Por Diogo Serafim
Esse dualismo estruturou a disputa entre o materialismo e o idealismo, a qual foi resolvida por um rebento dialético que foi chamado, dependendo do gosto, de espírito ou de história. Mas, basicamente, nessa perspectiva, as máquinas não eram vistas como tendo movimento próprio, como se autoconstruindo, como sendo autônomas. Elas não podiam realizar o sonho do homem; só podiam arremedá-lo. Elas não eram o homem, um autor para si próprio, mas apenas uma caricatura daquele sonho reprodutivo masculinista. Pensar que elas podiam ser outra coisa era uma paranoia. Agora já não estamos assim tão seguros. As máquinas do final do século XX tornaram completamente ambígua a diferença entre o natural e o artificial, entre a mente e o corpo, entre aquilo que se autocria e aquilo que é externamente criado, podendo-se dizer o mesmo de muitas outras distinções que se costumavam aplicar aos organismos e às máquinas. Nossas máquinas são perturbadoramente vivas e nós mesmos assustadoramente inertes.
Donna Haraway, O Manifesto Ciborgue
Reside na configuração ontológica da máquina um princípio fundador que abala nossas concepções de sujeito, comando e controle. O mito do ciborgue parte de uma apostasia heterodoxa que constantemente escapa das nossas definições imediatas que decorrem da sua imagem, uma lógica de comunicação que é desestabilizada pela noção de inteligência, exigindo uma repartição radical na sua configuração subjetiva. A linguagem do ciborgue trata não de uma linguagem do comum, mas de uma herética heteroglossia, como a própria Donna Haraway indica: a cultura ciborgue é definida mais em termos de densidades dentro de fluxos, um circuito que encontra pontos de inflexão nos seus percursos, uma profusão que converge na mesma medida que diverge na sua abundância. Em primeira instância temos a afluência de intensidades para encontrarmos em uma dimensão subsidiária a esta a sua constituição de corpos e vontades. Não é a consciência que dá lugar ao que está fora desta, e sim o encontro de consciências que permite a realidade tal como ela é, uma rede difusa de forças, campos e vetores postos em associação por um materialismo fundador, sempre se interseccionando e frequentemente colidindo.
De onde surgem nossos prazeres? Seriam eles ontologia ou cultura? A primeira conclusão essencial na compreensão de uma possível cultura ciborgue decorre diretamente do imperativo da construção, nada aqui é absoluto, é tudo programado. Se a ontologia fundadora do ciborgue é em si uma ontologia construída, submetida às relações de poder que a formataram, é sempre importante frisar que essa ontologia pode ser constantemente aperfeiçoada, é inclusive da sua natureza que ela seja constatemente otimizada com a cinesia insaciável da cultura e da política, sempre sendo redesenhada, reconstruída, reconfigurada.
É impressionante como Teenage Hooker Becomes Killing Machine in Daehak-ro (2000) é um filme sensorial, não apenas visualmente, mas também na sua trilha sonora. Se Évora, Veloso e Sakamoto entoam inicialmente uma atmosfera misteriosa e um sentimento irrebatável de isolamento urbano, logo Sun Ra e Huckle Berry Finn levam o filme para o domínio do deboche. Em seguida somos tomados por uma espécie de ascetismo perturbador com Saint-Saens, um desespero desestabilizador com Mozart e um estoicismo renitente com Fauré. Massive Attack denota uma esperança surgente e a curva final necessária para entrarmos em definitivo em uma estética mais propriamente próxima do cyberpunk, Gypsy Kings reforça uma ambiência misteriosa com um desvio para uma atmosfera de filme noir, enquanto Rutter é a tão aguardada emancipação. Primal Scream consegue finalmente concatenar toda a esquizofrenia narrativa, sensorial e formal em um tom conclusivo.
Uma jovem prostituta engravida do seu professor sadista em Daehak-ro. A lua é quem sela o pacto dessa concepção. A jovem menina, aparentemente desprovida de vontade própria e individualidade, carrega no seu utilitarismo empreendedor já uma figura de ciborgue servil, uma submissão voluntária à figura do seu mestre, quem a programou de acordo com os desejos e vontades próprias. Ela é o ciborgue reprodutor, ele é o ciborgue cuja função é controla-la de acordo com sua libido. Um é proprietário, o outro é comoditizado. Agora a mulher obediente, carregando uma criança no seu ventre que é fruto dessa relação hedionda com o pai autoritário, é violentamente assassinada.
Após ser reformada, a versão evoluída da prostituta enfrenta o seu criador com a única resposta possível, tendo que a base estrutural dessa relação é a violência. Agora em um corpo sem coração é capaz de reparar a violência a qual foi submetida com uma resposta binária. Colide na figura da mãe do professor, aquela que encapsula o egoísmo pleno, a aniquilação da força reprodutiva do filho criador, o filho deformado, o patriarcado reduzido na imagem de um monstro, a sua subsequente humilhação e uma nova ordem de dominação que é estabelecida com esse ato de vingança. Nos limites da violência ética, reside ali algum ímpeto asceta provido de toda a repugnância que nos foi exposta anteriormente, mas que de alguma maneira ainda nos é repulsivo, independente das suas possíveis justificativas compensatórias. Só podemos ter uma reflexão ética sobre a humanidade alheia no momento em que suspendemos o nosso juízo – talvez para aniquilar a injustiça deva-se aniquilar assim também a humanidade.
É como Adorno afirma em Minima Moralia: “O humilhado e o rejeitado apercebe-se de algo, tão cruamente quanto a luz que dores intensas lançam sobre o próprio corpo. Ele se dá conta de que no mais íntimo do amor cego, que nada sabe disso nem pode saber, vive a exigência do não cegado. Fizeram-lhe injustiça; disso ele deriva a demanda do direito e no mesmo passo é obrigado a abrir mão dela, pois o que deseja só pode provir da liberdade. Nesse infortúnio o rejeitado torna-se humano”. Poderia tornar-se humano o ciborgue, mesmo que partindo do abominável para tal?
O grande dilema é como construir uma cultura ciborgue que finalmente nos faça pensar a partir do nosso circuito, e não de seus capacitores desenergizados (ou excessivamente energizados, dependendo de como se queira estabelecer a metáfora). A solução é a violenta retirada desses capacitores ou há uma forma de também os reconstituir? Existe algo de irreversível no nosso processo civilizatório que nos impeça de pensar para além da violência, rumo a uma reparação plenamente ética? Há de existir alguma maneira de reestabelecer a humanidade a partir da humilhação do Eu, do confronto direto com a nossa pequenez deve surgir a nossa grandiosidade. Em busca de uma subjetividade sem sujeito, de uma heteronomia sem sujeição, em eterna reconstrução, sempre se aprimorando, sempre se aproximando do Uno.