Bacurau: desequilíbrios e assimetrias

Por Kênia Freitas

Antes

Uma das bases das discussões racializadas contemporâneas sobre os gêneros narrativos – em campos como o afrofuturismo e o horror noire (ou terror negro) – é a ideia de que gêneros como a ficção científica e o terror se fundam na projeção do medo branco da vingança dos povos e etnias historicamente escravizados, subjugados, desumanizados e colonizados. Invertendo de forma perversa a flecha da violência na produção simbólica, os filmes e livros de gênero tornam as pessoas brancas vítimas resistentes às opressões, perseguições e ocupações. Ataques vindos de um Outro imaginário/mágico/fantástico (as invasões alienígenas, os zumbis comedores de gente, os fantasmas e toda uma fauna de monstros). E também de um Outro localizado nos povos fora da codificação civilizatória branca – os bárbaros, os selvagens. O surgimento do western no cinema hollywoodiano realiza um processo semelhante de inversão histórica, colocando os povos indígenas como os selvagens/malvados dos seus primeiros filmes.

            Em Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, a narrativa de gênero (entre o western, o terror e a ficção especulativa de futuro próximo) é retomada agora em consonância com uma visão histórica de mundo pós-colonial: que localiza no colonizador branco, no caso o europeu-estadunidense, a figura do invasor violento. Desse ponto de vista, o filme é pedagogicamente literal e maniqueísta. Os personagens brancos são maus. São os vilões. Os invasores. Eles perturbam o curso da existência e da narrativa sobre o pequeno vilarejo de Bacurau. Seu signo principal e a justificativa de suas ações se forjam a partir de um discurso de subjugação racializada hierarquizante – em que os moradores de Bacurau estão aquém do estatuto de humano e alguns brancos são mais brancos do que os outros.

            Ao mesmo tempo (e essa sincronicidade de perspectiva é fundamental), dentro da tradição dos gêneros narrativos cinematográficos aos quais se filia, Bacurau é um filme que subverte o lugar do medo branco como premissa. Há na composição enunciativa do filme ao mesmo tempo uma literalidade da representação histórica pós-colonial e uma subversão da perversão das localização dos gêneros do cinema normativo.

            Desequilibrio e assimetria[1]

Essas são palavras importantes para se pensar Bacurau em sua construção interna de tempo e de encenação. O desenvolvimento fílmico do vilarejo e dos seus moradores parte de uma ideia de profundidade, de uma densidade da imagem e de histórias. À Bacurau não se chega com facilidade, é preciso estar no caminhão pipa com Teresa e Erivaldo, percorrer a via acidentada com caixões, sacolejar na estrada de terra. Há a projeção de uma vida, de relações familiares e de comunidade, de arcos e trajetórias pessoais em pleno curso: como seguirá o curso da vida comunitária sem Dona Carmelita?  Por que Teresa regressou? Acácio conseguirá de fato deixar de ser Pacote? Lunga e o seu bando sobreviverão à perseguição policial? Com essas aberturas de enredo, o início do filme demora-se então não apenas em nos apresentar e contextualizar a cidadezinha, mas também em criar essa atmosfera de densidade.

bacurau_comunidade

            Aos poucos essa espessura narrativa será atacada por imagens e sons de outra natureza – não mais da profundidade, mas da superfície: a caravana do prefeito Tony Jr com o seu jingle eleitoral chiclete, as imagens do drone/disco voador ou os sintetizadores roubados dos filmes de John Carpenter. Uma composição planificada que começa a se sobrepor como uma ameaça de compressão a espessura da encenação até então constituída, e que anuncia a chegada do elemento desestabilizador definitivo: o grupo de estrangeiros invasores brancos.

            Se para chegarmos à Bacurau vamos de caminhão pipa, até o acampamento dos gringos chega-se de drone. Sem sutileza, sem tempo de apresentação, sem arco, sem espessura. O grupo é acima de tudo uma imagem clichê: uma matriz pré-moldada na iconografia do cinema para reprodução, um amálgama das representações de homens e mulheres brancos, estadunidenses fascinados por armas, pelo extermínio, pela destruição de tudo o que não é espelho (e, às vezes, do espelho também).

bacurau-drone

            Da superfície à densidade, o filme engendra uma série de formas e regimes de representação e encenação: das atuações de atores não profissionais, passando pelas relações comunais, matutas e codificadas encenadas pelo núcleo de Bacurau à corporificação da imagem videogame dos gringos. Entre esses lugares, ficam personagens como o prefeito Tony Jr e o casal de forasteiros paulista-carioca. A chegada do casal ao bunker gringo marca um dos momentos de choque entre os universos (antes do confronto final). Em um mesmo espaço estão os dois, a senhora moradora local que serve ao grupo e os gringos. Cada um desses conjuntos existe e atua em regimes de representação diversos e as comunicações mostram-se truncadas, imprecisas. O gesto da senhora para oferecer água, a tentativa do casal de justificar as suas ações e o estabelecimento da hierarquia racial pelos gringos: nada disso está dado como consenso mínimo entre os conjuntos. Há um abismo de humanidades intransponível na diferença entre “people we pay” e “local contractors”. As formas de apreender e comunicar entre essas humanidades são diversas e, como o final da sequência nos mostra, não passíveis de sintetização.

            O ataque é então o encontro final da espessura densa da representação e tramas de Bacurau e da imagem de superfície dos invasores brancos. A estratégia de guerrilha da comunidade para não ser aniquilada passa justamente por saber desaparecer, esconder-se, retrair-se para dentro de si (para dentro da espessura). A comunidade retira-se do terreno de confronto aberto, faz com que os invasores esperem – tomando conta da temporalidade da ação.

            Para fora

            “A violência que presidiu ao arranjo do mundo colonial, que ritmou incansavelmente a destruição das formas sociais indígenas, que arrasou completamente os sistemas de referências da economia, os modos da aparência e do vestuário, será reivindicada e assumida pelo colonizado no momento em que, decidindo ser a história em atos, a massa colonizada se engolfar nas cidades interditas. Fazer explodir o mundo colonial é doravante uma imagem de ação muito clara, muito compreensível e que pode ser retomada por cada um dos indivíduos que constituem o povo colonizado. Desmanchar o mundo colonial não significa que depois da abolição das fronteiras se vão abrir vias de passagem entre as duas zonas. Destruir o mundo colonial é, nem mais nem menos, abolir uma zona, enterrá-la profundamente no solo ou expulsá-la do território” (Frantz Fanon, Os condenados da terra, p. 30).

            Frantz Fanon ao tratar dos territórios colonizados fala de uma configuração espacial de um mundo cindido em dois: o do colono e o do colonizado. Duas zonas geográficas de existência não compartilháveis. O processo de descolonização não passa pela ideia de integração ou síntese de mundos, mas de destruição violenta do colonizador e da sua zona. Enterrá-la profundamente no solo…

            Bacurau é um filme sobre a violência e com imagens violentas. Um posicionamento ético diante dessas imagens passa por se perguntar como a violência se estrutura, quais as suas origens,  os seus agentes e os seus pesos: na fúria do facão de Lunga? No tiro certeiro de Damiano? No assassinato de uma criança? Na eliminação de testemunhas? Na morte por interferência do jogo? Na chacina da fazenda? Na chegada dos brancos assassinos? No sequestro de Ângela pelo prefeito e sua trupe? Na retirada do mapa de um território? Na distribuição feita pelo Estado de mantimentos vencidos? Na criação de barreiras para interromper o fluxo do rio e tornar a água inacessível? Na tentativa de destruir as barreiras? Na perseguição do estado-policial do Brasil do Sul? Nas execuções em massa no Anhangabaú? Na transmissão em tempo real das execuções em massa no Anhangabaú?

bacurau-lungaTodas ações violentas. Porém, não simétricas.

  Ao final de tudo, vencido, cansado, Michael vê a comunidade de Bacurau reunida na frente da calçada da igreja que expõe as cabeças decepadas de seu grupo. Com desprezo e desaprovação, ele diz: So much violence. Há uma força que explode a diegese quando esse corpo de um homem branco, europeu, em tudo normativo, mesmo derrotado se sente capaz de enunciar um juízo de valor, que desautoriza a violência fora dos seus termos e do seu jogo.

Tanta violência.

Bacurau_micSoma

            Em sua junção de mundos, de formas de encenar, de perspectivas, de densidades rasas e profundas de imagens e sons, Bacurau resulta desequilibrado, incompleto, com tramas sobrepostas e outras interrompidas. Há um estranhamento diante de um filme que não é fragmentado, mas que também não se totaliza.

Mais do que uma suspensão ou esvaziamento da narrativa, nessa forma de se compor, o filme assume o corte abrupto diante do choque de perspectivas, de formas de invenção e fruição de mundo. Corte seco de um regime de encenação sobre o outro, da violência racializada, das desigualdades entre as partes, da fricção da invasão colonizadora com a resistência comunal. Assume-se sem síntese, sem neutralidade estabilizadora do encontro assimétrico. Os seus diretores produzem então, nesse desequilíbrio, um desdobramento ético e estético do filme que criam.

[1] Agradecemos ao texto da Carol Almeida pela invocação da ideia de assimetria no filme: https://foradequadro.com/2019/09/10/bacurau-de-kleber-mendonca-filho-e-juliano-dornelles/

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