No Silêncio da Noite (Nicholas Ray, 1950)

Por Luis Henrique Boaventura

1. Uma história de violência

A despeito da fúria que os toma como uma doença, os homens de Nicholas Ray são frágeis feito crianças, vulneráveis às iniquidades de um mundo que se recusa a abraçá-los. A resposta ao deslocamento, como quem responde a um pai, é sempre um cavo grito de cólera. Não há nada de inexplicável na raiva que Dixon sente, ela é apenas o desespero dos solitários, aqueles que em verdade ninguém narrou como Nick Ray (por se tratar em muito de narrar a si mesmo). Como para Jim Stark, Jim Wilson, Ed Avery, Johnny Guitar, a violência de Dixon é faísca do seu descompasso para com esse mundo que não o reconhece. A primeira cena de No Silêncio da Noite tem nos olhos de Dixon, refletidos no retrovisor, o único alento humano em contraste com a frieza da cidade que corre do lado de fora. Asfalto, pessoas, luzes, prédios, e dois olhos perdidos no espelho de um carro, último elemento relacionável do quadro. “É possível ser sozinho na cidade”, diz Ida Lupino a Robert Ryan em Cinzas Que Queimam. Dixon procura ir à forra com qualquer um que cruze seu caminho porque todos são estranhos a seus olhos, vultos incomunicáveis, miragens que povoam um lugar desolado, uma terra estrangeira (mesmo e principalmente as amizades que o cercam, rostos torpes e indistintos na noite). É por isso que Dix passa a vida procurando esta mulher de quem, como ele mesmo diz, não sabe o nome, não sabe como se parece, não sabe onde encontrar. Diferente dos vagabundos habituais do film noir, homens doentes, aleijados emocionais, Dix é um romântico em busca de alguém como ele nesse deserto, alguém que seja capaz de reconhecê-lo na neblina.

2. Inocentes

Há somente dois personagens livres de qualquer culpa em No Silêncio da Noite: Dixon e Mildred, a garota assassinada. No noir de um modo geral, mas principalmente nos filmes de Nicholas Ray, o mundo não é apenas um lugar hostil, é em si mesmo uma entidade maligna. Dixon e Mildred são vítimas de uma ordem que não permite a esse universo criado por Ray o cultivo do belo. É bobagem pensar, por exemplo, que Dixon poderia encontrar e, além disso, permanecer com sua amada para o resto da vida. Só lhe é concedido o encontro para que ele possa provar da perda, de uma dor que ainda não conhecia. Não há lugar aqui para a redenção, para o que é limpo; tudo está submetido a essa concepção draconiana das coisas, que tritura os corpos entre suas engrenagens. Nada pode a força humana contra a impiedade dessa máquina. É por isso que a única personagem pura, tola e genuinamente feliz em No Silêncio da Noite é morta com quinze minutos de filme.

3. Ponha-me na cama

Dixon tem a companhia de quatro personagens ao longo do filme: Charlie, o ator decadente, Brub, o velho parceiro da guerra, Mel, seu devotado agente, e Laurel, a mulher que ama. Brub se aproxima de Dix porque tem um caso para resolver, Laurel (ainda que venha a se apaixonar) quer apenas deixar de ser uma atriz de segunda, Charlie o visita uma vez por semana pra conseguir uns trocados, e para Mel, o único que parece nutrir uma legítima preocupação por ele, não se sabe até que ponto vale a amizade pelo homem ou o interesse pelo talento do cliente. Todos os quatro desconfiam dele, todos armam pelas suas costas. Brub o convida para jantar esperando lhe arrancar alguma pista, Laurel planeja fugir acreditando ser ele o assassino, Mel não hesita em roubar de sua mesa, sob um pretexto afiadíssimo, o roteiro pronto e levá-lo ao estúdio enquanto ainda é tempo. Não se sabe bem até que ponto Laurel e Mel estão cuidando de Dix ou de si mesmos. Enquanto isso, Dix parece ser o único a não desconfiar de ninguém em falso, o único em No Silêncio da Noite que é claro em todas as suas ações, seja no momento de se entregar sem volta a uma mulher ou em não esconder um impulso de raiva para o benefício dos presentes. “Diga para procurar um homem como eu, mas sem o meu senso artístico”, é como ele se despede de Brub na noite do jantar. Dix é uma presa fácil no mundo porque é o único personagem transparente, incapaz de não ser rigorosamente o que de fato é. Por isso precisa de proteção, por isso a cena em que Laurel, Mel e Charlie o colocam na cama para dormir, com um versinho de ninar e um beijo de boa noite, é o momento-chave de toda a epopeia de Ray em torno do homem solitário.

4. Um copo de cólera

Muito da beleza nessa solidão está na rejeição absoluta dos seus heróis, isolados inclusive do próprio espectador. Há essa [falsa] troca de protagonistas em No Silêncio da Noite. Começa de fato quando Laurel é convidada à delegacia pela segunda vez, sozinha e às escondidas de Dix (a quem ela deixou dormindo). Inadvertidamente, Ray faz de nós cúmplices de uma suspeita que só ganha forças com o passar do tempo. A cena da briga no asfalto é o argumento final para condená-lo, quando ele afasta a mão para alcançar uma pedra na beira da estrada e seus olhos (um Bogart à margem de qualquer comparação) se acendem como duas tochas. Até este momento vemos Dix cada vez menos enquanto, por outro lado, acompanhamos Laurel em tudo o que ela faz. Sabemos dos seus segredos trocados com a massagista, do pedido de socorro à mulher do sargento, de detalhes do seu passado. Conhecemos todos os seus medos. Dix, ao contrário, não nos deixa saber se sua próxima reação será um sorriso ou uma explosão de raiva. É quando Ray disfarçadamente torce os gêneros e, a um noir que já passava da metade sem um antagonista definido, a ideia de Dix como assassino e Laurel como a vítima em perigo passa a fazer todo sentido.

5. Uma cena de amor

Dixon e Laurel estão na cozinha. É uma bonita manhã, uma luz morna invade o quadro por todos os lados. Ele prepara o café enquanto ela ainda se esforça para acordar direito. “Qualquer um que nos visse agora saberia que estamos apaixonados”. O que faz desta uma das cenas mais belas e terríveis que Ray já filmou é o segredo que o espectador compartilha com Laurel. É saber da dúvida que a assombra, que a faz amar e temer o mesmo homem, porque nós o tememos também. Estamos do lado de Laurel agora. Ray aproxima a câmera de seu rosto a cada sobressalto, os acordes da trilha pesam a cada expressão de medo nos seus olhos e marcam um suspense muito bem definido: a tensão, a iminência de perigo; dois personagens em cena, um a ameaça, outro o ameaçado. Se todos os amigos de Dix voltam-se em segredo contra ele, nós não deixamos por menos. A ação que se segue é acompanhada com o público como cúmplice, levado junto de Laurel ao agente de viagens, sabendo do seu plano de fugir antes do casamento, sabendo da armação entre ela e Mel para que Dix receba a notícia do melhor modo possível (e para que eles possam se safar mais facilmente). Na cena da comemoração do noivado, com todos reunidos no restaurante, o espectador é um a mais na mesa que sabe a verdade e sabe o que todos escondem de Dix. Por alguma trucagem maligna que Ray enreda, também nós damos as mãos no conluio para enganá-lo.

6. Une femme est une femme

Se por cânone no noir a femme fatale é a perdição do homem, o objeto introduzido para instaurar a desordem, aqui ela surge como salvação de uma alma em ruína. No Silêncio da Noite é uma espécie de verso no tecido do film noir, onde vemos as coisas em oposição ao que são realmente, como deveriam ser, mas que conduzirão ao mesmo velho destino dos homens sem esperança da linhagem de Lang, Tourneur, Preminger. Dixon, como ele mesmo diz na fala mais icônica do filme (“… I lived a few weeks while she loved me.”), estava morto até encontrar Laurel, e só depois de se apaixonar sua vida volta aos eixos. Poderia ser qualquer um, mas que se pegue Almas Perversas de contrapeso, este noir definitivo: o homem comum com uma vida comum que entra em colapso quando esbarra em uma mulher na rua. Dix, ao contrário, volta a trabalhar, volta a sorrir, volta a fazer planos. Tudo isto para terminar não muito diferente de Edward G. Robinson no filme de Lang: apagando-se num fade out enquanto caminha de cabeça baixa para fora do quadro. Ambos têm a chance de provar da felicidade só para despencarem de um lugar mais alto, a única diferença é que Lang deixa isto bem claro em Almas Perversas. A femme fatale de No Silêncio da Noite é extraordinária porque nos tem do seu lado a maior parte do filme. Ela nos confidencia seus segredos, divide sua aflição, seu medo, até que a decisão de fugir e de magoar Dix deliberadamente passa a fazer sentido ao espectador.

7. Adeus, Dix.

Mas a personagem de Gloria Grahame não é a respeito de maldade e premeditação como a de Joan Bennett, ela é apenas mais uma vítima, e é esta absolvição final que faz de No Silêncio da Noite o mais belo e o mais triste dos filmes, uma nota sobre a perda, sobre o que não tem mais volta. Quando Laurel atende o telefone e fica sabendo da inocência de Dix, e os dois se olham por uma última vez, fica claro que, por um leve desencontro, diabrura do tempo, já é tarde demais. Como se a vida lhes fosse arrancada do corpo neste instante, ambos sabem que perderam um ao outro, que a pessoa pela qual se apaixonaram já não existe mais. Há agora um vácuo, um vulto, mais um rosto indistinto na sombra como todos os outros do reino de Dix, o nooble prince que só tem a própria vida a governar. E ele sabe agora, na calma do olhar derradeiro, que a culpa não é de Laurel. Culpa-se o mundo, númen maldito contra o qual não há refúgio ou artifício. E em face do amor desfeito, Dixon retira-se solenemente para o esquecimento de um fotograma escuro, porque a romaria dos homens toma o rumo certo nessa hora: de volta à estrada onde começou, vai diluir-se na velha correnteza urbana, no ventre oco do mundo, no silêncio franco da noite.

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