por Felipe Leal
As relações da arte cinematográfica com a palavra são tamanhas no que ambos os suportes se misturam para “dar a\à voz”, que seria possível questionar se, com o advento da câmera e sua grafia particular, as letras não ganharam com isto uma “cinética-imagética-montagem” renovada, enquanto campo de significação transversal. Lembremos que a palavra não precisa ser oral nem escrita para adquirir tal estatuto: se num silêncio entre duas pessoas muito fica suspenso, retesado, enquanto discurso/expressão, por ex., mesmo as palavras que àquela tensão faltam… são, afinal, palavras (em estado espectral, mas ainda assim dizeres que um voice-over, pela técnica da edição, encarnaria da narratividade do psíquico).
As cartelas dos filmes do primeiro cinema, contraditoriamente apelidado de mudo (o ruído do projetor, dos espectadores, o acompanhamento musical presencial de pianistas dentro das salas – tudo isto não é sonoridade?), ao tornar as historietas dramáticas, de ação ou fantasia alicerçadas pelo intercalar das interjeições dos personagens, indicativos auxiliadores das mudanças da trama ou ornamentos contextuais (históricos), ainda que não fossem entendidas por toda a população, posto que, arte de massas à era das feiras e exposições, nem todos eram letrados – ainda assim, o modo carregado com que as frases tinham de compactar expressões e sua subsequente aparição hiperbólica enquadrada frequentemente por molduras “classudas” dava àqueles primeiros filmes uma aura naturalmente épica, como se uma
voz superior tivesse proclamado um tal desenrolar singular de invenções dentro da tela atrás da qual rugia o giratório do rolo de película.
Nos anos 60, com a possibilidade de tornar a gravação do som (das grandezas do mundo externo e do povo) síncrona à gravação, realizada esta com equipamentos infinitamente mais portáteis, o cinema alcança o popular, faz da rua cenário, deixando- a (também ela) tomar a palavra, e traz uma multidão de sotaques aos ouvidos dos públicos, modos de existência contidos nas articulações de tipos sociais que
literalmente nunca sequer tinham aparecido nas telas. Em Comícios de Amor (Comizi d’Amore, 1964), Pasolini circula a Itália entrevistando camponeses, burguesas, jovens garanhões, adolescentes afetadas, operários, e ainda um palimpsesto volumoso de classes, sobre os temas do erotismo e do amor. Um retrato-costura sociológico complexo de seu país inteiramente pautado na escolha ora precisa, ora jocosa, ora titubeante, ora envergonhada de palavras ao redor de um tópico demasiado íntimo.
A 1972, em Carta Para Jane (Letter to Jane), Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin criticam uma fotografia popular da atriz Jane Fonda tirada no Vietnã do Norte, à época da ocupação norteamericana no país fraturado e devastado, e a quantidade verborrágica de palavras e a qualidade ácida da desconstrução é tão absoluta, em sua arquitetura ideológica, que pode-se dizer que chegamos perto da importância do raciocínio “indiscutível” aos oradores dos senados e ágoras da antiguidade, a quem o trabalho do convencimento, isto é, da criação de uma imagem-persuasão, beirava o de uma anunciação divina. O maquinário crítico dos pensadores-com-uma-câmera quase resulta numa ode indireta à própria língua francesa, dado o uso engenhoso com que proliferam as anti-visões à dominação estadunidense num tiroteio ácido quase ininterrupto. Entre palavra e o chicote, a estreiteza de significados atinge um pico
inenarrável de mistura.
Esse cinema-redação consegue, ainda, apontar o processo de infinitude que certas imagens carregam por meio de um ‘palavraear’ que as torne ilha de edição do imaginário em nevrálgico debate na multiplicidade de vetores políticos ali em implícita disposição.
Em outras palavras: a conversa que toma partido pelos jogos ocultos nas visualidades mais provocadoras que nos cercam atesta que nem toda montagem ou representação logra aquilo que suas intenções detinham como pureza de fenômeno/ato. Ao inverter o caminho comum da adaptação de um “texto” à tela, partindo não de um livro a um recorte imagético, mas de uma única fotografia em direção à palavra que brota outras imagens à camada da superfície, Godard e Gorin nos fazem pensar se a produção dessa espécie de diálogo que o cinema faculta não trata justamente de uma ferida tão essencialmente comum, que sua própria ordem é ser “esquecida” na massa de lugares de des-opinião: não temos as mesmas palavras (definições) para as mesmas imagens, ainda que as palavras entre nós sejam as mesmas.
Se observamos, por outro lado, Vale Abraão (1993), uma dentre as prolíficas associações de Manoel de Oliveira à conterrânea escritora Agustina Bessa-Luís, filme em que o narrador atinge as camadas da sociedade portuguesa com a mesma argúcia analógica contraditoriamente neutra com que tece olhares afetuosos e herméticos às idiossincrasias geográficas e culturais de algumas regiões do país, a palavra detém um poder criador-confabulador tão serpentino e “tragante” quanto o das estonteantes imagens campestres ou das mansões luxuosas abrigando as disputas familiares que, por meio daquela voz, parecem se acrescer de uma força de memória quase sobrenatural. A obra, assim, não está nem no que se vê, nem no que se ouve, mas no espaço de enunciação que abre àquela visão estendida dos “fatos”-destino. Metonímica, política, historiográfica, mágica, anunciadora – a quantidade de relações
que as artes da palavra e do cinema contemplam desvela uma miríade de leituras do cotidiano e do extramundano, e uma máquina de materializações do fator de heterogeneidade sobre as essências, aparências e identidades entre as coisas. Buscaremos, nesta edição, dar as letras a algumas das mais especiais dentre tais realizações.