Por Arthur Tuoto
É mais do que evidente que a história do cinema de Hong Kong se confunde diretamente com a sua história política. Claro que poderíamos afirmar isso sobre qualquer país ou território, mas talvez por se tratar de um lugar onde a tensão política está, até os dias de hoje, diretamente ligada a uma constante crise de identidade – a ausência de uma cultura essencialmente nativa, visto a sua clara dependência cultural do império britânico antes do Handover e a sua turbulenta relação com o estado chinês após o Handover – Hong Kong invariavelmente se transforma nesse catalisador cheio de possibilidades onde uma cultura tradicional chinesa se mescla com uma influência ocidental cosmopolita.
Se por um lado o cinema de Hong Kong é marcado explicitamente por uma vocação de mercado, com direito ao seu próprio star system (diretamente ligado ao Cantopop) e toda uma gama de fórmulas e artifícios comerciais que vem se estabelecendo desde os anos 70 (com seu devido desgaste e crises ao longo dos anos, afetado inclusive por crises na economia asiática e uma atitude mais ofensiva de Hollywood no mercado distribuidor nos anos 90) é também mais do que evidente que a história do seu cinema, em algum sentindo, se dá justamente nessa busca política por uma natureza própria, um elemento autêntico que particularize toda a dimensão daquele território. Nesse sentido, podemos dizer que toda a lógica do cinema de Fruit Chan, que parte essencialmente de uma reorganização urbana e social da própria cidade de Hong Kong para conceber seus filmes, é uma das trajetórias mais singulares. Óbvio que não é simples comentar a carreira inteira de um cineasta em um simples artigo, por isso a ideia principal aqui é percorrer um panorama cronológico geral e direto sobre os filmes de Chan, mais como uma abordagem de apresentação àqueles que não conhecem seus filmes do que exatamente um movimento mais aprofundado.
Ainda que seu primeiro filme como diretor tenha sido a comédia sobrenatural Finale in Blood (1993), uma obra de tom francamente comercial mas que já dava indícios de uma inventividade plástica característica do cineasta, Fruit Chan aparece de fato no mapa cinematográfico de Hong Kong, e do mundo, com uma trilogia de filmes que ilustra, justamente, o momento recente político mais decisivo daquele território: o handover. Após mais de um século de domínio britânico, a região de Hong Kong foi, em 1997, devolvida para a China, atuando desde então como uma região administrativa do estado Chinês. É evidente que toda essa operação trouxe dos mais variados reflexos sociais e culturais para o território, e é basicamente dessa diversidade de relações e hesitações sobre o futuro, desse impacto sobre as pessoas e o espaço, que a trilogia de Chan vai tratar.
Made in Hong Kong (1997), o primeiro filme da trilogia do handover, ou trilogia de 1997, como também é conhecida, e oficialmente o primeiro filme independente produzido na Hong Kong pós-handover, não poderia ser mais direto. Protagonizado por não-atores, produzido com restos de película, inclusive restos de película já vencida, e dentro de um vigoroso esquema independente, o filme acompanha a vida de três jovens nesse cenário de plena incerteza: um coming of age com todo o tom político-apocalíptico que a circunstAância sugeriria. Além de toda rebeldia, angústia e anarquia de praxe em qualquer coming of age, os personagens aqui vivem o exato momento dessa crise de identidade pessoal que se confunde com uma crise de identidade nacional. E dessa resistência por uma nova identidade, dessa descoberta de si e do seu lugar no mundo, nasce uma experiência de juventude niilista e alienada, condenada a procurar por si mesma em um ambiente que sofre todo tipo de influência global, mas carece de uma autonomia elementar. Chan situa todo um estado de limbo que, querendo ou não, até hoje reflete nas incertezas daqueles que hoje são jovem em Honk Kong (a recente revolução dos guarda-chuvas, além de outros protestos constantes contra o governo central de Pequim, estão ai para provar isso.) É um filme que não deixa de lembrar muito o Dangerous Encounters of the First Kind (1980), do Tsui Hark, toda essa experiência de niilismo que nasce da resistência por uma busca de si mesmo é reencenada na figura sempre energética e muito dinâmica de personagens jovens. Mas se Tsui Hark sofreu com a censura em todo o seu subtexto que invocava revoltas anticolonialistas, Chan, além de ser igualmente mórbido em sua abordagem realista, consegue ser até mais direto em seus alvos, se dá ao prazer, inclusive, de fechar o filme ironizando um discurso de Mao sobre a juventude.
Já flertando com uma ideia mais direta de gênero, em The Longest Summer (1998), o segundo filme da trilogia do handover, Fruit Chan concilia uma trama policial com o próprio evento do handover em si. A noite do evento tem um papel fundamental na trama, além de basicamente reger as principais motivações de seus personagens, já que, muito mais do que as incertezas juvenis de Made in Hong, o que fica muito claro aqui é uma rejeição por todos os lados, tanto o britânico, como o chinês, por parte de cidadãos que tem a vida claramente afetada com a transição governamental. Nesse processo de fusão entre plot policial e contexto histórico, a espacialidade da própria cidade é sempre um elemento vital, seja em toda a sua geografia física onde o filme acontece (o homem sabe tirar absolutamente tudo e mais um pouco de uma cena externa), seja nesse acontecimento histórico em que ela é protagonista, em especial a noite da cerimônia do handover em si, que é retratada com um apuro visual e um senso de montagem em paralelo sem igual.
Bem mais singelo que os dois primeiros filmes da trilogia, mas ainda assim igualmente desolador, Little Cheung (2000) fecha essa série de filmes com uma narrativa essencialmente doméstica e assumidamente mais melodramática. A partir das relação de Cheung, um garoto de 9 anos, com uma família imigrante da China continental, vizinha a sua em um bairro de classe baixa em Hong Kong, o filme contextualiza muito das tensões imigratórias após a unificação com a China (essa mesma família iria voltar como protagonista, nesses mesmos papéis, em Durian Durian (2000)), além de uma certa estruturação trabalhista (existe um empregada doméstica filipina que também tem papel vital na vida de Cheung) daqueles que vão buscar uma renda melhor em Hong Kong. Apesar de se focar em um contexto mais popular (o cantor e ator Tang Wing-Cheung é quase um personagem vital na história) do que em um contexto objetivamente político, o filme deixa bem claro suas ligações mais do que implícitas.
Após a trilogia do handover, Chan parte oficialmente para uma segunda fase em sua carreira, marcada especialmente por um apreço pela fantasia que até hoje perdura em seus filmes e teve inicio nessa que ficou conhecida como a sua trilogia da prostituição. Durian Durian (2000), um filme que ainda preserva o realismo de seus outros trabalhos, pode até remeter diretamente aos filmes da trilogia do handover em toda a sua noção de intimidade com o espaço urbano e o seu movimento em evidenciar esse território que constantemente se reorganiza, mas além disso, temos aqui o primeiro filme em que Chan volta o seu olhar para China continental. O filme segue uma jovem chinesa que passa algumas temporadas em Hong Kong trabalhando como prostituta para depois voltar para a sua província na China continental com o dinheiro, onde tem uma família a sua espera e cultiva o desejo de montar um negócio próprio. Com certeza o fato mais marcante do filme é como Chan filma Hong Kong e a China continental de formas absolutamente diferentes. A primeira parte da narrativa, que se passa em Hong Kong, tem uma frontalidade e uma noção de minuciosidade com o espaço que, como já lembrado, remete explicitamente a seus filmes anteriores, ainda que aqui recusando um plot mais direto ou qualquer meandro exatamente dramático, se focando bem mais nessas ações coloquiais que definem aquele espaço. A segunda parte, que se passa na China continental, tem uma câmera sempre distante e gélida, além de elipses altamente desoladoras (quanto mais o tempo passa, mais o espaço vai engolindo a personagem), o que lembra muito o Plataforma (2000), do Jia Zhang Ke, tanto em alguns elementos diretos (o círculo de amigos na cidade pequena que de alguma forma exorciza suas ambições artísticas em um grupo de dança e teatro), como nessa mediação naturalista que preza por um contraste entre a impessoalidade da paisagem e os personagens que tentam se descobrir, achar algum caminho dentro desse cenário de impossibilidades.
O segundo filme da trilogia da prostituição, Hollywood Hong Kong (2001), é onde Chan começa a destilar muito mais diretamente todo o seu apreço pela fantasia, ainda que, como sempre, preservando um interesse político implícito. O filme mantém uma contextualização social que remete aos anteriores mas agora dentro de uma abordagem quase lúdica e fetichista. Chan parte das relações de um espaço de extrema desigualdade, uma favela na frente de um flat de luxo chamado Hollywood, e vai situando alguns acontecimentos que vão desde uma prostituta e um mafioso dando golpes em alguns habitantes da favela a uma família de açougueiros com uma relação proto-sensorial com os porcos que assam. Não existe o mesmo peso dos filmes diretamente mais políticos de Chan, mas essa relação entre fantasia e realidade social não deixa de ser muito bem mediada. Relação essa, aliás, que dominaria praticamente toda a sua obra a partir de então.
Bem mais emotivo do que a sua temática sugere, Public Toilet (2002), a obra que fecha trilogia da prostituição, parte de uma curiosa lógica coletiva dos banheiros públicos chineses para narrar a história de dois amigos em busca de uma espécie de milagre medicinal, cada um com seus motivos, e faz todo um tour bem particular pela Ásia (Coreia do Sul, India, China e Hong Kong) nesse caminho. O que fica mais evidente aqui, é como o diretor rearranja a sua abordagem formal a partir do uso do digital, prática bastante comum no início da década passado, quando vários cineastas deram início as suas primeiras experiências com o vídeo. Chan articula muito bem o digital com os elementos fantásticos do filme, se aproveita da maleabilidade do dispositivo e lança mão de alguns dos movimentos de câmera absolutamente excêntricos e inventivos, sempre com uma dinâmica muito bem aliada aos elementos surreais da trama.
Após essas duas trilogias que lidam frontalmente com um passado e um presente histórico de Hong Kong, o diretor parte para obras que por um lado até lidam com todo um antecedente político implícito, mas compartilham de uma autonomia maior, dialogam, talvez, mais diretamente com uma cinematografia mundial de gênero, em especial o terror e o suspense. Dumplings (2004), espécie de terror psicológico com uma vocação deliciosamente gore, até situa todo um meandro social e uma relação de classes que é vital na sua narrativa, mas toda a dinâmica do gênero aqui é mais marcante do que qualquer outra coisa. Curioso é que mesmo nessa lógica de flerte gore – a trama envolve pessoas que comem fetos para rejuvenescer – é talvez o filme mais “charmoso” de Chan, ou um dos mais estilizados dentro de uma dinâmica de enquadramento e cor bastante elegante, muito devido a fotografia de Christopher Doyle. É um pouco como se Doyle trouxesse uma precisão na abordagem formal normalmente mais extravagante de Chan, com certeza é um dos filmes mais econômicos do diretor, tanto dramaturgicamente, como na relação mais contida (ainda que de rompantes sempre inventivos) na relação da câmera com o espaço.
Ainda nesse clima mais elementar do gênero de horror, em 2009 Chan foi contratado para refilmar nos Estados Unidos o filme de terror japonês Joyû-rei (1996), do Hideo Nakata (mesmo diretor de Ringu (1998), filme que deu origem a The Ring (2002), das mais bem sucedidas adaptações de j-horror para Hollywood). E não deixa de ser meio extraordinário constatar como Don’t Look Up (2009), a refilmagem de Chan de Joyû-rei, pega os caminhos mais errados possíveis ao adaptar o seu original. É como se o diretor se entregasse, ou de alguma forma até fosse forçado, a toda uma abordagem americanizada b, com direito a atuações absolutamente histriônicas, produção barata mais do que evidente e efeitos especiais ruins, todo um combo que atinge uma superfície de obviedades legitimamente curiosa. Nem que seja por uma curiosidade cinéfila mórbida, o filme tem lá a sua capacidade de prender o espectador ali basicamente para saber até onde eles vão com aquilo. E, bom, eles vão longe.
Se em praticamente todos os filmes de Chan, seja os mais explicitamente políticos ou os filiados a uma ideia de gênero, existe essa subversão da cidade como uma tentativa de compreendê-la (da reorganização cultural e urbana da trilogia do handover aos submundos da trilogia da prostituição), essa revirar de espaços e classes para ir articulando toda uma noção histórica contemporânea muito única de Hong Kong, com certeza o seu recente Midnight After (2014) é um dos casos mais apocalípticos até aqui. Como de costume nessa sua fase atual, o diretor concilia vários elementos fantásticos e de terror com um questionamento moral e uma atmosfera de alienação, atmosfera essa que aqui ganha novos ares pós acontecimentos recentes no continente asiático como o acidente em Fukushima ou, ainda, acontecimentos que marcaram a década passado e mais especificamente Hongk Kong, como o SARS (a síndrome respiratória que alarmou a região em 2003). Tudo isso dentro de uma trama que, à moda de Lost, envolve passageiros em um micro-ônibus que se descobrem dentro de uma realidade apocalíptica, sempre preservando uma relação direta com a cidade, além de todo um pacote de elementos surreais que envolve números musicais, efeitos especiais b e um humor claramente bizarro. O mais incrível é como o filme consegue refletir sobre tantas questões sociais universalmente implícitas, de uma relação entre individualidade e coletividade nesses grandes centros populacionais asiáticos a toda uma selvageria humana que se revela fora de um ambiente institucionalizado por leis – existe uma cena onde um estuprador é julgado e castigado que definitivamente é dos momentos mais fortes do cinema de Chan – sempre mantendo esse tom surreal e, por que não, até meio genérico, ainda que altamente inventivo, dentre as suas mil referências cinematográficas e fantásticas que vão surgindo ao longo dos minutos.
Podemos dizer que Hong Kong, em algum sentido, é uma espécie de sobrevivente cultural de si mesma. Uma região que hoje sofre com um constante antagonismo na própria noção de liberdade de seus cidadãos e se viu parte de toda uma revolução cultural claramente comercial ao longo da sua história como paraíso capitalista, é capaz de nos presentear com uma cinema tão variado quanto absolutamente inventivo. Se no ocidente apenas nomes como Wong kar-wai, John Woo ou Johnnie To são mais comumente citados, temos, além de Fruit Chan, toda uma gama de cineastas do calibre de Ann Hui, Patrick Tam, Yim Ho e Tsui Hark, que desde os meados dos anos 70 e 80 vem construindo uma obra de caráter autoral que ao mesmo tempo que é ligada diretamente a um contexto cultural chinês e honconguês, são capazes de todo o tipo de façanha cinematográfica, desafiando, inclusive, tanto uma lógica de gênero como uma vocação de mercado e, o mais importante, estão sempre prontas para serem descobertas.