A Mula (Clint Eastwood, 2018)

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Autor-retrato.

Ao comentar as obras de Hollis Frampton, autor do cinema de vanguarda americano, a pesquisadora Patrícia Mourão sugeriu o pensamento da fotografia como uma vitória do homem sobre a transitoriedade do vidro ao abordar a autobiografia em (nostalgia) de 1971. E complementa: “Tornar-se cineasta, é abrir mão de falar “Eu”; mas não por pudores moralistas ou humildade humanista, e sim por uma crença ética e estética de que os problemas mais interessantes da artes são formais e não subjetivos”. Em devidas proporções, obviamente, este pensamento é recorrente em A Mula, pois temos o autorretrato de Clint Eastwood tirado e exibido no além-superfície de um vidro não material, num filme que elimina a substância e o utiliza apenas como manobra imediata para associações do que é do espírito.

Os primeiros minutos de A Mula servem como um breve acerto de contas de Clint Eastwood com toda sua filmografia e reverberação: enquanto apresenta seu personagem Earl, Eastwood resolve a culpa, guerra, regeneração, cinema, atritos de formas e principalmente arremata questões que acercam um possível discurso nacionalista que sempre foi levantado durante sua carreira. Daí por diante, habemus filme. Filme este que é menos envernizado, que aproveita dos nuances que o digital oferece para certa frontalidade e da imagem altiplana, assim como seu 15h17 – Trem Para Paris.

Mais ácido, ágil e incisivo com a chamada quarta parede, A Mula é ciente do caminho ardiloso a seguir. Na medida em que desenvolve uma trama muito básica, de duas vias paralelas que envolvem justiça e moral, o que está mesmo no foco de Eastwood é como entre luz e sombras das cenas seu autorretrato é exibido, numa espécie de ruptura entre a superfície e os comentários mais aprofundados sobre a simples presença de Clint Eastwood como homem-referência destes complementos amargos, ao contrário do Sniper Americano, filme pouco discutido e muito acusado na época de seu lançamento e por ora esquecido. Não se trata de justificar a ignorância de um senhor de 90 anos no encontro de uma nova era na busca por redenção e sim de se utilizar de um exemplo ciente da performatividade do uso deste caminho como o melhor eixo para discussão, como um simples ponto de partida que um gesto ou uma palavra surtem a exemplo da arma feita de dedos de Gran Torino.

Earl – ou melhor, Eastwood, novamente, – é a América. Essa que guarda o preconceito e a violência na própria bondade. Que se escora na hipocrisia para uma salvação relâmpago e que guarda a santidade para seu próprio louvor em momentos críticos. Portanto, o que há ao redor esbarra no pastiche dos filmes de tráfico e de perseguições policiais. Bradley Cooper como Colin Bates aprimora a noção de um país sério que busca por justiça, como um paralelo ao glossário da vitória que Eastwood derruba nos limites da possível implosão que diversas cenas entregam – são elas que salientam afinal sobre um acerto de contas filosófico de Eastwood com sua pátria-amada.

O impacto de um discurso laborioso sobre este espelho, pronto para duramente refletir imagens que a interpretação foge sua real compreensão é imenso. Surpreende que seja Eastwood ainda a fazê-lo com tamanha artimanha e potencialmente ciente do alcance errôneo que terá e sabe como ironizar sua crucificação – com a noção que a exposição nunca pagará o preço necessário para sua afirmação.

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