mais parecem objetos, enquanto o professor aponta sua pá de trabalho, as vezes como pessoa cuja agência o ajuda a lidar com os vestígios que encontra, as vezes como prótese que se acopla ao seu corpo e ao de outras pessoas; noutro momento, alguém adverte que na prática arqueológica é proibido se apropriar de objetos achados, mas que ela quis salvar um pedaço, um traço sem forma daquele acervo desaparecido, como para conter algo da agência que se fragmentou ali.

As árvores são coisas.

Coisas são pessoas.

E o fogo é um dos maiores arquivos do mundo, pois contem tudo aquilo que consome.

De certa forma, essa ideia sobre o fim do mundo como conhecemos tem nos trazido de volta ao pensamento sobre a importância da memória e o cinema tem reflito isso, com muitos filmes se debruçado sobre essas modalidades de apreensão da história, seja via oralidade, escrita ou materialidade. Acompanhar a degradação das coisas que nos rodeiam com tanta consciência tem nos transformado em criaturas melancólicas e ciosas da necessidade registrar tudo. Em breve seremos apenas arquivos digitalizados de nós mesmos? Sigamos.

Visto na Mostra Caleidoscópio do  57o Festival de Brasília.

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