A MELODIA MUDA DO DESTINO: O SILÊNCIO (Mohsen Makhmalbaf)

Por Felipe Leal

É a princípio enigmático, diríamos até “incompreensível”, este Silêncio que intitula o filme (Sokout, 1998) do iraniano Mohsen Makhmalbaf, posto que, mesmo na condição de cega, a criança que protagoniza sua itinerância demonstrará ter domado todos os outros sentidos, do paladar ao tato à própria “visão”, justamente nos ouvidos, sendo ademais afinador de instrumentos enquanto vocação e por necessidade ainda em tenra idade, visando ajudar a mãe solteira pagar as contas depois que o chefe da casa, seu pai, fugira à Rússia.

Na vida do pequeno Khorshid não há senão tremor, intensidades, aliciamentos advindos dos choques sonoros. A gênese da obra, então, doce gentileza, coloca-nos a natureza de SEU jogo com o silêncio, filme à sua maneira tão caro à palavra “perspectiva”: três ressoares de um punho batem à porta, ao que duas figuras despertam e iniciam, ainda anônimas, seus ritos de “introdução ao mundo”, como nascessem a ele tanto quanto a nós através da persuasão específica daquelas reconhecíveis notações externas. A mulher, que logo perceberemos ser sua mãe, atende à porta com gestos hábeis, enquanto o menino profere uma oração para que (cert)a abelha que ouve “zanzar” encontre seu caminho, à luz do dia, livre de maus presságios.

Ao longo dos 76 mins. desse elogio à vida como arranjada pela música (que é, por sua vez, através da criança e também ao nosso deleite auditivo, uma espécie de supra-faculdade do verdadeiro-ouvir-das-coisas), o trabalho técnico-sonoro do filme enfatiza sua faixa de estridências avolumadas como que para torcer o real, co-enxergado ao lado dos olhos de Khorshid, e fazê-lo legítimo quesito das especificidades de cada percepção. Percepção produtora de estímulos físicos (dentre os quais é possível selecionar, a depender da orientação, o rumo superior dos esforços vitais). Logo: corpos designados OU NÃO por caminhos que são entendidos como suas “MÚSICAS” (próprias).

Todos os dias o menino deve proceder, então, ora com os ouvidos diligentemente tapados pelos próprios dedos, ora com chumaços grossos de algodão sobre a cavidade auricular, para que não ceda à musicalidade invasora da rua e se perca, uma vez que poucas pessoas sabem de sua particular des-orientação distraída, rumo aos sons de belas canções. Sua vida requer dupla delicadeza porque lhe acomete, cotidianamente, aflorar o mecanismo de prazer que os ouvidos representam. A força embriagada, contraditoriamente compositora, de uma cítara ou bandolim “ocasionalmente passando”, introduz em seu corpo um universo mais revelador e convidativo, mais puro e verdadeiro, mais SILENCIOSO e falante que qualquer regra ou comando de qualquer superioridade. Mas se tal “faculdade” o amaldiçoa com uma segunda errância, ela também presenteia com uma sobrenaturalidade que extrapola o poético. 

Ao escolher romãs ou enfileirar-se ante as vendedoras de pão à rua para vir à escolha do mais saborosos, ele balança o interior das frutas, buscando ouvi-las rente à bochecha, ou seleciona a ambulante com a voz mais encantadora, pondo a magia (re)encontrada na garganta sobre a expectativa das mãos que fabricaram o alimento. Gradativamente, o “silêncio” a que a obra remete passa a ser não só uma “disciplina” de entendimento profundo com as propriedades intrínsecas de cada matéria presente nos ritos da vida, redobrando-os em tal potência de sabor inegociável, como uma ética de conduta cuja destinação, cuja “utopia” (finalidade), é a da entrega a um festim cada vez maior à liberdade corpórea, a ele redenção e não menos entidade máxima a ser compreendida em orquestra, sob aquela mesma rigidez que o singulariza.

O que é lido externamente como “excentricidade vadia”, a saber, uma vida “menor” pois dedicada e deliciada ao êxtase musical e às “essências das coisas”, esta mesma vida que os bandoleiros cantarão, próximo ao garoto, nos mercados, em oposição ao destino do sábio, colocando ambos em polos distantes, mas pertencentes a mesma linha de loucura – será feito louvor milimétrico.

Se Yasujiro Ozu colocou o plano-tatame à excelência (plano à altura da elegia confessional de seus personagens domésticos, enraizados de joelhos à tradição), Makhmalbaf desloca a predileção testemunhal à região boca-nariz-ouvidos. Ele faz do território essencialmente experimental da infância, ali onde surge a fixação dos primeiros gostos e reconhecimentos, uma insurgência minuciosa dos AFINAMENTOS propícios entre “viver” e “instrumentar”. Inúmeros planos do filme são close-ups dedicados ao comando da menina Nadereh, exímia bailarina e ajudante de Khorshid, sobre o próprio pescoço, assertivo voto de Minerva sobre a finalização exata do refino dos instrumentos em confecção.          

Quando há transe nas cerejas, que esta pequena sacerdotisa porta nos ouvidos, é que “há música no instrumento”, ainda que ali subsistam, em teoria, os seres menos experientes (infantes!) para tal avaliação. Que o estopim moral da até então existência do menino seja a acusação dos moradores da vila de que os instrumentos musicais do comerciante não possuem qualidade, verdadeira gota d’água ao que tem a alma nos ouvidos, é um debate passível de remediação somente se o bardo que outrora lhe encantou os ouvidos e fê-lo se perder pela “incontagésima” vez puder testemunhar a favor da musicalidade contida naquele ouvido, aos olhos do mundo suas mãos e voto. Makhmalbaf será novamente sábio ao não fornecer o “destino esperado” à canção… nem ao roteiro qualquer tipo de comprovação da falta-de-poética do indivíduo mundano.

De encontro com a trupe de bardos, Khorshid vive o primeiro presente encomendado quando o locatário acaba por despejar sua mãe e pertences da casa: despossuído de “tudo (o que é material) ”, ele pede que seja tocado “o galope do cavalo”, pois “está partindo para muito distante”. Terá encontrado O SILÊNCIO interior com o último acorde-lembrete da vida que nunca lhe interessara possuir? Como “ouve” a água e “enxerga”, nela, a mãe flutuando num barco com nada mais que três itens em mãos, é ali que decide por seu golpe de independência, naquela similitude entre poética (permitida) e realismo (roubado)?

Quando perdido pelo acaso dos dedos que destamparam as orelhas, ele se perde…, mas na realidade se encontra. Indomável por natureza, como pode então, por sentido social, assentir ao rumo daqueles que de olhos abertos mesmo assim não veem? Suas lições aos instrumentistas e artesãos do ferro, do barro e da casca soam, afinal, delírio… até que, quando é preciso convidá-lo à orientação por entre as vielas, um dos artífices que havia lhe negado o “sermão musical” segue o protocolo previamente sugerido pelo garoto. A música apaixonada, entoada, en-tocada, embalada de sinceridade com a matéria é “quem” o recobra os sentidos. A pureza o reconduz “ao lugar”, salva-o de uma perdição que já não sabemos nós mesmos onde pode desaguar. O feitiço que o acomete será, com precisão, sua cura.

Inextenso de alegria, num novo enigma cênico, ele envenena todos os mercadores de um êxtase embalado com as mesmas mãos que sempre empunha à frente do próprio corpo, fazendo-se lido não pela cegueira, mas pela hiper-visão. O gesto repetido revela seu avesso. Um fator messiânico extrapola da montagem, pois que nosso olhar se esgueira, não mais buscando o “som correto” (justo, preciso, musical) tão-somente no ar que regurgita a corda da viola, mas numa eletricidade que possa existir entre aqueles dispostos à dança. O ritmo é sua humanização e socialização e descobrimento. Um raio de vocação o atinge – aliás, o confirma -, em meio à baderna, que nenhum passante sequer (e literalmente) se detém para ouvir: isto é, para entender como manifestação não-deliberada.

No interstício do perceptível, o silêncio grita uma re-ligião. Trata-se de um filme espiritual, não poético, como outrora se pensara. Uma re-ligação encabeçada por criança “muda” aos olhos de muitos. Indiferente, ela, com o mesmo fervor, à multidão.

Pois em busca dos ouvidos.

Em busca de uma canção imprópria.

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