Enquanto o Céu Não Me Espera (Christiane Garcia, 2024)

A vida entre espelhos

Bem diferente das imagens comuns de uma Amazônia verde e em certo estado de dádiva ou prenhez eterna, com rios de dimensões martítimas, Enquanto o Céu Não Me Espera apresenta uma vida ribeirinha cinza e claustrofóbica, apesar de toda amplitude, e progressivamente esmagada entre dois espelhos: o céu sobre a cabeça e o Rio Negro sob os pés.

Apostando num futuro de cheias cada vez mais agressivas para a região, o filme nos apresenta uma família que vive num palafita no interior do Amazonas, tirando sustento do cultivando juta, planta que se adapta melhor a ambiente tropicais úmidos e da qual se retira uma fibra que pode receber diversos usos, principalmente têxteis. Neste sentido, a realidade de Vicente – interpretado por Irandhir Santos – mesmo neste futuro distópico, acaba não diferindo muito das histórias de antigos soldados da borracha de séculos antes. Escravizado pela própria insalubridade da relação entre trabalho e território, e principalmente pelas dívidas assumidas com um patrão cuja autoridade mais parece a de um capataz, Vicente absorve a brutalidade como modo de navegação social e na construção deste núcleo de relações o filme de Christiane Garcia remete a um clássico do cinema nortista sobre a dureza da vida ribeirinha: Brutos Inocentes (1973), dirigido por Líbero Luxardo, com Zózimo Bubul no papel principal.

No contraponto dessa brutalidade encontramos Rita (muito bem interpretada por Priscila Vilela), esposa de Vicente e matriarca da família em cuja casa acompanhamos a subida do rio como transposição imagética das tensões sociais do contexto ribeirinho amazônico, mas também da história desse casal. Mesmo com todas as dificuldades em manter a família nutrida e segura, Vicente teima em permanecer na casa enquanto Rita acredita que a solução seja partir.

Na esteira do adensamento desse conflito, o filme entrega diversas imagens da água como espelho e figura ligada ao transbordar de sentimentos, concentrados especialmente em Rita, personagem que já percebeu a queda do céu e não suporta mais a condição sufocante daquela vida submersa em melancolia. Vale destacar essa figuração da água como condição melancólica numa metáfora da atitude calada e ensimesmada do caboclo amazônida, lindamente representadas aqui.

Ainda que seja louvável a coragem técnica para realização de um filme praticamente gravado dentro d’água, a mercê dos humores do Rio Negro e da grandiosidade da natureza amazônica, para uma história que pensa o futuro da região, suas escolhas formais expressam a tradição de um cinema antigo e masculino, apesar da direção feminina de Christiane Garcia. A maior expressão dessas escolhas está na cena do estupro marital, que não possui função narrativa para além da reiteração de uma crueldade que se quer naturalizar,  ao confundir a crueza do entorno à dureza de uma alma ribeirinha, que não encontra reflexo numa observação atenta. Mais um filme que escolhe repercurtir imagens de estupro, numa chave que parece buscar respostas para a estupidez humana, mas acaba esbarrando na reafirmação da cultura da violência sexual e de gênero.

Que os espelhos da realidade amazônica possam se valer das múltiplas possibilidades da fabulação para seguir contando histórias sobre essa região tão plural quanto desconhecida, trabalhando a delicadeza das epistemologias caboclas e apontando para um futuro em que séculos de manejo de vida fluvial possam gerar imagens prenhes de futuros possíveis.

Visto na Mostra Competitiva do 57o Festival de Brasília

FacebookTwitter

Mar de Dentro (Lia Letícia, 2024), Confluências (Dácia Ibiapina, 2024) e Yõg Ãtak: Meu pai, Kaiowá (Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Roberto Romero e Luísa Lanna, 2024)

Mostra Competitiva Nacional, noite de 03 de dezembro.

Por Geo Abreu

As sessões da Mostra Competitiva do Festival de Brasília juntam num programa, exibido sempre às 21h, dois curtas e um longa metragem. A ideia deste texto é expressar a unidade da sessão programada para a noite do dia 03 de dezembro, e a forma como os filmes confluíram, como diria um de seus protagonistas. Além das impressões pós exibição, somam-se aqui também ideias surgidas durante o debate, ocorrido na manhã seguinte. Aproveito para informar que todos os debates da Mostra Competitiva do 57o Festival de Brasília, realizado em dezembro de 2024, podem ser acessados no canal do festival no Youtube.
Por ordem de exibição, então, apresento alguns comentários sobre os filmes exibidos:

Mar de Dentro

Divindo a tela em duas, como numa instalação para galeria, Lia Letícia, diretora e performer, apresenta a história de Preto Sérgio, homem negro e insubmisso e sua saga para fugir de uma prisão arbitrária ocorrida durante a ditadura Vargas. Lia conta que encontrou a história de Sérgio ao vê-la contada em paineis pintados em frente a uma pousada de Fernando de Noronha. A partir daí, seguindo o fio da narrativa, encontrou Kelly, neta de Preto Sérgio e dona da pousada. Kelly, então, detalha a história do
avô: ele, preso por ter ferido por engano um rapaz de família rica, se vê exilado na ilha feita de prisão. Com astúcia, estuda a geografia, marés e ventos, constrói uma pequena embarcação e foge, sendo recapturado tão logo chegou em terra firme. Sendo levado de volta pela força policial, foge pela segunda vez, e só retorna à ilha ao descobrir que está sendo procurado, desta vez para ser inocentado e libertado por bravura. A diretora, que também é historiadora, relata que usou a ideia do díptico, dividindo a tela em duas, para pôr em relação diferentes materiais referentes ao caso de Sérgio, tentando transformar a fala do personagem, expressa pelos painéis, como um arquivo “válido”, buscando fazer com que este filme, além de obra audiovisual, atue também com documentação sobre o ocorrido. Além disso, a ideia do díptico, produz também uma dobra do tempo do filme que em 8 minutos conta a história com riqueza de detalhes, relacionando arquivos oficiais e arquivos de origem popular, como os painéis e relatos, buscando assim a validação da versão de Preto Sérgio por contaminação, por relação.

Ao final, com a pintura do homem negro remando contra uma maré agitada, reivindicando o direito de contar sua própria história, somos levados ao filme de Dácia Ibiapina, e como muito bem apontou André Dib durante o debate da sessão, parece que Sérgio de forma diegética está remando ao encontro do Quilombo Saco-Curtume, tema do filme seguinte.

Confluências

Não sei dizer se é possível humanizar ainda mais alguém como Antônio Bispo do Rosário, famoso Nego Bispo, autor reconhecido de diversos livros sobre o pensamento quilombola, que ganhou notoriedade nos últimos anos como divulgador de epistemologias outras, quase no mesmo nível alcançado por Aílton Krenank. Digo quase porque, há exatamente um ano, Nego Bispo fez a passagem e agora nos observa a partir de outro plano, no qual é mais difícil publicar livros.

Dácia Ibiapina diz que escolheu abordar este personagem, já tão conhecido, a partir de um ângulo mais pessoal: a festa de seu aniversário de 60 anos junto aos parentes no quilombo Saco-Curtume. E o que o filme nos apresenta é uma figura confluindo entre suas contradições, lidando com uma família numerosa e amigos que chegam de vários lugares para saudar sua existência.

Desta forma, o curta opera na mesma linha do pensamento que Bispo expressa em fala sobre o fato de que uma história só é história quando se ouve os dois lados. Quando se ouve um lado só, o que temos é ficção e, segundo ele, quase tudo que se sabe sobre quilombos é ficção. E quase tudo que sabe sobre o Quilombo Saco-Curtume está em seus livros e sua falas espalhadas em vídeos pela internet. Mas em Confluências é possível entender as dinâmicas de festa e de construção coletiva e composição da vida daquele lugar, desde a criação das crianças até a forma de monetizar algumas situações expressa pelo leilão de comida ou da discussão sobre o cachê da banda de forró.

No mais, a pequena cena em que Bispo e Dácia dançam forró de forma muito animada e cúmplice, expressa um fazer cinema que dialoga com os personagens e seu entorno, bem como essa pequena-grande diretora brasileira nos ensina: “a gente não consegue domar os filmes.” e as escolhas expressas em tela se manifestam no fazer, descobrindo a história e fluindo com ela, aprendendo com o filme enquanto se realiza.

Yõg Ãtak: Meu pai, Kaioŵá

É muito bom estar viva ao mesmo tempo que Sueli Maxakali, acompanhar sua trajetória como cineasta e a forma como seu cinema vem se transformando a cada filme. Em Yõg Ãtak: Meu pai, Kaioŵá a diretora se coloca em cena como nunca antes, talvez pelo tema tão íntimo, o reencontro com um pai que esteve distante por anos devido a uma história de privação de liberdade, como a de Preto Sérgio, personagem do primeiro curta desta sessão. Logo na cena de apresentação, Sueli produz uma foto viva de sua família, nomeando cada pessoa que entra em quadro, expondo a relação que possui com cada uma, apresentando sua família não só para o pai distante, mas para todos nós. E ao longo do filme o que acompanhamos é o desvelar de uma rede de parentalidade que atravessa a história do país e a luta pela retomada de territórios por povos originários.

A naturalidade com a qual o filme constrói a diferença entre os Maxakali e o Kaiowá expõe com sutileza da diferença entre idiomas e formas de apresentação, pinturas corporais, uso de cores e adornos, e esse jogo de diferenças assume certo protagonismo sem eclipsar o tema do reencontro entre parentes, e o processo de tradução e diplomacia entre etnias ocupa boa parte da história: necessária toda uma rede de relações e negociações para que Sueli se reaproxime de seu pai e o convença a participar do filme. Pela primeira vez também se expressa a dinâmica de co-direção entre Sueli e Isael, quando ambos assumem o protagonismo da direção de acordo com aquilo que talvez entendam melhor: Sueli nas entrevistas; Isael na condução do ritmo. Em determinado momento, as cores usadas pelos Maxakali são apresentadas a partir de uma dinâmica de pintura de tecidos que se transformarão nos trajes usados pela comitiva que irá ao encontro dos Kaiowá na culminância do filme e o grande reencontro entre esse pai e essa filha, que tanto tem em comum talvez sem se dar conta disso.

Para finalizar, deixo essa imagem que fiz da tela durante a sessão e a forma como as cores e composição do quadro me fizeram lembrar dos filmes dos anos 1960 de Jean-Luc Godard, e que remetem a uma certa vivacidade e a necessidade de um cinema muito novo de manifestar que está tentando mudar o mundo a partir de imagens. Vida longa ao cinema dos Maxakali e a sua Aldeia Escola.

FacebookTwitter

Palimpsesto (André di Franco e Felipe Cañedo, 2024)

“O fogo comeu Luzia”

Por Geo Abreu

Uma aflição possível do acadêmico que também é cineasta passa pelas dúvidas sobre como abordar assuntos não tão populares de maneira cinematograficamente interessante. No caso dos arqueólogos, Palimpsesto surge como respiro em meio a filmes comumente duros de assistir.

Tratando sobre o desaparecimento por incêndio da coleção arqueólogica do Museu de História Natural da UFMG,ocorrido em junho de 2020, o filme constrói sua narrativa sobre o luto dos pesquisadores e estudantes que atuavam na reserva técnica dosando as idas e vindas entre informação e ensaio visual, valorizando a própria condição lacunar e a requalificação de um material arqueológico destruído pelo fogo após 40 anos de salvaguarda. Na condição de palimpsesto, a história se inscrevendo nas peças, mais uma vez, a reserva se transformando em sítio arqueológico.

Dividido em blocos temáticos, o filme começa com o encontro dos pesquisadores com o espaço em ruínas, suas dúvidas sobre o processo de resgate e o entendimento sobre a perda para logo se transformar em blocos de encenação sobre o evento, como quando acompanhamos um dos pesquisadores transitando pelo espaço destruído, nos apresentando a ele como se os materiais ainda pudessem ser acessados; a ritualística da entrada no agora sítio arqueológico, antes acervo; a leitura coletiva de diversas notícias sobre a perda de diversos acervos de guarda da memória do país, como o incêndio da Cinemateca Brasileira em 2018 e a uma forma de analisar a progressiva destruição da memória de um país já tão frágil no acesso à sua própria história.

Será que aquelas coisas perderam muito de sua agência? Será que no futuro haverá lugar para a Arqueologia? Em alguns planos, vemos árvores que mais parecem objetos, enquanto o professor aponta sua pá de trabalho, as vezes como pessoa cuja agência o ajuda a lidar com os vestígios que encontra, as vezes como prótese que se acopla ao seu corpo e ao de outras pessoas; noutro momento, alguém adverte que na prática arqueológica é proibido se apropriar de objetos achados, mas que ela quis salvar um pedaço, um traço sem forma daquele acervo desaparecido, como para conter algo da agência que se fragmentou ali.

As árvores são coisas.

Coisas são pessoas.

E o fogo é um dos maiores arquivos do mundo, pois contem tudo aquilo que consome.

De certa forma, essa ideia sobre o fim do mundo como conhecemos tem nos trazido de volta ao pensamento sobre a importância da memória e o cinema tem reflito isso, com muitos filmes se debruçado sobre essas modalidades de apreensão da história, seja via oralidade, escrita ou materialidade. Acompanhar a degradação das coisas que nos rodeiam com tanta consciência tem nos transformado em criaturas melancólicas e ciosas da necessidade registrar tudo. Em breve seremos apenas arquivos digitalizados de nós mesmos? Sigamos.

Visto na Mostra Caleidoscópio do  57o Festival de Brasília.

FacebookTwitter

Suçuarana (Clarissa Campolina e Sérgio Borges, 2024)

Sem teto nem lei

Por Geo Abreu

Geralmente, mulheres, inclusive enquanto personagens de ficção, tem sua existência relacionada à casa, ao ambiente doméstico e à domesticação das coisas. Por isso mesmo, na fuga desse lugar comum, encontrar filmes que se inscrevam na tradição de mulheres andarilhas é uma espécie de reparação. Em Suçuarana, a protoganista Dora é uma mulher sem teto nem lei, que percorre o mundo com rumo: a terra prometida por sua mãe, outra mulher andarilha.

Assim como em Os Renegados (1985), de Agnes Varda, filme em que acompanhamos Mona em sua jornada de libertação (“Você escolhe a liberdade total e encontra a solidão”), Dora caminha pelo mundo aceitando todo tipo de emprego, dormindo em barracos e lugares ao quais não foi convidada apenas por não querer se apegar a nada nem ninguém para além do fardo de suas lembranças. Ainda assim encontra um companheiro, um cachorro caramelo com feições e orelhas de lobo, o tipo de cachorro ancestral cuja natureza vem sendo moldada por anos e anos de experiência entre o campo e a cidade, a lida com a selvageria do mato e a selvageria das pessoas. A certo ponto, depois de aceitar sua companhia, Dora o nomeia Encrenca e apesar de não termos qualquer indicativo sobre a sexualidade da protagonista, a
presença cênica daquele cachorro me remeteu a história contada por Donna Haraway sobre uma história contada a ela por Paul Preciado, sobre a parceria entre mulheres lésbicas e buldogues, algo que remonta a histórias antiguíssimas da presença indomável de algumas mulheres no mundo e a construção de relações significantes com outros que humanos.

Nessa jornada a protagonista encontra outras tantas mulheres que tocam a vida de maneira solitária e em algum grau se parecem com ela, vagando num mundo em que não há paz para nós, as mulheres andarilhas. Até que, num golpe de mágica cinematográfica, Encrenca a salva de uma situação perigosa e a conduz para um lugar cuja comunidade se organiza em torno das ruínas de uma fábrica, tirando dela o que ainda tenha valor, objetos de ferro e outra máquinas. Aqui cabe a digressão de um breve momento em que as escolhas do cinema de Clarissa Campolina, que nos acostumamos a ver, como em Solón, se impõem como uma experiência de estranhamento do conhecido: a sequência de imagens trêmulas de uma mina de ferro como símbolo de perturbação do mundo como conhecemos e do arruinamento progressivo dele. Uma forma peculiar de assinar a mineiridade e a estética deste filme.

A partir de então, Dora se conecta a um universo de comunidade, troca e ancestralidade, o que teoricamente poderia significar o apaziguamento da busca, a ideia que a movimenta através da história. E como nos momento anteriores suprimidos pela narrativa e aos quais só nos resta imaginar, a personagem se orienta, observa e aprende com os modos de vida daquela comunidade num movimento que nos lembra Arábia (2017), de João Dumans e Affonso Uchoa. Essa imersão por um mundo do trabalho, que em Suçuarana apresenta sua face mais desconstruída, como um pós-mundo, algo que já ocupa um lugar para além de seu próprio fim: os rasgos das minas de ferro como cicatrizes do solo mineiro e a fábrica, totalmente destruída; a antiga vila de seus trabalhadores, cujas casas também estão arruinadas, dando lugar a um outra forma de se relacionar com os espaços e o vestígios daquele velho mundo.

Dora, como essa espectadora privilegiada, observa a tudo de dentro da máquina do filme e, como nós, resolve partir porque o tempo de estar ali é finito e ela precisa voltar a caminhar. No fim, talvez, sua terra prometida seja mesma a estrada.

Visto na Mostra Competitiva Nacional do 57o Festival de Brasília.

FacebookTwitter