Por Bernardo Moraes Chacur
Em S/Z, Barthes defende que uma das características do texto clássico é a especificação crescente, em que cada descrição e acontecimento gradualmente limita as possibilidades da narrativa[1]. A progressão do enredo tende a nos fazer esquecer que a história poderia ter seguido rumos diferentes e mesmo as eventuais releituras e revisões acabam sendo condicionadas pelo desenlace já conhecido. Esses aspectos são claramente perceptíveis no cinema de franquias, em que cada nova iteração precisa se ater a um cânone ou incorrer na acusação de heresia. Esse cabresto também é aplicado retroativamente: o primeiro filme de uma série é frequentemente valorizado de acordo com a quantidade de elementos canônicos que prefigura, enquanto os pontos discordantes são ignorados ou menosprezados.
No caso de Mad Max (George Miller, 1979), os pontos discordantes são indisfarçáveis. Enquanto suas três sequências (de 1981, 1985 e 2015) são pós-apocalípticas, ambientadas décadas depois do colapso da civilização, o episódio inaugural se passa em um mundo quase inteiramente familiar. Logo depois dos créditos, há o aviso de que estamos em um futuro próximo (‘A FEW YEARS FROM NOW’), embora boa parte da ambientação pareça simplesmente a Austrália de 1979 em um filme de baixo orçamento. Mesmo a presença de gangues caricatas não serve de índice futurista, considerando quantas vezes o cinema das décadas de 60-80 (pós-contracultura, pós-movimentos pelos direitos civis) representou marginais desgrenhados como a encarnação dos medos conservadores. Nesse mundo, o comércio e a prestação de serviços ainda funcionam: vemos casas noturnas, sorveterias e hospitais. Há um único sinal inequívoco, portanto, de que a Ordem se encontra nos estertores: o prédio-sede da polícia, dilapidado e quase vazio.
Em um momento decisivo da trama, o protagonista se sente afetado pela anarquia crescente e resolve tirar férias com a família. Nesse ponto o filme se transforma: Max, mulher e filho vestem as melhores roupas e viajam para o campo, onde a crise social parece exorcizada. Os partidários dos “roteiros plausíveis” provavelmente considerariam a premissa absurda: que tipo de gente sai de férias em meio ao caos? Penso, contudo, que esse é o elemento mais perceptivo da obra, ilustrando o nível de negacionismo mobilizado por uma sociedade para rejeitar as evidências de que seu modo de vida não é mais sustentável. Mas a ilusão de segurança é frágil e a mesma gangue enfrentada por Max em seu trabalho como policial vêm romper definitivamente o idílio.
Como se demarca um fim de mundo, a transição entre normalidade e a catástrofe? Em Mad Max, assim como na cultura hegemônica do século XXI, a gravidade da crise só se torna clara quando a família branca das nações desenvolvidas é sacudida de sua habitual posição de conforto: para as demais populações, as distopias já começaram muito mais cedo.
Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019) também nos situa “alguns anos no futuro” e, assim como no filme de Miller, apresenta poucas diferenças evidentes entre seu universo ficcional e as representações do presente. Há, no entanto, o detalhe periférico de um televisor ligado, na qual lemos as palavras: “AO VIVO. EXECUÇÕES PÚBLICAS RECOMEÇAM ÀS 14H – VALE DO ANHANGABAÚ”. O prefixo – recomeçam – indica uma barbárie já instalada e provoca a pergunta: quando teríamos transposto aquele limite? Considerando que o jornalismo policial clama há décadas pelo extermínio dos “bandidos” e o número efetivo de mortos em “confrontos com a polícia” no Brasil, essa fronteira já não teria sido ultrapassada?
Situar uma narrativa pessimista em um futuro próximo possui, em princípio, uma carga perturbadora, sugerindo que pouco separa a nossa realidade dos piores cenários. Ao mesmo tempo, o expediente interpõe uma distância reconfortante entre o presente e a catástrofe. Resta, dessa forma, uma gama de opções ante os prognósticos adversos, da sensação de urgência ao derrotismo e a negação, escolhas que poderão ser postergadas até que finalmente alcancemos o ponto da irreversibilidade.
P.S.: Agradecimentos a Victor Lopes pelo incentivo, a Juliana Fausto pela ajuda com a redação de um trecho e aos editores da Multiplot pela paciência.
Referências
Roland Barthes, S/Z. Éditions du Seuil, 1970
[1] Éditions du Seuil, 1970. Paráfrase livre do que o autor escreve sobre a redução da pluralidade no texto clássico em várias passagens, como nas seções VI, XV e XL e também sobre a nominação na seção XI. As frases posteriores à referência são extrapolações por minha conta, acreditando que a situação mudou muito desde que Barthes escreveu que “os hábitos comerciais e ideológicos de nossa sociedade recomendam que joguemos fora a história uma vez consumida” (seção IX, p.20, tradução própria).