Entrevista com Hernani Heffner: Parte 2 – Compreender o novo momento

Por Fabian Cantieri[1] e Thiago Brito[2]

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Thiago: Uma ação como essa de “fechar a cinemateca” é basicamente um “vamos apagar a memória, vamos destruir e só destruir”. Como o setor da preservação, como o da ABPA, como os profissionais estão conseguindo pensar numa ideia de sobrevivência nesse cenário? Porque me parece realmente, como o Fabian falou, a imagem do Museu Nacional em chamas vira uma proto-imagem do encaminhamento do governo Bolsonaro.

Hernani: É uma imagem que passou pela cabeça de todo mundo, passou pela minha cabeça. Não só nessa sexta-feira [29/05/20], mas já há algum tempo, porque pra mim no momento em que você estrangula uma instituição dessa natureza, sobretudo financeiramente, você tá levando ela ao desastre. Então não se pode dizer que isso não seja de caso pensado porque qualquer gestor minimamente informado sabe que instituições dessa natureza, se não tiverem os recursos adequados, elas abrem espaço para o imponderável e o imponderável às vezes termina tragicamente. A área de cinema como um todo reagiu muito rapidamente, mas de forma limitada, seja porque não há interlocução com esse governo, seja porque a gente tá no meio de uma pandemia. Então o poder de reação que quase sempre é simbólico, mas pode ter um impacto político muito grande, está arrefecido nesse momento. Então, lógico, as instituições, as associações, os sindicatos se mobilizam, se troca muita informação, geram-se manifestos, cartas de repúdio, cobranças, aciona-se, na medida do possível, o responsável – a Regina Duarte foi acionada várias vezes nesses dois meses em que ela foi Secretária Especial da Cultura e até onde eu saiba ela nunca respondeu qualquer solicitação de qualquer ente nem só da preservação, mas do campo cultural como um todo. A ABPA enviou um pedido de reunião com a secretária pra tratar da questão da preservação, do Plano Nacional de Cultura. Que eu saiba, nunca foi respondido. Então quando você tem de um lado esse tipo de atitude, esse mutismo, essa ausência, esse absenteísmo total já fica difícil a interlocução, mas pelo menos dizer pra sociedade o que está acontecendo, quais são os riscos envolvidos, o que é necessário fazer e o que é obrigação fazer por parte do Estado, isso tem ocorrido. No próximo dia 04 tem uma manifestação já programada em frente a cinemateca em meio a pandemia [já aconteceu]. As pessoas vão pras ruas, se expor, para tentar defender a razão de ser daquele espaço e cobrar ações concretas por parte do poder público que viabilizem a instituição. Agora tudo isso é muito limitado também por uma cultura política que não vai pro enfrentamento. A essa altura o que a gente tem visto e experienciado é justamente o lado conservador assumir essa cultura de enfrentamento, do confronto e do conflito, uma cultura que ocupa os espaços, que domina a narrativa midiática, que gera as imagens de força – não que tenhamos que trabalhar na dimensão da força, acho que a lucidez, a razão, o argumento apropriado e não a força que vai ajudar os filmes a sobreviverem. É o trabalho técnico adequado, a capacidade de articular uma coisa e outra, de dizer o que tem que ser feito concretamente, como tem que ser feito, mas também dizer em alto e bom som “olha, se não fizer, perde.” E perde desde o filme de família, da família A, B, C, D… até os registros das obras de arte mais importantes que o Brasil fez ao longo de cento e tantos anos. Esse trabalho político tem que subir vários tons, porque a gente não está mais lidando com um governo que queira debater e negociar, mas estamos lidando com um governo que virou as costas. E não só pra preservação, mas pro Brasil. Eles estão lá no castelo em Brasília e o resto do Brasil tá meio assustado e atônito, sem saber o que fazer, mas se não fizer nada, a casa pega fogo e as coisas se perdem.

Thiago: Isso me lembra um pouco da história do Ray Edmondson na Austrália[3]

Hernani: Tem pontos de contato. Houve governos na Austrália, na democracia australiana, que simplesmente olharam pro National Film & Sound Archive e se perguntaram “pra que serve isso? Não tem a menor importância, pode jogar isso fora. Políticas públicas na Austrália que reenquadraram as instituições, que diminuíram as verbas, que questionaram a existência ou parte dos seus acervos e que recomendaram a destruição. Pura e simples. Então nesse sentido o que a gente vive no Brasil não é novo no mundo da preservação. Por mais louco que pareça isso tudo é uma situação que alguns arquivos mundo afora já viveram. Essa ameaça não é uma ameaça localizada. Ela sempre está ali no horizonte daqueles que consideram que o passado e a memória não tem grande função hoje em dia. Há aí uma disputa maior que é o próprio sentido de guardar essas coisas. Pra que guardar essas coisas? No momento em que você gera a ideia de que isso tudo não tem o menor sentido, a menor função e pode ser jogado fora, você perigosamente chega aí nessa dimensão do esquecimento completo ou de amnésia cultural total que vai ter um preço trágico. Nesse sentido, lembrando uma obra de ficção que é o Fahrenheit 451, do Ray Bradbury, o que ele coloca lá é este Estado totalitário reacionário chegando ao ponto de desconfiar de tudo que carregue ideia. Naquele momento para o Ray Bradbury é o livro, mas a gente já não tá mais na civilização do livro, a gente tá na civilização audiovisual e dentro dessa civilização você tem essa dimensão imediata de um conjunto de mecanismos e tecnologias que conecta o mundo inteiro online, em tempo presente, e as coisas se fariam agora dentro dessa dimensão. Então pra que guardar o passado audiovisual? Pra que guardar filmes em papel, filmes em nitrato, filmes em acetato, videoanalógico, fitas VHS, DVDs… Isso não seria mais necessário e pior, aí vem aquele argumento absolutamente tolo e picareta “não, já tá tudo na internet, tá tudo no Google, só chegar lá e acessar”. E nesse momento você tá pondo em risco, mais do que o objeto, uma experiência que a pessoa de hoje ou daqui a dez ou cem anos, possa vir a ter com isso. Mal comparando, é você resolver destruir as pirâmides do Egito porque não tem mais sentido vê-las presencialmente porque elas já estão ali no Google. Há aí toda uma concepção muito equivocada e perversa que quer negar o acesso ao conjunto da população, agora e no futuro, a todo uma série de criações e experiências que o passado nos legou. E que foram conservados por esse tipo de instituição como a Cinemateca Brasileira. Então porque a gente não pode ter direito ao passado? Porque a gente não pode ter direito às várias dimensões do passado, inclusive com todas as suas contradições, em todas as suas dimensões concretas? Porque que a gente não pode saber que existiu direita, esquerda, centro-direita, centro-esquerda, direita radical, esquerda radical e muitas outras coisas? Porque que a gente não pode ter acesso a ideia de que houve momentos na história da humanidade em que as coisas deram certo? E também houve momentos que as coisas deram muito errado, terminaram muito mal, isso custou milhões de vidas e eventualmente destruiu patrimônios inestimáveis que não só faziam parte da vida das pessoas, mas contavam a própria vida da nação como é o caso do Museu Nacional.

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Fabian: Isso que você falou trazendo o Fahrenheit, onde na narrativa “queima-se tudo que contenha ideias”, eu adicionaria uma palavra: num estado totalitário queima-se tudo que contenha ideias contrárias. E isso é um dado importante, porque esse momento atual lida de forma diferente com a oposição de ideias. Não são só conceitos provenientes de perspectivas diferentes, tipo Marx e Adam Smith, paulatina e historicamente fundamentados. Muitas vezes se dá o simples negacionismo absoluto, puro e simples. Uma das muitas coisas que podem chamar a atenção naquele vídeo ministerial é o conceito de liberdade que o Bolsonaro usa. Você se apropria de ideias de superfícies, soltas no ar e as conecta como quiser, no caso ali liberdade era armar a população. Isso não é de agora, nas eleições de 2018 isso ficou mais do que estampado: o argumento racional não convence mais ninguém. Vídeos do Bolsonaro falando que tem que matar mais de 30 mil (e agora conseguindo o feito), que ele era racista e homofóbico, isso não adiantava nada. E hoje estamos acostumados com essa ideia, o que é um pouco assustador, o fato de não nos assustarmos. Estamos caminhando pra “dobrar a meta” dos 30 mil e isso não é mais uma questão, sendo que essa frase em vídeo do Bolsonaro parecia a coisa mais nazista a se temer em 2018.

Mas voltando ao ponto, com outro exemplo: se você não concorda com o Olavo de Carvalho ele te manda estudar, mas se você for realmente ver nas referências que ele indica, você percebe que existe um vazio de ideias, porque o que importa não é a depuração das ideias, mas um punch performático. O meme ganhou, o Iluminismo morreu. E eu tenho a impressão que isso tem a ver com a falta de memória, com a predominância da presentificação absoluta. Tudo hoje vira a-histórico.

Hernani: Eu diria que o maior desafio que a gente tem agora é justamente conhecer profundamente essa construção político-ideológico desse grande agrupamento de direita, desde aqueles que estão ideologicamente engajados até os espertalhões, conhecer isso bem, destrinchar e desmontar isso, revelar onde está o pulo do gato e onde está a construção ideológica pura. As várias coisas que você falou não me parecem a manifestação da mesma coisa.

Fabian: Até porque dentro disso existem as ideias supremacistas, existem as ideias racistas (eugenistas até) e homofóbicas pra caralho, elas estão lá constituídas, mas quando é hora de recriar as ideias importa pouco a procedência, a construção, o background. Na hora de construir algo novo, importa mais o impacto da imagem.

Hernani: Sim, concordo com você. Porque às vezes você tende, muito ingenuamente, a achar que não há ideias do outro lado porque elas são mal conduzidas, mal construídas, mal argumentadas, mal defendidas, mal tudo. É aquele negócio, “porque o Ministro da Educação não sabe falar e escrever isso significa que ele não tem ideias” – não é por aí. É uma dimensão bastante complexa que começa com um sequestro, que é o sequestro dos termos, então como que liberdade é uma bandeira agora dos bolsonaristas e não daquelas pessoas que historicamente lutaram por ela? Como você consegue sequestrar tão facilmente os termos “democracia”, “liberdade”, “justiça”? Se a gente olhar com cuidado os discursos bolsonaristas essas palavras estão lá o tempo todo. E há uma perversidade em inverter a argumentação lógica e política, do tipo: “agora que a gente está sendo perseguido, ninguém levanta a voz pra dizer que os direitos humanos estão em risco, ninguém levanta a voz pra liberdade de imprensa, liberdade de fala, etc”, ou seja, há uma instrumentalização perversa que não se revela por uma argumentação consistente, se revela por um sequestro dos termos chaves do jogo político.

Thiago: Uma fala dessa reunião que eu achei impressionante, nesse sentido de deturpação é o momento em que ele fala que é necessário armar a população pra que não exista uma ditadura.

Hernani: Sim, é o sequestro. São os argumentos clássicos do campo político da esquerda, ou como disse o Fabian é um sequestro dos argumentos clássicos da proposta iluminista, ou seja, de uma democracia liberal burguesa. O Jessé de Souza tem muita razão ao apontar esse aspecto “qual o problema com grande parte da esquerda brasileira?” O problema é que ela não é esquerda, né? Ela é uma democracia liberal burguesa e agora está vendo um sequestro amplo, geral e irrestrito dos seus argumentos clássicos. Da civilidade. O barbarismo e essa coisa da força do bolsonarismo fere a civilidade.

            Um sequestro por exemplo da ideia de democracia, então você tem que obedecer os ritos e aí o Bolsonaro vai lá e diz “eu vou desobedecer justamente pra preservar a democracia”. É uma retórica muito sofisticada. Ela não é descoordenada, aleatória, pontual. Você vê isso na boca de todos os bolsonaristas. O primeiro ponto é esse: o sequestro da dimensão simbólica da vida democrática. E esse sequestro hoje se dá pelas palavras quando no passado significava você se colocar sobre o julgo dos símbolos mais corriqueiros, por exemplo, as estátuas. Porque que quando certos regimes caem você vai lá e destrói as estátuas? Ou destrói os símbolos políticos como o parlamento, ou destrói desde Roma antiga a possibilidade de você ter uma história pregressa, vai lá e queima a biblioteca de Alexandria. Esse sequestro simbólico ele é tão ou mais significativo a essa altura, porque me parece uma coisa muito consciente.

            O segundo aspecto que envolve esse vídeo da reunião ministerial com os ministros. Em tese, não era pra ser veiculado, mas sempre me espantou a pouca resistência que o governo ofereceu em trazer o vídeo a público. No fundo, é claro, eles reviram o vídeo e disseram “bom, quais são os perigos que existem pra nós ao trazer isso a público? E chegaram a conclusão de que nenhum. Pode mostrar. Ainda que a decisão final tenha sido do Supremo, o vídeo foi entregue, não foi manipulado, tinha todas essas características bárbaras e algumas delas foram antecipadas muito sutilmente pela assessoria de comunicação do Planalto por um colunista aqui, um comentarista acolá.

            E foram preparando terreno pra que, quando o vídeo chegasse ele chocasse, mas não chocasse tanto, como o Fabian falou. Não era uma novidade mais. E aí o que me parece é que, como muitas outras questões e situações desse governo e, principalmente, desse universo que emergiu nos últimos anos, eles vão descobrindo aos poucos, e meio que por acaso, certas estratégicas, certos instrumentos e também me parece que toda aquela performance maluca do Bolsonaro em meio à reunião acabou sendo tida como positiva. E aí a gente talvez tenha que entender uma certa performatividade que era muito vista numa dimensão meramente formal, que era “ah, o Bolsonaro usa muito as lives, o Facebook, suas redes sociais, ele tem seus próprios canais de comunicação”, ou seja, tava muito no instrumento e não na performance em si. Essa tentativa de construção simbólica da estátua pública dele que é a palavra “mito”, que é uma palavra que talvez tenha sido a primeira a ganhar uma dimensão simbólica desde a campanha. Qual é a performance do mito? É uma performance calculada – responder certas coisas, não responder outras, colocar ou não palavrões, de inverter argumentos, de jogar justamente com a defesa do Iluminismo por parte dessa democracia liberal burguesa, sobretudo a imprensa representa muito isso e aí brincar com isso.

Fabian: Eu ousaria dizer que existe um estudo muito específico e muito próprio dele com a figura do Lula. Quando ele dá esporro na reunião, falando “em sentir o cheiro de povo”, por exemplo. Acho que existe uma consciência forte ali sobre um vácuo que a ausência do Lula deixou nas classes menos favorecidas.

Hernani: Tem. Ele não é exatamente um político neófito. O cara tá há 30 anos no Congresso. Sabe como funciona aquela loucura, tem aí uma certa leitura do Brasil, um vocabulário, uma retórica própria, uma estratégia de ação política própria, uma estratégia de performance pessoal própria, que a gente vê repetido no vídeo. Não é inocente, nem casual. Pra além da destruição dos antigos símbolos – vão todos arder se depender dele e do universo bolsonarista – você tem aí uma ação política mais consistente e coordenada, ainda que tresloucada e baseada em premissas ideológicas completamente estapafúrdias e aí não adianta fazer o elogio da conversa, do debate tranquilo, equânime e racional porque não se trata mais disso. Uma coisa que me chamou atenção foi uma certa direção de TV no vídeo. De como você cortava do Bolsonaro pra um ministro X ou Y, mesmo sem ele estar falando, ou seja, como se fosse um programa de TV. Fico me perguntando se o vídeo original era assim, se havia essa edição online, ao vivo ou se isso foi preparado a posteriori. Claramente há várias câmeras, um material bruto e uma edição na hora, mas você poderia recorrer tanto ao bruto quanto a edição pra trazer a público a versão oficial do governo. Eu não vi nenhum veículo de imprensa questionando essa forma de fazer. Se você tem vários cortes e planos e ângulos e pontos de vistas, bom houve uma certa estrutura de produção pra fazer e uma estrutura de edição que pode ter se dado naquele momento ou a posteriori e não ter adulteração nenhuma. E é engraçado a disposição de atores naquela mesa quadrada, de embates de pontos de vista, onde é possível tecer de alguma maneira uma espécie de radiografia da própria estrutura interna do poder. Como se dá isso? Como seria isso na Era Lula, na Era Dilma e até mesmo na Era Temer? Como você pode comparar essas formulações e o que isso redunda de discurso para a população? Então tem aí um universo que precisa ser pesquisado e entendido e desmontado nos seus mecanismos de construção discursiva e ideológica e perceber nas entrelinhas aonde ele quer chegar e onde ele não quer chegar.

Fabian: Nessa coisa de entrelinhas, uma das coisas que me impressionou foi a imagem do Power Point na televisão à direita de quadro da mesa quadrada: um grande “Pátria Amada Brasil” com crianças dinamarquesas. Não pelo fato de só haver crianças brancas europeias, porque isso já tinha sido muito debatido nas mídias sociais e na imprensa há uns meses atrás, mas justamente porque eu não sabia que eles ainda usavam esse slogan com essa imagem depois de tanto se falar sobre isso. Ou seja: a imagem do Brasil pra eles são essa turma de crianças brancas, “fofinhas” e não importa se vem a esquerda ou a imprensa e desmascara aquilo em termos práticos, não importa que aquela imagem seja um “ctrl c + ctrl v” de uma campanha publicitária europeia – o que importa, nesse mundo de pós-verdade, é que essa é a verdade deles, o conceito-Brasil é esse. De novo, é a coisa do xingamento do Olavo, é meio “ganhar no grito”, “essa é a Pátria Amada Brasil que nós queremos”.

Hernani: Ou de uma maneira mais analítica, o Iluminismo tem como pedra de toque que qualquer ideia tem que ter como correspondência na Physis, na natureza, você não pode inventar coisas do nada se ela não tem coisas concretas, se ela não é realidade. O que ocorre com o bolsonarismo e esse exemplo das crianças é ótimo, é que o bolsonarismo descolou a substância da matéria. A matéria não interessa. Se elas são nórdicas ou não, não interessa, ela representa uma certa ideia que queremos fazer vingar. Uma ideia eugenista, não por acaso isso voltou de uma maneira muito forte – o desempenho do governo na pandemia foi um desempenho absolutamente eugenista: “Danem-se as pessoas que não tem capacidade pra sobreviver, morram aí. O problema é delas, não é nosso”. E aí você fica com a ideia e não com as ações concretas da liberdade em arte, pra lembrar do Aristóteles. Você fala em nome da liberdade ocamente, por pura retórica e a simples palavra seria evocativo de um estado primeiro do que seria liberdade que jamais é explicado. O sequestro real tá aí, você não vai explicar, você não vai unir a substância à matéria, você não vai pro exemplo concreto, dizer “isso que fizemos aqui representa a liberdade de fato”. E aí vira um jogo de surdos-mudos. Se aquilo que você tá designando como esquerda, que hoje na verdade é um conjunto enorme de segmentos do Brasil, não consegue debate ou diálogo ou enfrentamento com o governo é porque ele ainda pensa de um jeito e o governo já tá pensando de uma maneira completamente diferente e se recusa a encontrar um terreno comum. É um dissenso radical e a radicalidade desse dissenso, como o Thiago falou, é a ruptura. Esse governo busca a ruptura. Estamos numa escalada que de um lado desmonta, destrói, ignora, dá de ombro e do outro lado busca um paraíso terrestre, uma pátria perfeita que é plana e temente a Deus, militarista, que não existe nem existirá nunca, mas que povoa o espaço vazio dentro da cabeça dessas pessoas. O iluminista clássico nem consideraria discutir essa história de terraplana, talvez mandasse botar essas pessoas no hospício e ponto. A gente tá aqui tendo que recuperar toda a história do porquê a Terra é redonda pra combater isso. A essa altura parece um desperdício de tempo e de forças fadado ao fracasso. Porque no fundo não há diálogo com essas pessoas e você fazer o elogio iluminista do fato, da verdade – e por isso que a gente vive num tempo de pós-verdade – perdeu completamente a eficácia. A gente precisa encontrar outros mecanismos pra atuar socialmente porque esse mecanismo da pura e simples verdade já não é mais suficiente. Precisamos de outros mecanismos pra chegar às pessoas e de alguma maneira chamá-las novamente… antigamente a gente diria “chamá-las à razão”, mas chamá-las novamente pra Terra.

Fabian: Chamá-las à sensibilidade.

Thiago: Seguindo um pouco o seu raciocínio, Hernani, trago uma frase que ficou na minha cabeça: porque não podemos ter direito ao passado? Se a gente alia essa ideia de passado a uma ideia de estrutura de formação, se esse passado ao ser acessado, a pessoa pode ter uma leitura e com isso formar-se e, às vezes, até emancipar-se a partir disso, essa possibilidade não está em jogo?

Hernani: Sim. Tudo depende de quem você quer ser. Tudo depende da tolerância com que você considera o outro. Tudo depende do acordo que você estabelece em meio a sociedade. Se quem você quer ser quer eliminar radicalmente qualquer dimensão anterior, até é possível, até em princípio é um direito, mas não pode ser um direito universal. Você não pode simplesmente ignorar tudo isso. Não pautar sua vida pro passado. Mas você não pode estender isso aos outros. Você tem que considerar que o outro pode pensar diferente de você. A tolerância é a base social. Se você não tiver isso, você vai ter que usar força, etc. Então a própria ideia de você descartar o passado é uma ideia que só existe de fato nesse tipo de regime intolerante. Nesse tipo de situação social onde o outro acha que é dono da verdade absoluta.

        Mas eu acho que hoje em dia a gente corre um risco ainda maior. A discussão ideológica em torno do passado, ela às vezes tem essa dimensão semântica: qual a diferença entre antigo e velho? Qual a diferença entre o que é próprio – entre, o que há rigor ainda existe no presente, porque o que veio do passado se foi conservado, existe no presente – e a ideia de que aquilo não tem mais função, não tem mais sentido, não serve pra mais nada, etc. o que levaria a uma ideia (sempre perigosa) que é a ideia do descarte.

       Essa ideia de descarte é uma ideia muito forte nos dias de hoje, porque há um suposto excesso de tudo. Excesso de informação, de produtos, de opções, de mídias, de tudo. Então a vida no presente é uma vida que é atravessada por tantas possibilidades que o sujeito estaria vivendo numa espécie de paralisia, dado a esse excesso. O próprio passado em certa medida pode ser um excesso. Na medida em que você entra numa plataforma de streaming e tem lá 200 filmes, 500, 1.000, 10.000 filmes. Você pegar sua vida e se dedicar a ver filmes, você não vai conseguir ver 10.000 filmes.

            Ou seja, tudo está passando a escala humana e haveria a necessidade de você voltar a uma escala mais adequada de vida e assim você associa esse descarte a uma ação natural de autoproteção. Você precisa fazer uma opção entre um passado enquanto tal e um presente onde você pudesse carregar esse passado de maneira mediada. E aí foi oferecido um serviço que é o que o celular propicia às pessoas de você carregar seus vídeos, fotografias, suas gravações de áudio, seus momentos de vida, sua timeline. Ou seja, todo seu passado está ali no seu lado o tempo todo e pode ser acessado muito prontamente o tempo todo. Então pra que ter, de fato, os signos anteriores? Pra que ter os objetos que marcariam essas vivências anteriores? Pra que ter a expressão mais sofisticada anterior?

            Numa dimensão iluminista, a obra de arte pensa. Mas numa dimensão contemporânea, pós-humana, pós-verdade, pós-moderna, pós-tudo a própria ideia de um passado é um excesso. O que você precisa ter é um presente instrumental onde você possa encaixar o passado de maneira instrumental e não pensar a partir do passado.

            Lembre-se: agora, via internet, via celular nós somos consumidores finais todos. Todo mundo que tem um celular é um consumidor final e pode, inclusive, consumir o passado através desse mecanismo. Por que você precisaria aí de outras dimensões mais sofisticadas, mais complexas, mais propensas a reflexão se você pode dispensá-las, sobretudo em favor de um regime futuro, de um paraíso futuro que é apresentado como mais adequado, como literalmente mais perfeito do que os atuais ou anteriores?

            Qual o discurso do Bolsonaro? Nós vamos consertar o Brasil. Nós vamos salvar o Brasil. Nós vamos fazer o que é correto pelo Brasil. Esse discurso salvacionista se encaixa dentro desse novo contexto em que você tem as redes sociais, celular que não existiam há 30 anos atrás. Então, eu acho que tem aí uma dificuldade nossa de entender o mundo atual, o redesenho da dimensão da política dentro do mundo atual. A ideia de que você possa lidar com a falta de verdade ou com a fake news dentro do mundo atual não é novidade. Documentos falsos sempre fizeram parte da história e seu uso era basicamente político, mas a escala aí, a natureza disso hoje em dia é diferente do uso mais antigo e eu acho que começa a ser diferente porque o substrato ideológico dos termos se esgarçou, se perdeu, se dilui, eventualmente até deixou de existir e a palavra liberdade pode ser empunhada por qualquer um impunemente sem qualquer tipo de confrontação maior.

            Até porque não se busca confrontação – não se pode esquecer que o candidato Jair Bolsonaro não compareceu a quase nenhum debate. Ele fugiu o tempo todo dessa dimensão e um dos gestos antidemocráticos de início da trajetória dele é exatamente esse. Nós temos aí um trabalho a ser feito que é compreender. Como tudo isso está ocorrendo, quais são as implicações. Vai demorar, inclusive, porque não é fácil se jogar nessa seara toda e tentar destrinchá-la pelos vários ângulos que ela tem e ao mesmo tempo, não perder de vista que, independentemente dessa ação é preciso estar atento e forte pro imediato. Se alguém diz que pode fechar a Cinemateca Brasileira, você tem que reagir de alguma maneira. Mesmo que você venha perceber que não era exatamente a maneira correta, isso não interessa; você tem que reagir e eventualmente estar a postos pra reagir àquilo diretamente porque o risco é real e concreto e a gente tem que ter a percepção de o quanto ele avança se, por exemplo, o dinheiro não aparecer, se a instituição ficar num limbo jurídico por mais não sei quanto tempo, se vier uma gestora que não faz nada, etc. Porque o que não pode ocorrer é você simplesmente deixar as coisas de lado, deixar caminharem frouxas, porque aí o desastre vem de uma maneira ou de outra. A gente já tá vivendo o desastre hoje praquilo que não fizemos ali em 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018. O mundo correu através desses anos e a gente tava um pouco ausente de tudo isso. Não nos lançamos ao debate público necessário, não lançamos certas questões, fomos muito condescendentes com certos arranjos e o desastre está formado. Então agora não dá pra chorar pelo leite derramado. Agora é o momento seguinte. Agora é o trabalho de zelar de um lado, cuidar do outro e pensar. Não se pode abrir mão de pensar. Nem cair nessa de que o outro lado é só maluco. Mesmo os malucos pensam.

Thiago: Dentro desse presente instrumental em relação ao passado, qual seria o futuro ou o novo papel das cinematecas? E o que nós não fizemos nesse período anterior que precisaremos fazer no futuro?

Hernani: Olha… permanecendo numa dimensão semântica de palavras, acho que a palavra que mais circula hoje no Brasil é “ódio”. E o contraponto a essa palavra só pode ser “tolerância”. Então você tem que utilizar os acervos audiovisuais pra entender as raízes do ódio, a possibilidade da tolerância, pra entender que existem outras formas de viver em sociedade. Pensar isso a partir do audiovisual não só é uma tarefa necessária mas pode ser uma tarefa muito importante porque, usando uma palavra que o Fabian falou, de uma maneira geral, o audiovisual lida com “sensibilidade”. Mais do que com racionalidade.

            Às vezes é muito mais significativo ver o Grande Otelo cantar o Malvadeza Durão no Rio Zona Norte do que assistir um discurso contra o racismo, o que é absolutamente necessário, importante, etc., mas não dá conta da empatia necessária com outro. E um filme como esse dá conta. Eu acho que tem aí uma reserva de valor nos acervos que o Brasil conseguiu salvar e preservar que é justamente reconhecer que existem sensibilidades na nação brasileira que tão sendo postas de lado em função de uma que é muito raivosa, que é muito intolerante e injusta, que é muito, inclusive, eugenista, no pior sentido da palavra e que não nos serve, né?

            O que adianta uma nação conflagrada e baseada no ódio se isso vai significar um inferno de vida pra todo mundo? Não é só pro lado que acha que está por cima da carne seca, que acha que é vitorioso, que está no poder. É infernal pra todo mundo. E outra coisa: o que faz o ser humano, humano? Essa dimensão é alguma que o cinema perseguiu de forma muito forte ao longo do século XX porque ele é contemporâneo das guerras mundiais, dos genocídios, das bombas atômicas, ele é contemporâneo de grandes horrores e de grandes tragédias, então de alguma maneira, o cinema, talvez das artes, foi aquele que mais profundamente tentou lidar com a sensibilidade do seu público.

            Eu acho isso um ativo, pra falar um termo econômico, que foi preservado e que é de um valor incomensurável. Assistir aos filmes mais antigos pode te trazer grandes surpresas e de repente você perceber que a sociedade era conflituosa, sempre foi, mas ela tinha um grau de tolerância que desapareceu por completo nos últimos tempos. Sob esse aspecto é possível caminhar de uma forma consciente, resolvendo conflitos, opressões, intolerâncias, mas também resgatando sensibilidades que unia o sambista branco do asfalto ao sambista negro do morro. Como é que você troca essas divisões de mundo, essas ferramentas de criação? Como você gera uma expressão extraordinária do ser-brasileiro, de viver nesse país, que hoje está muito esquecida ou até mesmo perdida? Tem aí um valor pra esses acervos que não é só o valor instrumental da pesquisa, da história, etc. é o valor da arte. De como a arte pode impactar uma sociedade.

            A gente lembra de como uma reivindicação se torna clara e única quando em vez de ouvir os discursos você ouve uma canção, né? Eu lembro muito da história das Diretas Já e quanto a canção do Wagner Tiso e do Milton Nascimento se transformou de uma canção instrumental, a uma canção com versos, em hino pelo fim da ditadura, pelas Diretas Já, aquela coisa toda… a canção, uma simples canção, foi muito mais potente do que um certo conjunto de discursos que eram necessárias, mas que, eventualmente, eram muito formais ou muito estritamente políticos e não tinham essa dimensão de sensibilidade que a canção trazia, trouxe e se tornou uma peça histórica fundamental nesse sentido e revelou aí o quanto as pessoas, de fato, compreenderam tudo aquilo.

            Então a arte tem esse poder porque joga com as sensibilidades e, nesse sentido, não precisa ser uma arte contemporânea. Você pode ter um filme de 10, 50, 100 anos atrás e ele ter esse mesmo poder, ou até maior, porque ele reencontra ali o seu diálogo, às vezes de maneira mais forte num momento contemporâneo do que lá no seu contexto de criação.

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[1] Fabian Cantieri é crítico, diretor, roteirista, fotógrafo e curador de cinema.

[2] Thiago Brito é roteirista e diretor audiovisual.

[3] Em 2003, o governo australiano propôs incorporar a NFSA ao Australian Film Comission, retirando a autonomia do órgão, buscando instrumentalizar o acesso aos arquivos ao mesmo tempo em que colocava o trabalho de preservação em segundo plano. Ray Edmonson escreveu sobre a história do NFSA em sua tese de doutorado. Disponível em: https://www.academia.edu/6375596/National_Film_and_Sound_Archive_the_quest_for_identity

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