Há um olho que me observa

Por Felipe Leal

Instigados pelo ruído grandioso, temático, que certas palavras podem suscitar a despeito de seus tamanhos ou complexidades consoantes, seríamos tentados a esquadrinhar o apocalipse sobre as mesas já demasiadamente iluminadas, ora do evento religioso, ora dos interesses filosóficos: ele é, afinal, sempre “O” apocalipse, a derradeira despessoalização; e é também, à sua maneira, um dos poucos termos limítrofes do sujeito pensante enquanto pessoalidade, humanidade de qualquer pensamento. Enquanto cá residirmos para pensar o mundo, este seguramente existe, existe ao menos enquanto algo a se pensar. Entretanto, ele continuaria a existir, uma vez que não houvesse ninguém para concebê-lo? Sedimenta-se um nó – algo emperra e impede que a ideia de fim consiga conceber o próprio fim, restando-nos dois gérmens de ‘antes’ e ‘depois’. Pensar um fim final, ao que até aqui parece, é, de imediato, unir-se à pergunta do quando. Notemo-lo bem: o apocalipse é da ordem de um tempo específico tanto quanto trata de um modo específico de vida em deterioração; ele precisa da extremidade que aquilo de já estanque pode atingir.

Praticamente todo filme apocalíptico é grande dependente de um estado de exceção em que o doméstico se dissolve e, no externo, é preciso atuar em dedicação delicadamente conjunta, em definitivo e contra ou a favor de uma articulada fonte de poder. As narrativas planejam que sempre restará alguém para preservar, ou ainda, alguém que poderá multiplicar e povoar de novo, ou que sempre, e mesmo que a contragosto, um indivíduo específico poderá evitar qualquer (outro) apocalipse (realmente final) de uma catástrofe já eminente, presente, por algo de único que só ele detém. E nós que não somos o acontecimento vivemos num curioso empecilho onde o único tecido que pode nos lembrar e nos fazer durar (isso que se chama história) convoca, dos enlaces produzidos, aquele de um tênue custo ético, tão mais comprimido quanto maior nos ameaçar uma aniquilação. À pergunta, portanto, sobre se seria possível filmar um apocalipse doméstico, mas, mais que isto, um fim de toda a possibilidade de intercalar ou separar, um cineasta respondeu com uma paixão das mais afetadas e com um comedimento material dos mais notáveis.

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Pois se há marco temporal e ético na historiografia da própria história, assim como deve haver um para o cinema, em que a invasão dos corpos mais mundanos – individuais e quaisquer – faz do filme uma artimanha elaborada de des-identificação, é com o mesmo rigor de desinteresses auto-impostos pelo objeto fixo, catalogável ou escrito, historicizável enfim, que Tsai Ming-Liang construirá O Buraco (Dong, 1998). Um mundo está em colapso, decerto, mas a elementaridade virtual cultivada “por detrás” da quarentena, da escassez de apoio de saúde e da moléstia que a televisão comunica para a Taiwan-povo sem qualquer drama além do comunicado informativo, esse componente dorsal que faz do filme um filme “de…”, “sobre…” ou “ao redor de…” é extinguido através do caractere biológico. Em sua realidade mais íntima e constitutiva, o corpo é passível de contaminação, infiltração, reação: ele não é isolado, ainda que tudo se construa para que ele se separe. Os personagens, pois, funcionam apenas sob a estimativa das necessidades e funções; não possuem nomes, psicológicos ou profundidades delineadas, aquele homem e aquela mulher unidos por um vazamento e alargados por um buraco. Do lado de baixo, acumulam-se papel higiênico e a quantidade de panos necessária para conter o vazamento de cima, e o locatário de lá já se encontra a consumir os produtos do próprio mercado enquanto assiste ao aumento do buraco.

Mais do que a apocalíptica experiência do mundo enquanto labuta canina ou de assassínios, mais do que a escassez cujas narratividades “do fim” pintam pelo pontapé da animalização permitida e não-vigiada, o que eles vivem é o aglomerado de profusões voltadas à faceta microscópica e solitária do cotidiano, e, ademais, paradoxalmente, já que dos vizinhos às necessidades trabalhistas tudo está literalmente a enlouquecer ou estourar. Janelas, corredores, portas, dobradiças, resistências, materiais, vizinhanças, isolamentos, edifícios: toda a escancarada e predeterminante geografia de nosso isolamento, e, por conseguinte, de qualquer relação com um “fora”, volta-se para si mesma até que o caráter pânico e aquele cenográfico estejam imiscuídos. É somente quando o inseticida lhe vem como uma rajada imprevista, do apartamento de baixo até o olho, como um gêiser punitivo, que ele se percebe voyeur e imprensado por meio do concreto em cima daquela mulher. A trama do que nos é permitido enxergar e do que é legítimo que o outro (me) veja rui como os farelos de poeira daquele pequeno círculo encanado. Pouco parece importar, para a tragicomédia musical de Tsai, se haverá alguém para perpetuar alguma história nossa, se teremos morrido pelo malefício mutante de um ser natural ou pela punitiva temporalidade divina.

Mas que reste uma Grace Chang para nos transitar por certo acalento através de canções, que por algum lugar a vidraçaria do realismo e o cristalino do verdadeiro possam se desfrutar na dança despreocupadamente rigorosa, ressuscitada, de um outro tempo que já é também um outro vivível, permitindo a um corpo tido como efetivamente comum, o corpo da imagem, que a coisa guardada como a lembramos possibilite uma existência tanto quanto a maneira pela qual ela deve ter acontecido por norma – isso, é indubitável, importa. Tsai o mantém, literalmente, para todos os propósitos, e assim o assinou ao término da última imagem. Toda a complexidade de tal desejo de endereçamento, aliás, pode ser dita de dois modos simultâneos: a) o apocalipse lhe acontece desde já, e o que resta é selecionar, preservar e exibir aos outros apaixonados todas aquelas figuras, como num álbum passado entre mãos; b) se aquilo com que podemos devanear é somente o termo apocalíptico do acontecimento em si, é dentro do campo do “como ele poderia vir a acontecer, acontecendo” que nos cabe estar restringidos. Um filme musical, um filme endereçado explicitamente aos seus fundos de endereço, e que ele retoma retomando a parte do cinema concernida com os buracos, entrevisões e vazantes: a cinefilia.

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A rigor, tudo acontece num primeiríssimo plano de desimportância representada, o encanador, a descoberta do vazamento e o diálogo enfadonho à porta imantados por uma persistente falta de corte, por uma banalidade, como se um buraco qualquer por algum motivo nos tivesse sido aberto bem no teto, até que algo de uma inteireza também mágica é posto incessantemente ali, junto a tudo o que acontece, e um véu incontornável recai sobre uma amplitude diegética cuja única preocupação sempre será, com efeito, que se resolva o vazamento num apartamento taiwanês na virada do milênio dois mil.

Seria o apocalipse para Tsai uma paulatina não-distinção entre som, imagem, sonho, pele? Porque nunca custará lembrar do eminente e único dado informativo do filme: durante noventa e cinco minutos e unido do crescente e cômico desinteresse do liame jornalístico diante da solubilidade da crise biológica, a chuva é intermitente, a única sonora certeza. Ela é, em uma medida tão desvairada quanto concebível, até mesmo mais crucial que os próprios personagens. O aguadeiro não somente infiltra e descasca os papéis de parede dos apartamentos, não fica restrito ao aumento da umidade como símbolo do contágio afetivo nem tampouco está encerrado na forma de anúncio barrista de um fora em catástrofe. Aquela chuva, a água do elemento majoritário da terra e da composição química dos corpos ultrapassa sua qualidade retratista (de sublinhar um ambiente ora coletivo demais, ora pessoal e abstrato) quando o assunto que ela implica atinge uma mistura, uma intensidade “contaminante” e empírica além, aquém e concomitante ao filme precisamente pela constância desastrosa do empirismo em que ela outrora nos relançaria (a melancolia, o intolerável, a anulação). Pedra de Sísifo, barata kafkiana, praga bíblica, neblina mágica.

Em outras palavras, e no que diz respeito ao cênico, num termo em que a espacialidade da malha sonora possa vir a ser termo para todos, o mote epidêmico/apocalíptico, torcendo a teatralidade do personagem, ao invés de multiplicar, “universalizar”, opta por reduzir, não sendo jamais entre si que eles terão de se relacionar, já que não se trata de fabular um enamoramento pelo lampejo da tradição musical entrecortando cenas, mas com o espaço que os torna alguém um para o outro. Sofisticar e apaziguar, entranhar (sedimentar) e simplificar participam milagrosamente de um mesmo ato conjunto. A possessão repentina dos planos com um certo brilho cinemático toma dessa aclimatação do olho e de sua membrana próxima à habituação o elemento que, no cinema, mais confunde os olhos com certa extra-ordinariedade: que uma vida qualquer esteja à altura da ímpar vida que ela, para todos os efeitos, não poderia ser. Na sucessão dos dias, a mulher degusta o quinto ou sexto macarrão instantâneo – já não sabemos se a água está ou não contaminada, se certo nível de fervura a torna limpa da bactéria ou não, e pouco importa – num improvisado de assento tão esmagado pelo acúmulo de provisões e pelo acúmulo de restrições daquele estilo de apartamentos, que basta uma explícita penumbra ensaiada pelo estado refletor da água para que em seu isolamento subsista uma pose estatuesca de Elizabeth Taylor ou Cyd Charisse.

Tão contaminadas de anglicismos como se perfilavam as canções populares de jazz retidas em Grace Chang setenta anos atrás (Shidaiqu, musicalidade híbrida chinesa/jazz e próxima à outra virada de século), também o fator encantatório de tal sonoridade imagética se infiltra assumindo certo esmagamento improdutivo, ensaiado, finito. Aquela meia dúzia de esquetes musicais vem a nos parecer menos uma homenagem do que o encontro de um consolo pela composição; e ele é barato pela sua qualidade eficaz de fosforescência, pela especificidade de sua consumação. Não poderia sê-lo de outra maneira: aquele casal unido e dessegmentado por um buraco acha, no tecido para o qual o narrativo mostra as dobradiças de sua intenção, uma possibilidade de invasão e de sobrevivência cada vez mais ativa. Eles precisam sobreviver, eles são levados ao consolo sonhado pelo cúmulo de uma brecha. As separações do mundo binomial se dissolvem, como se umedecidas. No penúltimo prenúncio a esquete de Gesundheit!, ela espirra, mergulhada numa banheira em forma quase plenamente anfíbia, e a música que segue não é menos que uma literalidade de espirros compondo versos sobre o teor alergênico da vida amorosa, enquanto que a última dança do casal já rodopia artificialmente, ambos cravados num círculo minúsculo de baile, à maneira das caixas de música com bailarinas eternalizadas. O grau protético desse sonho infiltrado no decorrer dos dias (espécie de daydreaming) é a doença definitiva do mundo biológico que jaz sob o núcleo celeste econômico.

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Pois que ele pode não ter sequer mais um cliente restando para manter o negócio numa pequena mercearia, mas é ainda mais grave que sua antiga clientela e seus habitués tenham vivido a mutação completa e suficiente para torná-los organismos exemplares do mundo regido pelas máquinas: a epidemia bem sabe dançar pela transmissividade da água e pela retração de um espaço possível à humanização, e todos em breve, eles inclusos, serão ratos, baratas, animais de gaiola e sígnicos do laboratorial na experimentação. A diferença é que o buraco lhes proporciona a alternância de lugares.

Um buraco… o que é? Ele é o dado de uma brecha. Mas, no fim dos tempos, nessa exceção chamada ‘agora’, a doutrina das transparências joga “sozinha”, ainda que ao olho da câmera; o avesso por baixo de seu significado basicamente formal, o de ser estando esburacado, assumido ao mesmo tempo em que desvelado, numa transfiguração urgente e dosada vai tornando a fissura um poder de fazer participarem aqueles indivíduos de uma quantidade maior de visões, outrora suficientes à exclusividade vigiada de uma partilha. Ela telefona ao vizinho para lhe dizer de “um olho que a observa”, e o trabalho de destituição do metafórico quase nos leva a crer que ele é de fato simples. Ora, todo o cinema de Tsai jamais se deparou com um problema em assumir uma lógica da contaminação. Se a artificialidade dos números musicais nos aparece como algo que, no mínimo e ao máximo, une as canções amorosas melodramáticas ao prosaísmo de um extintor de incêndio ou de um espirro, a montagem bem soube se utilizar dessa irrupção cenográfica, típica da fortuna mágica musical. Ter outros acessos por visibilidades, neste caso, significa então simular por colagens, acrescentar gestos, realçar a determinação de efeitos.

Eles copiam os trejeitos com que a era de ouro da sonorização espetacular formulou amores dignos das simulações de romances pistoleiros, e não com menor labor o encadeamento coreográfico à miséria sanitária se adapta (re-produz) à simplicidade do ambiente para o qual a quarentena é antes habitat que exceção. Mais que uma vazante, esse buraco significa que a potência material de um atravessar se nos relaciona através de um transbordamento da visão: ver é ver sendo usado.

Cada episódio cantado acrescenta à seriedade diegética uma indiscernibilidade entre o que o passado pode recriar e o que a atualidade precisa fazer ressurgir, inventando. As interrupções não são mais fugas. Não são sequer interditos. Não acrescentam. Consolam, lembremos, e portanto não podem participar de um regime de veracidade, distorção, confusão ou apagamento, já que o consolo ameniza, desvia, reduz, sem por isso deixar de ser válido, eficaz, verossímil. Não é por acaso que o recurso televisivo é amputado até que só reste som, “informação” inútil, ou que o papel de higienização se transfigure de um amontoado de precauções até o comando disfuncional de uma sexualidade higienizada.

Se já não nos coabita um apocalíptico imaginado através de Tsai, com que suavidade ele não repousa nesses tempos distendidos por um ator que interpreta sempre o mesmo ninguém, tão alheio à própria caminhada à morte epidêmica que lhe sustém mais alimentar um gato com as mesmas latas de ração, mais chorar pelo buraco do que pelo lamentável enlouquecimento de seus semelhantes? Com que mecanismo simultâneo de espanto e deslumbramento se concebe, senão pelo impossível olho, que um carteado de canções de uma caricata estrela popular estaria à altura da sobrevivência com que um vizinho pode estender a uma mulher afogada um copo com água? São perguntas que só esse cinema conseguiu desvendar, porque só ele as propôs. A chuva, a grande pergunta da abundância da água. Ela chora copiosamente, mesmo quando o quarto já se encontra em vias de inundação. O apocalipse é essa brecha de uma dúvida desnecessária tornada lastro. Grandiloquente “e se…

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