Por Arthur Tuoto
Em tempos de Birdman e outros chorumes auto-conscientes de Hollywood, fica até difícil para o cinéfilo mais desavisado localizar Maps to the Stars em meio a um circuito de sacadinhas pretensamente críticas e investidas cínicas afins. Não deixa de ser um alívio constatar que Cronenberg funda toda a sua dimensão analítica sobre uma base mais do que superficial. Ou pelo menos, assim como talvez em grande parte de sua obra recente, o diretor parte dessa base aparente e explícita, escancarada e muito frontal, para atingir as vísceras mais elementares da sua temática alvo.
É até um pouco previsível constatar que o filme venha sendo recebido como uma espécie de crítica caricata ou sátira mordaz. Até concordo em algum sentido com a questão da sátira, mas me parece que o filme está muito mais interessado em partir de uma ontologia evidente de toda essa superfície hollywoodiana, do que exatamente em uma caricaturização extrema. Cronenberg lida diretamente com algumas questões já mais do que implícitas naquele universo, a caricaturização já é da natureza daquele mundo, o filme apenas pega todo esse drama especulativo da fama (a mais pura e primária narratividade de um E! Television) e evidencia um espaço que já é constantemente aterrorizado por uma iminência: a iminência de um escândalo, de uma difamação pública, de uma fotografia vazada. A família de Benjie, o astro teen sociopata que tem a arrogância como parte de seu DNA, já é envolta nesse constante senso de sobrevivência, esse survival film doméstico das aparências que precisa preservar a todo custo um sucesso capitalista da exterioridade, manter cada coisa em seu devido lugar nessa mais do que calculada engenharia social do show business.
O espectador acostumado com aquela velha piscadela charmosa no que diz respeito aos filmes de Hollywood sobre Hollywood pode até se assustar com o imaginário deliciosamente barato de Maps to the Stars. Aparições novelescas, imaginário incestuoso e toda uma gama de espectros sobrenaturais reprimidos. Mas não seria justamente desses ingredientes já essencialmente B que se alimenta toda essa especulação da difamação? Cronenberg apenas os assume com a devida franqueza. Essa lógica social dos bastidores que por si só já é a maior das encenações, com suas festas-rituais, suas pequenas orgias e seus hábitos excêntricos. A frontalidade com que a câmera filma a personagem de Julianne Moore nada mais é do que a evidência de uma abordagem livre de artifícios, desarmada, exposta simplesmente, que está interessada em um registro fundamentalmente cotidiano, por mais bizarro que ele seja. Frontalidade essa, aliás, que só reitera a aptidão de Cronenberg para o digital. O filme usa e abusa de toda sua profundidade de campo cristalina e da limpidez da alta definição para subverter uma certa estética higiênica, e invariavelmente publicitária, do vídeo. Justamente por assumir essa nitidez extrema, essa lógica encenativa de corpos tão evidentes, já muito presente na fotografia digital de Cosmopolis, Cronenberg consegue conceber uma aproximação explícita quase que livre de uma intervenção estilística. Nada mais apropriado para esse ambiente luminoso e ultra impessoal de arquitetura conceitual, camarins-trailers genéricos, espaços meditativos e todo tipo de picaretagem zen.
Mesmo o fato do filme ser estrelado por atores como Robert Pattinson e John Cusack, uma estrela teen em um franco processo de ressignificação e uma estrela mainstream mais do que genérica, já nos dá uma dimensão histórica de um cinema que se auto-evidencia ao mesmo tempo que se recicla, que parte do seu próprio imaginário para conceber novas dimensões autorais, quase o reconhecimento de uma vocação industrial auto-sustentável mais do que conveniente. E Cronenberg, feito o autor dentro do sistema que ele é, se aproveita muito bem disso. Até a figura de Julianne Moore, que em um primeiro momento parece reencenar o seu próprio arquétipo do descontrole já mais do que popularizado, consegue se renovar frente a lógica frontal de Cronenberg, frente esse escancaro anatômico íntimo. Aliás, se Iñárritu precisa de toda aquela pirotecnia deslumbrada para refletir sobre uma certa divindade decadente das celebridades, aqui uma simples e bela Julianne Moore peidando em uma privada com toda a espiritualidade que lhe convém já faz muito mais!
Talvez o único momento de fato mais simbólico do filme, quando ele ultrapassa a sua vocação ontológica e assume uma fantasia, ainda que seja uma fantasia que nasce diretamente dessa realidade surreal e grotesca, desse mundo fictício tão bizarro justamente por ser de algum modo fiel aos fantasmas de um mundo real, é a cena da autocombustão. Um corpo que se anula e se auto-sacrifica pela culpa? Mesmo todo o pano de fundo piromaníaco do filme já nos dá dimensão de uma natureza destrutiva que rege a vida dos personagens. Até mesmo o instinto de preservação dos irmãos, que se casam entre si quase como em uma tradição da realeza que precisa ser conservada, é um ato final suicida. Seria então a autocombustão a imagem final do corpo que, enfim, se rebela contra si mesmo? Aquele que só encontra a salvação no seu próprio aniquilamento. Se um impulso de destruição, em sua essência capitalista, é também um impulso criativo, que destrói antigas demandas apenas para criar novas, não seria esse o princípio básico da indústria de entretenimento? Destruir para reinventar. Reinventar para destruir. Um ciclo natural que se renova com uma rapidez cada vez maior, dispensando elementos em voga apenas para substituir por novos. Em suma, uma obsessão pelo próximo, pelo mais novo, uma fixação pelo futuro que nada mais é do que uma obsessão pelo poder. Se o próprio Cosmopolis já nos deixava isso mais do que claro em toda a sua literalidade, Maps to the Stars não deixa de ser uma espécie de continuação ideológica, convicta em sua inclinação anárquica e impiedosamente verídica.