Neorrevolução, ou a fadiga dos princípios
Por Felipe Leal
No princípio – estamos falando desta obra de particular e polissêmico nome “Sol Alegria” (2018) – dois estouros: 1) uma glória e 2) um tempo já suficientemente alardeado para não se representar com inerente sobrecapa um tanto engessada, sintomática, cansada. O presente de hashtags e neofascismos enquanto distopia atual – o futuro acinzentado já se enraizou aqui e está à espreita, como bem reitera sua cultura de palavriados resumidos e revoluções tornadas signos ao ar. Como bom esteta, Tavinho pinta-o bem. Chegamos, então, à glória: um travelling de prostitutas e travestis em despedida num porto no mínimo fassbinderiano. À luz escarlate desse tempo devasso e de ruínas implícitas, parecem santas em desfile imperial. Vão à Dubai e se despedem numa comicidade quase realista, o mundo do trabalho e o da sexualidade colidindo aos olhos de cobiça e travessura dos marinheiros internacionais de outrora-agora. Não há menores e maiores, todos são pulsantes pelos gestos que encarnam e torcem. Um inglês afetado, falado e interpretado ao ouvido risonho, atiça o pictórico de delírio já quase literalmente atmosférico. Há algo de Ray, de Fuller, dirão alguns.
Dito simplesmente: (só que) o sonho cai. Ou melhor: sobe em exageros ao olimpo dourado da utopia dentro da distopia. Como num slogan que não precisa mais se entrelaçar ao artifício, porque o enunciado agora é o próprio artefato replicado, tudo acaba por não só parecer, mas desejar o repetitivo do “hino” que já encapsula qualquer política ou ideal ou estética, dito de forma cada vez mais histérica. Há, claro, antes do Eldorado, uma fuga, neste caso da caretice, como não vem a surpreender também por escolha da repetição em dela se distanciar a todo custo. Todos riem abertamente o tempo inteiro, como se para espantá-la. Ainda no decurso de seu início, num frenesi de louras, luvas, maletas e tapa-olhos, até mesmo os planos, sobretudo eles, vibram nesse traço verdadeiro de uma liberdade que é não precisar anunciar sua própria expansão. Mas o motivo da queda repentinamente se revela, e numa outra queda semi-simbólica que é o último instante de vida não autoafirmada aos berros. A família à la Bonnie & Clyde, tendo os cadáveres de um pastor e piloto às costas, salta de paraquedas ao Sol Alegria das freiras e do solo fértil de maconha, pistolas e espingardas. Pode-se logo pensar que a questão que se impõe é uma de caricatura, mas, a bem da verdade, pouco importaria se esses ícones religiosos traficassem cinco outras drogas, órgãos, fadas ou literaturas proibidas. Permanece que a podridão do solo seja uma de não amadurecimento.
Outros pensarão que os ombros do próprio cinema também já pesam com seu histórico de tais signos cristãos pervertidos e desmontados em exímias “máquinas de guerra” (o termo é o brado final de Sol Alegria, não por acaso aplicado aos corpos), e poderíamos culpá-los em revirar os olhos? Não deveria importar, digamos, a facilidade trêmula de alguns e o escandaloso sísmico de outros? Pasolini, Ferrara, Powell & Pressburger, Norifumi Suzuki, Russell, Fellini, muitos de fato já fizeram o signo falar, e do vulgar esgarçado ao febril possessivo. E, no entanto, aqui, parece às freiras que lhe exigiram que atuassem como adolescentes recém-descobertos num universo de sensações cannábicas.
Distante sequer de qualquer binarismo “aquém/além” que possa colocar-lhe em perspectiva, se comparado ao efeito da materialidade de qualquer espécime de nosso cinema boca de lixo, Tavinho e Mariah, para criar um filme que se assume enquanto criador de alegria diante de tamanho momento de seriedade e conservadorismo circundantes, acabam como o estalo eventualmente irritante de um disco emperrado: a não ser que a esquizofrenia impotente, multiforme e colorida sirva de epifania estética, as cenas se seguem numa rota sem liga (é possível, hoje, afirmar assim tão facilmente que a liberdade do conteúdo extravasando para a forma, se mais arroubada por enunciados e justificada pela altura do grito do que propriamente tensionada, é suficiente para sustentar a teoria do filme louco de amor?). Pode-se até supor, com leveza, que todas as cenas foram criadas ali, no instante de uma euforia induzida de festividade e de riso diante de figuras estas também já cansadas. Por trás de toda comicidade deve haver algo de brutalmente sério na intenção, ou nem o circo mais encantado se sustenta.
Girando em torno de si mesmo em sucessivas reencenações de um espetáculo de quatro membros livres e pregadores da revolução pelo cu, pelo… pelo… livre?, pela arte, mesmo que poucos minutos antes tenha ele mesmo contrariado um demônio chamado art pour l’art, porque aparentemente ainda não conseguiu superar 1) uma ideia de sexualidade enquanto grande vernáculo, campo minado e resposta para todas as transformações mundiais, e 2) esse pestilento discurso que hoje podemos afirmar que sempre retornará, ele que diz que, uma vez permitidos todos os corpos para trepar e “ser o que quiserem” (são), e com quem bem entenderem, os sujeitos então se tornarão automaticamente libertos e felizes diante de si mesmos e para outros – porque ainda não superou toda uma sintomática infantilóide, ainda que pertinente na origem de seus apelos, Sol Alegria não consegue fazer outra coisa que não poetizar eternamente o sexo e o ar respirável, a juventude enquanto lugar de retorno e única e obrigatória potência criativa. O grande louro adornando a cabeça de seus jovens, os filhos, é a insistente oralidade sexual em belos contornos de vermelho e verde, como se ainda tentando resgatar o neon eternizante que reifica o apolíneo nos corpos – mas, mais uma vez, só belo, estéril –, de um lado, e do outro, uma porção de frases e vestuários que, tão logo se mostram expressivos e verborrágicos, não há como dizê-lo de outro modo, se exaurem, porque só resguardam a espetacularização da troca perpétua.
Está talvez tudo posto às clarezas: o filme é um eterno apregoar do camarim, do não-pronto, do carnavalesco, e ao eletrizar o passar de seu tempo entre a própria multidireção desnorteante que lhe é ontogênica e o vocabulário que, mal vomitado da boca, só consegue fazer cócegas nas rochas contra as quais batalha, assim se encerra: uma brincadeira entusiasmada e rica de termos para formulação, mas frágil em montar novos significados. Riem, riem, riem, beijam até que o corpo reaja seco. E o rear projection é esse símbolo derradeiro de um espelho incongruente. Reflete em transições e jogos cheios de artifícios dinâmicos, mas o que a face mostra são os rostos mastigados, remastigados, cuspidos e reaproveitados do bon vivant que não cria para ninguém além de si mesmo.