Por Georgiane Abreu
Enquanto estudante de antropologia, muitas questões éticas e delicadas passam pela cabeça a respeito do encontro e das trocas com os chamados “interlocutores”: é possível construir relações simétricas? Quais os limites entre a curiosidade comum e o modo curioso invasivo? Não sabendo como responder a estas questões, escolhi como interlocutores, um arquivo e uma série de documentos.
Convivendo com o ressentimento de poder ser classificada como antropóloga de gabinete, esbarrei com uma cópia de Reassemblage em um curso sobre arte como imaginação política e que boa surpresa esse encontro: um documentário produzido por uma mulher e que, apesar de realizado há 40 anos, apresenta questões muito próximas às minhas. Foi como encontrar um tesouro obscuro, capaz dessa identificação mágica que só os filmes atemporais carregam.
A tal descrição silenciosa a que me refiro no título do texto diz respeito à maneira como a multiartista vietinamita Trinh T. Minh-Ha pensa a forma discursiva de seu filme, expressa pela conjunção entre as escolhas formais e políticas que vão da captação das imagens à densidade produzida pela montagem, com jogos de transição em cortes rápidos. Privilegiando a opacidade e o rompimento com a descrição verticalizada dos acontecimentos, a diretora utiliza a camada sonora como aquilo que move o filme.
No caminho contrário de alguns documentários recentes, em que o voice-over fica entre a autoficção e o egocentrismo disfarçado, em Reassemblage o documentário etnográfico ganha uma camada ensaística com as intervenções em voz da realizadora, um voice-over econômico, sussurrado.
Essa economia no discurso falado parece uma forma de respeito pelo que está acontecendo à sua frente: a vida das pessoas senegalesas que Minh–Ha acompanha e que ganha movimento fílmico a partir de uma observação muito atenta às camadas sonoras, produzindo um silenciamento inverso ao esperado e que, de maneira delicada e ativa, busca por um lugar menos assimétrico entre a observadora, a estranha, aquela figura chegante e as pessoas locais.
Não pretendo falar sobre, apenas falar por perto.
Na sequência do letreiro inicial, com o título do filme e o nome da realizadora, a tela preta indica lugar e tempo – Senegal, 1981 – e é preenchida por música, um código localizado, com suas batidas ritmadas. Depois de uma sequência muda, com imagens de pessoas de todas as idades, a diretora finalmente fala: I do not intent to speak about, just speak nearby. Suas intenções estão condensadas nesta frase.
Ao aportar numa África, tantas vezes visitada e categorizada por estrangeiros, inserindo-se num espaço já consagrado dos documentários, que descrevem e sedimentam o outro como o africano, o primitivo, o elo perdido das civilizações, Minh-Ha chega falando baixo e ouvindo bem, ainda que não domine as línguas que encontra pelo caminho.
Ao falar por perto daquelas pessoas, que também a observam de longe – com a desvantagem de não poderem ativar o zoom -, a diretora vai tentando responder a uma pergunta que lhe fazem:
– Um filme sobre o que?
– Um filme no Senegal.
– Mas o que no Senegal?
A beleza da não resposta a essa pergunta faz com que experimentar aquela aldeia seja nosso único compromisso ao embarcar no fluxo das descobertas do filme. Coordenar o ritmo da música com o ritmo do trabalho na comunidade; a capa azul do senhor que aparece produzindo corda me remete a Noir Blue (2018) e os movimentos ritmados de Ana Pi; o corpo está presente e ativo em tudo naquela comunidade senegalesa.
“Criatividade e objetividade parecem correr em conflito. O observador ansioso coleta amostras e não tem tempo de refletir sobre a mídia usada. ”- foi como consegui traduzir uma das falas de Minh-Ha, que escolhe pensar criticamente sobre o seu papel ali, ao invés de descrever o que vê. A imagem por si só já não serviria como descrição? “Para muitos de nós [antropólogos], uma maneira de ser neutro e objetivo é copiar a realidade meticulosamente. Falar sobre. ”
A certa altura a diretora diz “A realidade é delicada” e cruzar essa realidade com os conhecimentos que adquirimos ao longo da vida nos leva a produzir significados sobre tudo que experimentamos. Uma nota no caderno de campo de Trinh T. Minh-Ha e os significados que ela deve ter produzido e escolheu guardar para si mesma.
Um atravessamento de significações que a diretora compartilha fala sobre o calor e a escolha de usar um chapéu para proteger-se do sol, fato que vira chacota entre as mulheres locais. A pesquisadora assinala o fato de se perceber observada. Porque acreditamos que somos os únicos com o olhar ativo numa relação como esta? Será a câmera? Lembrar que está sendo vista também te deixa desconfortável? Voltamos ao filme. As mulheres pilando e um zoom no seio descoberto, plano que dura segundos. “Um filme sobre o que, meus amigos perguntam”. Sobre ser mulher no interior do Senegal? Talvez. Também.
Interessada, tomei esse filme como aula e uma das lições mais preciosas diz respeito a forma como a diretora define o que aconteceu enquanto esteve naquela comunidade: “O que vi foi a vida olhando para mim”. Escolher a forma de dizer e mostrar isso é o que torna tudo mais interessante.