Plano de metamorfoses (ou o equívoco de nossa nostalgia)

Por Ranieri Brandão

De imediato, sempre nos referíamos com estranheza diante do tríptico cronenberguiano mais recente, lançado entre essas duas décadas lancinantes em que também espalhamos, pelas vias das mil geometrias do estilhaço, nossos tortos passos de palavras endereçadas ao cinema. Por isso, é vital voltar a David Cronenberg, a esses três filmes conectados por uma certa coerência na (dis)posição do olhar. Coerência, dirão, num primeiro momento apaziguadora, até. O discurso: preguiça típica e necessária à reconciliação com o mundo, dentro do mesmo conforto atordoante no qual, ao atirarmos as primeiras pedras maliciosas por sobre as superfícies desta “trilogia”, nos fez descobrir a fragilidade das vidraças que guardavam em segurança nossas eretas e ejaculantes antenas prontas para a captura da encenação.

Nossa simbologia maior, ofuscada pelo excesso de conhecimento, apontava, simultaneamente em Marcas da Violência, Senhores do Crime e Um Método Perigoso, para o ponto mais “limpo”, mais “transparente” possível, e também para um indesejado retorno nefasto, supostamente criminoso, aos pecados e percalços de uma escrita conformista que de todo não daria conta nem faria vulto (nem fundo digno) a um traço/assinatura tão comumente brutal. Enroscados nesse raciocínio, chegávamos ao coração da mais inesperada nomeação datada: “Cronenberg, o clássico”. “Clássico”, palavra prostituta, da pejoração, claro. Do traidor rendido que nos abandona e que só nos dá um pouco da “velha” (meta)física esguichante na sequência da luta na sauna, em Senhores do Crime.

Erro crasso (e “crássico”) das tautologias: esse que dá nome a uma “linguagem clássica”, do “contar clássico”, do “plano comportado”, do “corte invisível”. O clássico não é outra coisa senão o moderno e seus graves desvios de personalidade, seus eternos retornos à intensidade, ao mundo corrompido em cacos de cenas-no-presente, eterno presente de uma arte — fatalismo e polêmica meus! — ainda “ignorada”. E ignorávamos então, coisa explícita agora, os caminhos que Cronenberg percorria, animal premingeriano e doentio da imagem, ao menos desde A Hora da Zona Morta, naquela cena que parece ser uma reencenação visual e visceral do assassinato de Lincoln (logo: há momento perfeito mais clássico-traumático e histórico para ser refeito com as tintas do gore? para ser mantido, ad eternum, na infinitude do presente?), onde um homem morre num falido palanque de comício político. Procedia-se, já aí, a uma montagem cristalina, quase cega (diremos, nós do lado de cá da cinefilia, do “olho a mais”: opaca, linda, categórica, “didática”), para registrar as coisas mais absurdas, as mudanças mais antropofágicas, as loucuras mais gráfico-oníricas do pesadelo. A Hora da Zona Morta era o filme sintomático em que se enxergava muito. Enxergava-se tanto, tanto e em excesso, que se pré-via o roteiro como movimento voluntário e autofágico do olhar (a doença do personagem de Christopher Walken). Já era “clássico” desde os créditos, com o título emergindo em negativo. Os cegos, portanto, éramos nós.

E é a cegueira quem faz com que se empreenda a remontagem arqueológica de toda uma história de encenação declaradamente sedutora e erotizante, para corrigir essa visão (míope, astigmática, o que seja) tardia. Porque o plano, em Cronenberg, e em especial em seus últimos três filmes, é o local da perversão (da delícia não-interdita) do campo/contracampo — e, ainda mais, é o espaço que observa a transformação, trágica e irretornável, dos corpos dos protagonistas. Se o cinema clássico existe sobretudo na presença do contracampo (a prova: dois seres existem porque se ouvem, porque o som toca suas silhuetas, suas formas, e volta), o que falar de Cronenberg, quando no que há de melhor em seus filmes um único ser se parte e se desmembra em dois, em luz e em sombra, em máscara e em seguida no fim violentíssimo desse frágil recalque mantido imperturbável durante tanto tempo, tudo encenado nesse mesmo espaço-objeto que é o corpo do ator? O que se entendia como “horror Z” ou coisa tola que o valha, nesse cinema, é justo sua enorme ironia, seu avassalador golpe de vista corrompida, que coloca no centro e na gravidade do plano a depravação de naturezas: o registro direto, macio, das oscilações deformadoras nos corpos do mainstream, e nessa entidade absoluta que em algum momento se tornou o plano, como tela para a mise en scène.

Mas isso não basta, nunca nos bastou e nunca nos satisfez totalmente. Cronenberg, perverso, reveste a linguagem “clássica” do mistério demoníaco de carregar em si não mais os velhos corpos de cinema (entenda-se, corpos da Beleza: Grace Kelly, John Wayne, Cary Grant, Ava Gardner, Catherine Deneuve…), mas outros corpos (Jeff Goldblum, Jeremy Irons, Viggo Mortensen, Naomi Watts, Keira Knightley — o “novo clássico”?) a se decomporem, a se estriparem no quadro, vomitando os restos orgânicos de sua parca matéria já morta ou afetada pelo poder incontível da mente, das coisas que ela controla e transmuta em forma prestes a desaparecer por meio da força e da violência (tele)cinética (Scanners). Se há essa tradição do horror no cinema de Cronenberg, é porque nele se manifesta a linguagem de (e do) sempre, instalada com toda a insânia na íris fatal do gênero, em sua clínica e pulsional obsessão: pois o vício e o transtorno do terror, a folha em branco fundamental aonde ele escreve seu olhar, é o corpo humano a explodir de dentro pra fora, vítima de todo tipo de ulcerações, de lacerações, e a observação disso em trânsito e em fluxo sanguíneo. O horror toma forma aí. Logo, ele faz o somático tornar-se corpo, ser representado nele (no Belo de sua eliminação total, em seus últimos espasmos), na pura carne podre posicionada no plano, como se os personagens de todos esses filmes estivessem em putrefação enquanto estão vivos. Processo de milésimos de segundo, que, em Cronenberg, tem a duração e o rigor cruel de cenas inteiras sobre tratados de escatologia.

Daí nascem duas ou três imagens perturbadoras, pelo menos: aquela do duplo Jeremy Irons, no papel de dois irmãos em Gêmeos — Mórbida Semelhança, laçados por uma faixa (uma ponte? maldito umbilical fraterno) de pele horrenda, siameses que colocam, na composição dessa maquiagem decomposta, o mistério de tal afecção: o terror de nascer um, em dois, partidos, imprescindíveis; aquela outra, talvez tão assombrosa quanto (ou tão viciosa quanto), de Keira Knightley em Um Método Perigoso, esse grande filme de desvios patológicos que reverberam no plano: seu contorcionismo, sua possessão, sua vagina umedecida pela humilhação paterna; e ainda a de Viggo Mortensen no instante de sua revelação em Marcas da Violência, quando não é mais possível conter a persona construída e tudo vem abaixo num rompante de fúria. Dupla, tripla perversão das visões do “clássico”, ou, para dizer o que é claro, pura perversão daquilo para quê o clássico olha.

Objetos, vidros, degraus, espelhos, travellings, cortes. A cena e seus elementos mais verborrágicos em Cronenberg são úteis senão para o gozo de uma arquitetura do perverso. Da transfiguração “de valores”, mise en scène carregada de ditos a respeito de outros sentidos para as formas. Porque o clássico sempre foi tudo aquilo que o Mal remodelava com suas mãos. Daí as lógicas “tortas”, as excentricidades estáveis, as reencenações intermináveis do drama e das coisas: do sexo, em Crash — Estranhos Prazeres; dos encontros sexuais pesadíssimos (“sadomasô”) de Jung e Sabina, em Um Método Perigoso; dos materiais cirúrgicos, verdadeiras obras de arte, para destruir qualquer vagina trifurcada e viva como objeto de obsessão, em Gêmeos; do corpo irreversivelmente tatuado do policial infiltrado na máfia russa, essas tatuagens aparecendo como marcas físicas e visíveis de uma outra persona inventada, em Senhores do Crime. São todos fragmentos do fetiche cronenberguiano por um “desenho a mais”, um movimento a mais, um desequilíbrio a mais da suposta paz clássica que erradamente tanto se reivindicou, componente que, em pequena pitada, transforma o comum em exceção, o amor em psicose, o real em delírio. Um gene a mais, um gesto a mais, só um, e a doença da distorção estará à espreita no próximo plano.

O que ofusca nessas três obras-primas recentes de Croenenberg é a parafilia de nossa nostalgia do clássico. Gozamos por amor àquilo que ele não é — ou, sei lá, que ele talvez não seja (“inocente”). Parafilia que o reconfigura e o incrusta, numa imagem polida e central, espécie de leito materno inviolável e de local nada maculado, a “linguagem” que nunca viu o horror de frente. Para negar isso, lembremos um procedimento banal para nossa cinefilia anos 2000, às vezes tão cheia de saudades e dores: todas as composições estraçalhadoras que são os melodramas de Sirk em sua profunda e profana degeneração a eclodir ali no seio cadavérico (e lindo) do cinema norte-americano dos anos 50. Quando Cronenberg filma em Marcas da Violência, Senhores do Crime e Um Método Perigoso uma composição já recorrente nos últimos anos (será que ela reaparece em Cosmópolis?) em que o campo e o contracampo subsistem num mesmo quadro corrompido pelo foco, surge o momento em que o clássico aparece para nós engendrado e representado no maior de seus esplendores e transparências explícitas de genialidade: em quadro, habitat natural, seres de duas cabeças, monstros deformados pelas pressões sociais, fazem emergir todo o medo, toda a frustração, todo o segredo inconfessável regurgitado de seus misteriosos recônditos, dos porões cheios das teias de aranha carnívora de seus Ids. Fazer emergir o oculto da escuridão e com isso ao mesmo tempo fazer degenerar as imagens típicas que temos desses protagonistas até segunda ordem típicos, é o ato mais pungente e mais radical que o clássico pode nos dar a seu respeito — esse de olhar desmembramentos e rachaduras físicos e mentais nada apaziguadores. Mutações pictóricas grotescas para o resto da vida, para toda e qualquer cena, para todo e qualquer plano. Eis uma doença psicogenética de cinema. Dele e apenas dele.

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