De sensorialidades e narrativas
Por Camila Vieira
Não deixa de ser curioso o longa-metragem gaúcho Música Para Quando as Luzes se Apagam (2017) estar classificado como documentário em sua ficha técnica. Se é possível absorver uma vontade evidente de aproximação com o real pela materialidade indicial dos vestígios cotidianos nas tomadas caseiras de câmeras portáteis, a composição das personagens e a relação entre elas parecem apontar para gestos ficcionais, criados pelo olhar de Ismael Caneppele, que estreia na direção de longas. Trata-se do encontro da mulher vivida por Julia Lemmertz – cuja presença jamais é identificada no filme – com a jovem Emelyn, em um jogo de incorporação da persona de Bernardo.
O interesse mútuo das duas personagens pela transmutação performativa não só reside no modo como se forja outra aparência – para uma, o ato de colocar lentes de contato, mudar a cor do cabelo; para outra, vestir-se com roupas largas e masculinas –, mas na vivência de uma experiência no mundo que é atravessada pelo borramento das fronteiras da identidade de gênero. Como o filme se liberta da rigidez identitária que poderia aprisionar as personagens, a própria estrutura narrativa não pretende deixar nada conclusivo sobre as diferentes subjetividades que se colocam em cena, constantemente reposicionadas em zonas de indeterminação. No lugar de abrir chaves encerradas de interpretação, o filme prioriza modos de estar no mundo pelo transbordamento sensorial.
O espaço em que este fiapo de narrativa se desdobra é uma pequena vila no sul do Brasil, que é dotada de uma atmosfera de melancolia e isolamento, bem próxima de Os Famosos e os Duendes da Morte (2009) – cujo roteiro é do próprio Caneppele. A emblemática frase “estar perto não é fisíco” está inclusive inscrita na parede do quarto de Emelyn, como se fosse o traço de um desdobramento daquela disposição sensorial explorada dramaturgicamente no filme de Esmir Filho. Em Música Para Quando as Luzes se Apagam, há ênfase no contato com a natureza: é nítida a amplificação de sons de grilos, sapos e cigarras nas derivas feitas à margem de pântanos. Dentro da imersão na paisagem, o filme abarca uma amplificação do potencial onírico dos encontros com outros corpos, como a longa sequência noturna com um bambolê de luzes neon.
O longa-metragem Vazante (2017), de Daniela Thomas, comunga também do interesse pela sensorialidade das imagens, mas procura se ancorar na rigidez subjetiva de seus personagens, marcados por papéis sociais bem definidos, dentro do contexto histórico de um Brasil escravocrata no século XIX. Com imagens em preto e branco, a fruição sensorial de uma atmosfera carregada e caudalosa – os inúmeros planos com chuva – aliada à paisagem imponente do interior de Minas Gerais é a porta de entrada para o mergulho em uma história trágica que procura explicitar as relações de poder e de exploração econômica e racial que demarcaram a formação do povo brasileiro.
Antônio é o tropeiro de origem portuguesa que desbrava territórios em busca do lucro, carregando escravos negros. Ao voltar de uma de suas longas expedições, encontra a mulher morta após o parto. A casa grande é ocupada por Zizinha, a matriarca que, depois da morte da filha, fica em estado de letargia e recebe cuidados constantes da escrava Joana. Filho de Zizinha e irmão da falecida, Bartholomeu retorna ao casarão com a esposa e as filhas para acertar as dívidas com Antônio, que detém a pose da fazenda e precisa lidar com a crise da extração do garimpo e a possibilidade de investimento em plantações e criação de gado em sua propriedade. Bartholomeu cede a filha mais nova, Beatriz, para casamento com Antônio.
Ao alinhavar uma narrativa com poucos diálogos e construída com blocos de sequência que se sucedem pontuados por cartelas negras, Vazante prioriza elipses e silêncios, que valorizam o gestual dos corpos e os olhares dos personagens em suas disputas e tensionamentos que se avolumam ao longo da trama. No entanto, a partir do momento em que se coloca ao lado do ponto de vista da jovem Beatriz – sobretudo durante o desfecho de maior carga emocional –, o filme enlaça um nó de implicação política: o trágico da questão racial no Brasil colônia é mediado pelo olhar de uma menina branca, como se apenas por meio dela fosse possível o espectador perceber o horror do massacre dos negros.