Bem diferente das imagens comuns de uma Amazônia verde e em certo estado de dádiva ou prenhez eterna, com rios de dimensões martítimas, Enquanto o Céu Não Me Espera apresenta uma vida ribeirinha cinza e claustrofóbica, apesar de toda amplitude, e progressivamente esmagada entre dois espelhos: o céu sobre a cabeça e o Rio Negro sob os pés.
Apostando num futuro de cheias cada vez mais agressivas para a região, o filme nos apresenta uma família que vive num palafita no interior do Amazonas, tirando sustento do cultivando juta, planta que se adapta melhor a ambiente tropicais úmidos e da qual se retira uma fibra que pode receber diversos usos, principalmente têxteis. Neste sentido, a realidade de Vicente – interpretado por Irandhir Santos – mesmo neste futuro distópico, acaba não diferindo muito das histórias de antigos soldados da borracha de séculos antes. Escravizado pela própria insalubridade da relação entre trabalho e território, e principalmente pelas dívidas assumidas com um patrão cuja autoridade mais parece a de um capataz, Vicente absorve a brutalidade como modo de navegação social e na construção deste núcleo de relações o filme de Christiane Garcia remete a um clássico do cinema nortista sobre a dureza da vida ribeirinha: Brutos Inocentes (1973), dirigido por Líbero Luxardo, com Zózimo Bubul no papel principal.
No contraponto dessa brutalidade encontramos Rita (muito bem interpretada por Priscila Vilela), esposa de Vicente e matriarca da família em cuja casa acompanhamos a subida do rio como transposição imagética das tensões sociais do contexto ribeirinho amazônico, mas também da história desse casal. Mesmo com todas as dificuldades em manter a família nutrida e segura, Vicente teima em permanecer na casa enquanto Rita acredita que a solução seja partir.
Na esteira do adensamento desse conflito, o filme entrega diversas imagens da água como espelho e figura ligada ao transbordar de sentimentos, concentrados especialmente em Rita, personagem que já percebeu a queda do céu e não suporta mais a condição sufocante daquela vida submersa em melancolia. Vale destacar essa figuração da água como condição melancólica numa metáfora da atitude calada e ensimesmada do caboclo amazônida, lindamente representadas aqui.
Ainda que seja louvável a coragem técnica para realização de um filme praticamente gravado dentro d’água, a mercê dos humores do Rio Negro e da grandiosidade da natureza amazônica, para uma história que pensa o futuro da região, suas escolhas formais expressam a tradição de um cinema antigo e masculino, apesar da direção feminina de Christiane Garcia. A maior expressão dessas escolhas está na cena do estupro marital, que não possui função narrativa para além da reiteração de uma crueldade que se quer naturalizar, ao confundir a crueza do entorno à dureza de uma alma ribeirinha, que não encontra reflexo numa observação atenta. Mais um filme que escolhe repercurtir imagens de estupro, numa chave que parece buscar respostas para a estupidez humana, mas acaba esbarrando na reafirmação da cultura da violência sexual e de gênero.
Que os espelhos da realidade amazônica possam se valer das múltiplas possibilidades da fabulação para seguir contando histórias sobre essa região tão plural quanto desconhecida, trabalhando a delicadeza das epistemologias caboclas e apontando para um futuro em que séculos de manejo de vida fluvial possam gerar imagens prenhes de futuros possíveis.
Visto na Mostra Competitiva do 57o Festival de Brasília
Mostra Competitiva Nacional, noite de 03 de dezembro.
Por Geo Abreu
As sessões da Mostra Competitiva do Festival de Brasília juntam num programa, exibido sempre às 21h, dois curtas e um longa metragem. A ideia deste texto é expressar a unidade da sessão programada para a noite do dia 03 de dezembro, e a forma como os filmes confluíram, como diria um de seus protagonistas. Além das impressões pós exibição, somam-se aqui também ideias surgidas durante o debate, ocorrido na manhã seguinte. Aproveito para informar que todos os debates da Mostra Competitiva do 57o Festival de Brasília, realizado em dezembro de 2024, podem ser acessados no canal do festival no Youtube. Por ordem de exibição, então, apresento alguns comentários sobre os filmes exibidos:
Mar de Dentro
Divindo a tela em duas, como numa instalação para galeria, Lia Letícia, diretora e performer, apresenta a história de Preto Sérgio, homem negro e insubmisso e sua saga para fugir de uma prisão arbitrária ocorrida durante a ditadura Vargas. Lia conta que encontrou a história de Sérgio ao vê-la contada em paineis pintados em frente a uma pousada de Fernando de Noronha. A partir daí, seguindo o fio da narrativa, encontrou Kelly, neta de Preto Sérgio e dona da pousada. Kelly, então, detalha a história do avô: ele, preso por ter ferido por engano um rapaz de família rica, se vê exilado na ilha feita de prisão. Com astúcia, estuda a geografia, marés e ventos, constrói uma pequena embarcação e foge, sendo recapturado tão logo chegou em terra firme. Sendo levado de volta pela força policial, foge pela segunda vez, e só retorna à ilha ao descobrir que está sendo procurado, desta vez para ser inocentado e libertado por bravura. A diretora, que também é historiadora, relata que usou a ideia do díptico, dividindo a tela em duas, para pôr em relação diferentes materiais referentes ao caso de Sérgio, tentando transformar a fala do personagem, expressa pelos painéis, como um arquivo “válido”, buscando fazer com que este filme, além de obra audiovisual, atue também com documentação sobre o ocorrido. Além disso, a ideia do díptico, produz também uma dobra do tempo do filme que em 8 minutos conta a história com riqueza de detalhes, relacionando arquivos oficiais e arquivos de origem popular, como os painéis e relatos, buscando assim a validação da versão de Preto Sérgio por contaminação, por relação.
Ao final, com a pintura do homem negro remando contra uma maré agitada, reivindicando o direito de contar sua própria história, somos levados ao filme de Dácia Ibiapina, e como muito bem apontou André Dib durante o debate da sessão, parece que Sérgio de forma diegética está remando ao encontro do Quilombo Saco-Curtume, tema do filme seguinte.
Confluências
Não sei dizer se é possível humanizar ainda mais alguém como Antônio Bispo do Rosário, famoso Nego Bispo, autor reconhecido de diversos livros sobre o pensamento quilombola, que ganhou notoriedade nos últimos anos como divulgador de epistemologias outras, quase no mesmo nível alcançado por Aílton Krenank. Digo quase porque, há exatamente um ano, Nego Bispo fez a passagem e agora nos observa a partir de outro plano, no qual é mais difícil publicar livros.
Dácia Ibiapina diz que escolheu abordar este personagem, já tão conhecido, a partir de um ângulo mais pessoal: a festa de seu aniversário de 60 anos junto aos parentes no quilombo Saco-Curtume. E o que o filme nos apresenta é uma figura confluindo entre suas contradições, lidando com uma família numerosa e amigos que chegam de vários lugares para saudar sua existência.
Desta forma, o curta opera na mesma linha do pensamento que Bispo expressa em fala sobre o fato de que uma história só é história quando se ouve os dois lados. Quando se ouve um lado só, o que temos é ficção e, segundo ele, quase tudo que se sabe sobre quilombos é ficção. E quase tudo que sabe sobre o Quilombo Saco-Curtume está em seus livros e sua falas espalhadas em vídeos pela internet. Mas em Confluências é possível entender as dinâmicas de festa e de construção coletiva e composição da vida daquele lugar, desde a criação das crianças até a forma de monetizar algumas situações expressa pelo leilão de comida ou da discussão sobre o cachê da banda de forró.
No mais, a pequena cena em que Bispo e Dácia dançam forró de forma muito animada e cúmplice, expressa um fazer cinema que dialoga com os personagens e seu entorno, bem como essa pequena-grande diretora brasileira nos ensina: “a gente não consegue domar os filmes.” e as escolhas expressas em tela se manifestam no fazer, descobrindo a história e fluindo com ela, aprendendo com o filme enquanto se realiza.
Yõg Ãtak: Meu pai, Kaioŵá
É muito bom estar viva ao mesmo tempo que Sueli Maxakali, acompanhar sua trajetória como cineasta e a forma como seu cinema vem se transformando a cada filme. Em Yõg Ãtak: Meu pai, Kaioŵá a diretora se coloca em cena como nunca antes, talvez pelo tema tão íntimo, o reencontro com um pai que esteve distante por anos devido a uma história de privação de liberdade, como a de Preto Sérgio, personagem do primeiro curta desta sessão. Logo na cena de apresentação, Sueli produz uma foto viva de sua família, nomeando cada pessoa que entra em quadro, expondo a relação que possui com cada uma, apresentando sua família não só para o pai distante, mas para todos nós. E ao longo do filme o que acompanhamos é o desvelar de uma rede de parentalidade que atravessa a história do país e a luta pela retomada de territórios por povos originários.
A naturalidade com a qual o filme constrói a diferença entre os Maxakali e o Kaiowá expõe com sutileza da diferença entre idiomas e formas de apresentação, pinturas corporais, uso de cores e adornos, e esse jogo de diferenças assume certo protagonismo sem eclipsar o tema do reencontro entre parentes, e o processo de tradução e diplomacia entre etnias ocupa boa parte da história: necessária toda uma rede de relações e negociações para que Sueli se reaproxime de seu pai e o convença a participar do filme. Pela primeira vez também se expressa a dinâmica de co-direção entre Sueli e Isael, quando ambos assumem o protagonismo da direção de acordo com aquilo que talvez entendam melhor: Sueli nas entrevistas; Isael na condução do ritmo. Em determinado momento, as cores usadas pelos Maxakali são apresentadas a partir de uma dinâmica de pintura de tecidos que se transformarão nos trajes usados pela comitiva que irá ao encontro dos Kaiowá na culminância do filme e o grande reencontro entre esse pai e essa filha, que tanto tem em comum talvez sem se dar conta disso.
Para finalizar, deixo essa imagem que fiz da tela durante a sessão e a forma como as cores e composição do quadro me fizeram lembrar dos filmes dos anos 1960 de Jean-Luc Godard, e que remetem a uma certa vivacidade e a necessidade de um cinema muito novo de manifestar que está tentando mudar o mundo a partir de imagens. Vida longa ao cinema dos Maxakali e a sua Aldeia Escola.
Uma aflição possível do acadêmico que também é cineasta passa pelas dúvidas sobre como abordar assuntos não tão populares de maneira cinematograficamente interessante. No caso dos arqueólogos, Palimpsesto surge como respiro em meio a filmes comumente duros de assistir.
Tratando sobre o desaparecimento por incêndio da coleção arqueólogica do Museu de História Natural da UFMG,ocorrido em junho de 2020, o filme constrói sua narrativa sobre o luto dos pesquisadores e estudantes que atuavam na reserva técnica dosando as idas e vindas entre informação e ensaio visual, valorizando a própria condição lacunar e a requalificação de um material arqueológico destruído pelo fogo após 40 anos de salvaguarda. Na condição de palimpsesto, a história se inscrevendo nas peças, mais uma vez, a reserva se transformando em sítio arqueológico.
Dividido em blocos temáticos, o filme começa com o encontro dos pesquisadores com o espaço em ruínas, suas dúvidas sobre o processo de resgate e o entendimento sobre a perda para logo se transformar em blocos de encenação sobre o evento, como quando acompanhamos um dos pesquisadores transitando pelo espaço destruído, nos apresentando a ele como se os materiais ainda pudessem ser acessados; a ritualística da entrada no agora sítio arqueológico, antes acervo; a leitura coletiva de diversas notícias sobre a perda de diversos acervos de guarda da memória do país, como o incêndio da Cinemateca Brasileira em 2018 e a uma forma de analisar a progressiva destruição da memória de um país já tão frágil no acesso à sua própria história.
Será que aquelas coisas perderam muito de sua agência? Será que no futuro haverá lugar para a Arqueologia? Em alguns planos, vemos árvores que mais parecem objetos, enquanto o professor aponta sua pá de trabalho, as vezes como pessoa cuja agência o ajuda a lidar com os vestígios que encontra, as vezes como prótese que se acopla ao seu corpo e ao de outras pessoas; noutro momento, alguém adverte que na prática arqueológica é proibido se apropriar de objetos achados, mas que ela quis salvar um pedaço, um traço sem forma daquele acervo desaparecido, como para conter algo da agência que se fragmentou ali.
As árvores são coisas.
Coisas são pessoas.
E o fogo é um dos maiores arquivos do mundo, pois contem tudo aquilo que consome.
De certa forma, essa ideia sobre o fim do mundo como conhecemos tem nos trazido de volta ao pensamento sobre a importância da memória e o cinema tem reflito isso, com muitos filmes se debruçado sobre essas modalidades de apreensão da história, seja via oralidade, escrita ou materialidade. Acompanhar a degradação das coisas que nos rodeiam com tanta consciência tem nos transformado em criaturas melancólicas e ciosas da necessidade registrar tudo. Em breve seremos apenas arquivos digitalizados de nós mesmos? Sigamos.
Visto na Mostra Caleidoscópio do 57o Festival de Brasília.
Geralmente, mulheres, inclusive enquanto personagens de ficção, tem sua existência relacionada à casa, ao ambiente doméstico e à domesticação das coisas. Por isso mesmo, na fuga desse lugar comum, encontrar filmes que se inscrevam na tradição de mulheres andarilhas é uma espécie de reparação. Em Suçuarana, a protoganista Dora é uma mulher sem teto nem lei, que percorre o mundo com rumo: a terra prometida por sua mãe, outra mulher andarilha.
Assim como em Os Renegados (1985), de Agnes Varda, filme em que acompanhamos Mona em sua jornada de libertação (“Você escolhe a liberdade total e encontra a solidão”), Dora caminha pelo mundo aceitando todo tipo de emprego, dormindo em barracos e lugares ao quais não foi convidada apenas por não querer se apegar a nada nem ninguém para além do fardo de suas lembranças. Ainda assim encontra um companheiro, um cachorro caramelo com feições e orelhas de lobo, o tipo de cachorro ancestral cuja natureza vem sendo moldada por anos e anos de experiência entre o campo e a cidade, a lida com a selvageria do mato e a selvageria das pessoas. A certo ponto, depois de aceitar sua companhia, Dora o nomeia Encrenca e apesar de não termos qualquer indicativo sobre a sexualidade da protagonista, a presença cênica daquele cachorro me remeteu a história contada por Donna Haraway sobre uma história contada a ela por Paul Preciado, sobre a parceria entre mulheres lésbicas e buldogues, algo que remonta a histórias antiguíssimas da presença indomável de algumas mulheres no mundo e a construção de relações significantes com outros que humanos.
Nessa jornada a protagonista encontra outras tantas mulheres que tocam a vida de maneira solitária e em algum grau se parecem com ela, vagando num mundo em que não há paz para nós, as mulheres andarilhas. Até que, num golpe de mágica cinematográfica, Encrenca a salva de uma situação perigosa e a conduz para um lugar cuja comunidade se organiza em torno das ruínas de uma fábrica, tirando dela o que ainda tenha valor, objetos de ferro e outra máquinas. Aqui cabe a digressão de um breve momento em que as escolhas do cinema de Clarissa Campolina, que nos acostumamos a ver, como em Solón, se impõem como uma experiência de estranhamento do conhecido: a sequência de imagens trêmulas de uma mina de ferro como símbolo de perturbação do mundo como conhecemos e do arruinamento progressivo dele. Uma forma peculiar de assinar a mineiridade e a estética deste filme.
A partir de então, Dora se conecta a um universo de comunidade, troca e ancestralidade, o que teoricamente poderia significar o apaziguamento da busca, a ideia que a movimenta através da história. E como nos momento anteriores suprimidos pela narrativa e aos quais só nos resta imaginar, a personagem se orienta, observa e aprende com os modos de vida daquela comunidade num movimento que nos lembra Arábia (2017), de João Dumans e Affonso Uchoa. Essa imersão por um mundo do trabalho, que em Suçuarana apresenta sua face mais desconstruída, como um pós-mundo, algo que já ocupa um lugar para além de seu próprio fim: os rasgos das minas de ferro como cicatrizes do solo mineiro e a fábrica, totalmente destruída; a antiga vila de seus trabalhadores, cujas casas também estão arruinadas, dando lugar a um outra forma de se relacionar com os espaços e o vestígios daquele velho mundo.
Dora, como essa espectadora privilegiada, observa a tudo de dentro da máquina do filme e, como nós, resolve partir porque o tempo de estar ali é finito e ela precisa voltar a caminhar. No fim, talvez, sua terra prometida seja mesma a estrada.
Visto na Mostra Competitiva Nacional do 57o Festival de Brasília.
Em uma festa a música toca e faz barulho. As pessoas falam – às vezes escutam, às vezes não. Nada interrompe o som, nem um convite para uma pegação, nem um simples “oi”. Na cena, a música se sobressai, toma protagonismo e completa a palavra das personagens, energizando as pessoas que habitam o ambiente. No curta “Promessa de um Amor Selvagem”, de Davi Mello, o artista realiza uma ação de transmutação ao justapor, num gesto radical de montagem e narração, dois ambientes completamente distintos. A obra, portanto, se divide em duas partes.
Tudo começa assim: plano geral de uma casa antiga no meio do nada. De repente, saltamos no tempo e espaço para o banheiro de uma boate com um pau desenhado na parede com um “CHUPA” escrito. O clima é de boemia e de pegação. Um corte nos apresenta um personagem. Da cabine do banheiro, sai Bruno, em meio à música eletrônica pulsante. O rapaz se olha no espelho enquanto lava as mãos. Essa pulsação sônica é um dos elementos centrais da primeira parte do curta, pois, além de costurar as cenas, o som guia as personagens e a experiência de quem está assistindo a fita.
Saindo pela rua, Bruno procura outra excitação e se encanta com as luzes coloridas e os volumes que ecoam de um apartamento no centro de São Paulo. Sem ser convidado, ele entra. Na entrada do prédio, o protagonista se encara no espelho mais uma vez. Sem dizer nada, a música anuncia mais uma olhada no espelho. A trilha de sintetizadores, além de criar o clima de festa, dita o ritmo da montagem do filme de Mello.
Ao entrar na casa, Bruno olha Laís, a anfitriã da farra. Com um zoom in, a moça olha para o penetra e os sons produzidos por sintetizadores começam a ganhar a cena novamente. A fotografia de Bruno Risas chama a atenção nessa primeira parte da obra, ampliando a pulsação da festa. Com as olhadas no espelho, ou as encaradas para a câmera, o jogo de sombra com as luzes RGB piscantes fazem com que a imagem contribua com o clima de alucinação. A câmera se aproxima de Laís lentamente, dando forma à sua fisionomia no escuro colorido. Luzes vermelhas piscam em um lado de seu rosto, enquanto é iluminada com uma luz azulada no outro lado.
O protagonista continua vagando pela festa até entrar em contato com uma mulher lendo cartas de Tarot. “Se for entrar, feche a porta”, ela diz. A música para quase que totalmente, a energia abaixa, deixando apenas a palavra no meio da cena. A taróloga prevê que ele não terá muito tempo de vida, sua linha vital é curta. Maus presságios no meio do caos.
Bruno volta para a sala do apartamento, no centro da fritação, onde conversa com um homem. Um corte seco nos leva do bate-papo à cena dos caras se pegando – a excitação se mistura ao ambiente e sua sonoplastia. Depois do beijo, em um lugar sem luz e sem música, a crise volta. O assunto das linhas da vida é retomado, mas agora com Bruno falando para seu par que sua vida será longa. Esse outro personagem interrompe o falatório para ver a apresentação de Laís, que performará uma música.
Nessa cena todos estão lá vendo a anfitriã cantar. Bruno se distancia e sai de campo. No momento em que a narrativa se dá por entendida, a montagem transforma a cena. Em um fade out, o apartamento de São Paulo se metamorfoseia em uma casa de campo de um século antigo. A música pára e as luzes coloridas se apagam. Tudo no curta se metamorfoseia através deste gesto.
Na segunda parte do curta, uma família imperial reage à filha que ressuscita depois de ter sido dada como morta. Todos usam roupas brancas ao estilo vitoriano. Agora é dia e ouvimos sons de pássaros. “Morrer não deve ser fácil. Voltar à vida muito menos”, diz a mãe, com os olhos refletindo a luz do sol, para a filha que conta que sonhou ser um homem em lugar de luzes coloridas e música alta. A palavra toma o centro da cena. Como Bruno, a menina deseja excitações. Logo após reviver, já quer se movimentar e sair. Sua família não a deixa. Não há mais para onde ir.
Ao invés de vielas e becos, agora aparecem árvores. A natureza é filmada com luz natural, que a cada corte, anoitece mais. Em voz off, o som de uma reza feita pela família é ouvido, nos trazendo de volta para casa. À luz de velas, a moça se olha em um pequeno espelho em cima de uma bancada, a chama da vela pisca em sua cara, diferente da festa, a pulsação é guiada pela oração, que estabelece um ritmo lento e monótono. Em uma breve cena, a família aparece orando junta, todos de olhos fechados, rezam em um sala escura, com candelabros acesos marcando grandes sombras.
Sobrepondo aquela realidade, Davi Mello utiliza o ápice do sintético no cinema: a computação gráfica. No plano mais aberto do filme, uma espécie de cometa colorido invade o ritmo da quietude da noite. Ignorando sua família, a moça vai atrás do cometa. No meio de um matagal, a jovem encara esse fenômeno de luz, seu rosto toma a tela, milhares de luzes coloridas brilham em sua cara. Ao se aproximar, a onda de sintetizadores retoma aos ouvidos, cortando abruptamente para tela preta, rolando os créditos. O tempo se suspende para dar espaço ao final do filme. Tudo termina assim: com um corte seco.
O sintético de “Promessa de Um Amor Selvagem” vai além de suas luzes brilhantes ou música eletrônica, vai também na sua palavra, que se metamorfoseia na passagem entre os dois ambientes do filme. Navegando entre esses tempos, o diretor utiliza as unidades estéticas para controle do tempo no filme. O sintético não é o “falso”, longe disso. É uma metamorfose que recria nossa maneira de perceber certos elementos: luz led colorida, música eletrônica, cometa e, ao fim e ao cabo, a palavra.
Um homem anônimo mira sua câmera para o chão, nos mostrando uma mamadeira erótica que tem em suas mãos. Quando o narrador retira a tampa desse objeto – segundo ele, disponível nas creches públicas – podemos ver o formato do bico semelhante a um pênis e dois testículos. Os responsáveis são rapidamente nomeados, Haddad, Lula, PT estão em um conluio que, para combater a homofobia, tem levado esses materiais para as crianças. Votar em Bolsonaro, portanto, é a ação para que nossos filhos continuem sendo “homens e mulheres”. O vídeo foi divulgado em meio às campanhas eleitorais de 2018 e tinha uma utilidade na disputa contra Fernando Haddad, adversário na disputa presidencial daquele ano. Sendo um dos mais populares, o vídeo também foi um dos que mais efetivamente entrou no campo de recepção do cômico, sendo desmentido pelos portais de notícias e de checagem de fatos e se tornando um dos memes definidores daquelas eleições.
No entanto, desmerecer pela via do cômico esse vídeo e tantos outros, ora menos ligados ao bolsonarismo mas partícipes daquele período, oculta sua relevância para o debate do conservadorismo social extremado que tornou o Kit Gay uma eficiente ferramenta política da segunda década do século XXI. A liberdade com que um eleitor bolsonarista se imbui de se utilizar de um objeto vendido em sexshops para produzir um vídeo de denúncia reiterando os mesmos discursos que Bolsonaro e seus filhos originalmente apresentaram em seus blogs, canais no YouTube, grupos de Telegram e WhatsApp aponta a importância dos eleitores na solidificação dessa visão de mundo propaganda pelo político e seus apoiadores.
Como evidência, a mamadeira de piroca opera sem oferecer contexto apurado, sem fazer referência documental a programas de inclusão social boicotados por Bolsonaro e as bancadas conservadoras, e rapidamente atribuindo a confusão cognitiva que pode surgir ao inimigo comum da esquerda, do PT e, afinal, Fernando Haddad e Lula. A tomada em mãos da câmera para delirar uma situação que parece tão absurda, tamanha a impossibilidade da sugestão de mamadeiras eróticas para as creches públicas, é certamente um dos marcos que exemplifica a que atitudes uma consciência tomada pelo pânico moral pode recorrer. Seria uma consciência ingênua, se não fosse perigosamente capaz de atiçar e instrumentalizar os ânimos no Brasil atual.
Se o que aqui se sugere é uma certa seriedade diante do absurdo e cômico, não é porque tais cenas não deixem de despertar risadas, entre o riso e o choro, mas porque são eficazes em dar longevidade a um vocabulário de caráter operativo, que mobiliza as redes sociais, engaja interlocutores na especulação sobre do que se trata, o que fazer desse conteúdo, na busca de responsáveis, do desmascaramento de sua veracidade ou falsidade, no absurdo de sua existência e outras formas de engajamento.
Cesarino afirma que o Kit Gay circula como “puro significante (no sentido de Sausurre), a ponto de perder qualquer conexão com um referente concreto.” (2019, p. 102). Cronologicamente os referentes concretos poderiam se tratar dos textos institucionais do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBTs e do Escola sem Homofobia, dos materiais produzidos por essas iniciativas quer sejam audiovisuais, boletins educacionais (chamados de Boleshs), ou os próprios debates institucionais que levaram a sua elaboração e deliberação na esfera pública. Originalmente combatidos pelos Bolsonaro em seu conluio com a banda evangélica, é evidente que o Kit Gay perde contato com eles na medida que é apropriado nas redes, culminando em produções como a mamadeira de piroca.
No decorrer dos mais de 25 vídeos disponíveis no canal de Jair Bolsonaro no YouTube que fazem referência ao Kit Gay em seu título, os materiais utilizados pelo então deputado federal para alimentar sua rede conspiratória ganham cada vez maior dispersão, indo de uma disputa suja contra os avanços das bancadas progressistas para os moldes de uma guerra cultural. “O nome do filme é importante” diz Bolsonaro em um de seus pronunciamentos, ciente de que sua performance tem um quê de invenção, e que se trata de um procedimento de edição, recontextualizando diversos objetos do mundo dentro de uma mesma narrativa.
Ao mesmo tempo que há uma perda do objeto concreto que está sendo atacado, o vocabulário apresenta uma grande consistência. O eixo que articula a “flutuação” do Kit Gay através das redes está em um vocabulário obsceno produtor de choque e mobilização pela sua vocação de despertar imagens – ora visuais, ora mentais – que ferem a sensibilidade do cidadão de bem. Por trás de uma série de imagens virais e escândalos midiáticos, subjaz uma cadeia de imagens mais impactantes, que sequer se manifestam visualmente, mas rondam o imaginário no cerne do bolsonarismo.
A pedofilia e a criança como “outro desigual”
Uma breve sondagem pelo canal de Jair Bolsonaro no YouTube é suficiente para constatar a reincidência de um vocabulário obsceno em seu discurso. Qualificações como “imoralidade”, “promove o homossexualismo e a promiscuidade”, “filmetes pornográfico-infantil”, “desconstrução da heteronormatividade”, “uma porta escancarada para a pedofilia”, “vergonha”, “bacanal”, “estímulo ao homossexualismo infantil e a pedofilia”, “falta de respeito pela família”, “apoia a pedofilia”, “bolsa gay” e “primeiro emprego gay”são usadas a esmo. Tais frases embaralham os sentidos entre diferentes instâncias: do obsceno, do desvio da conduta e do desejo sexual, e da instituição de uma minoria – entendida como anormal – privilegiada.
A forma como Bolsonaro qualifica os materiais que enquadra como Kit Gay revela uma aspiração do político a indignar seus ouvintes, lançando mão de palavras como ferramentas de choque, instaurando a atmosfera de ameaça. Denotam uma espécie de imaginação do imoral, qualificado com derrogações que inferiorizam os materiais. O “pornográfico” está aqui próximo do sujo e do vergonhoso, como estigma de algo que é da ordem do indesejável e impensável para o “cidadão de bem”. Por trás desse vocabulário amplo, duas imagens são centrais para a eficácia do Kit Gay: a do pedófilo e a da criança. O espectro dessas duas figuras paira por todos os demais aspectos do Kit Gay como imagens-síntese, capazes de abarcar todos os receios dos espectadores capturados por essa teoria conspiratória.
A pedofilia, por sua vez, é um fenômeno amplamente utilizado no discurso da extrema-direita para muito além do bolsonarismo. Em verdade, Bolsonaro parece ter se inspirado na retórica de um de seus gurus, Olavo de Carvalho, que pelo menos desde o início do século alarmava
Isso eu tô dizendo pra vocês há anos, há anos… A legalização da pedofilia é apenas uma questão de tempo no Brasil. Isso vai acontecer fatalmente. Preste atenção, quando eu digo pra você que o negócio é fatal é porque eu examinei, pensei, estudei, fiz as contas e vi que não tem jeito de ser de outra maneira. […] Preste atenção, anos atrás, uns 6, 7, acho que 10 anos atrás, eu escrevi: depois de o movimento gay adquirir autoridade e se tornar fonte de direitos, fonte da lei – o que já é uma coisa absurda – o passo seguinte seria legalizar a pedofilia.
Olavo não foi o único a estabelecer essa conexão. Damares Alves, ex-ministra da mulher e senadora nas eleições de 2022, denunciou a série Lindinhas da Netflix como “pornografia infantil”. Em tweet diante da vitória de Bolsonaro em 2018, ela escrevia
Essa é uma nova era! Pedófilos, consumidores de pornografia infantil, traficantes e exploradores de crianças: acabou pra vocês! Bolsonaro é presidente e Moro é Ministro da Justiça!! Nenhuma criança mais vai chorar nessa nação. Não mediremos esforços para amá- las e protegê-las!
Damares já construiu em seus cultos imagens de crianças de dentes quebrados para melhor performar sexo oral, e crianças alimentadas com alimentos pastosos para performar sexo anal. Tais cenas não estão em nada relacionadas a dados oficiais de investigações policiais, estando antes presentes em narrativas conspiratórias de grupos como o QAnon. Olavo e Damares exemplificam a aliança conservadora de braços católicos e evangélicos da extrema-direita e sua predileção pelo sensacionalismo e conspiração envolvendo abuso sexual de menores de idade.
Uma grande parte do sucesso do Kit Gay pode ser atribuído a capacidade de síntese bolsonarista, de se apropriar de discursos e imagens outrora utilizadas por outras vertentes do conservadorismo e da direita e concentrá-los através de um porta voz carismático, capaz de abarcar uma maior quantidade de espectadores em seu espetáculo paranoico. O Kit Gay dá nome a uma conspiração que o precede, de conluio entre as forças progressistas de avanço das pautas de inclusão LGBTQIA+ no tecido social e a legalização da pedofilia. A figura do pedófilo em si, no entanto, permanece difusa.
Afinal, seria o professor ou professora que iniciaria os alunos no material do Kit Anti-homofobia o pedófilo? Seria o pedófilo, fora da escola, um beneficiado pela educação sexual “precoce” das crianças? A pedofilia nunca é um fenômeno esmiuçado por Bolsonaro em sua fala, mas sempre citado. Nunca se explica exatamente de onde vem o adulto que expressa esse tipo de comportamento e traumatiza as crianças que são defendidas por ele na câmara dos deputados – do mesmo modo, quem seriam os pedófilos que traficam crianças nas fronteiras do Brasil de Damares e o que eles têm a ver efetivamente com o status quo institucional? Estariam os deputados estaduais e federais de identidades LGBTQIA+ ou defensores de suas causas ocultando suas facetas pedófilas? Perguntas que não encontram resposta da boca desses ideólogos, mas que não impedem uma disseminação de seus discursos.
A associação entre pedofilia e a diversidade sexo-gênero remete ao que Chun (2006, p. 97) identifica como o uso estratégico da pedofilia como a principal forma de sexualidade útil para produzir e incitar métodos de controle, entendidos nesse contexto como essa mobilização dos indignados que acreditam agir em prol de uma boa causa a partir de seu pânico moral. O risco da pedofilia justifica uma postura de medo, paranoia e vigilância com a qual Bolsonaro e seus apoiadores se imbuem. A homossexualidade aqui significa, como para Chun, uma forma de abdução infantil estimulada pelas escolas públicas. A pedofilia é percebida como parte de um plano maior de cooptação das crianças, sendo a introdução da homossexualidade no ensino público um primeiro passo ideológico.
Se os LGBTQIA+ são apontados, sob o signo da pedofilia e do comunismo, como inimigos absolutos, a criança é apontada como a vítima de um processo de penetração ideológica e suas figuras estão espalhadas pelo material do Kit Gay ora como exemplo dos efeitos corrompedores desse suposto processo – as “crianças viadas” – ora como um modelo, ideal da inocência que assegura a perpetuação dos valores familiares como pilares da nação – as crianças militarizadas ou reproduzindo discursos conservadores prontos. Dentro do léxico bolsonarista, em ambos os casos o corpo infantil é reconfigurado. A ele é amiúde reservado um lugar de mutismo ou de automatismo, de um outro incapaz de se autodeterminar e que precisa ser defendido ou externamente definido.
Os temores da pedofilia, da abdução infantil, da homossexualidade e ideologia de gênero são projetados na vigilância do corpo da criança a partir do entendimento de que ela é um “outro desigual” (CHUN, 2006), incapaz de ter acesso aos supostos materiais do Kit Gay e sair ilesa. Ao mesmo tempo que há um elogio da naturalização do gênero, o próprio bolsonarismo reconhece a possibilidade que a educação tem de promover desvios naquilo que acredita ser congênito. Um problema de conhecimento. De um conhecimento como ameaça.
A entrevista de Bolsonaro no Jornal Nacional do dia 28 de agosto de 2018 foi um dos momentos em que a ideia do Kit Gay alcançou um dos mais tradicionais meios de comunicação nacional, muitos anos depois de seus primeiros pronunciamentos sobre o assunto . Diante dos apresentadores, Bolsonaro tem em suas mãos o livro “Aparelho sexual e Cia: um guia inusitado para crianças descoladas”, da autora Hélène Bruller. Ele contextualiza o objeto quando toma conhecimento da realização do “9º Seminário LGBT Infantil na Câmara dos Deputados”, em que se comemorava o lançamento de um material de combate à homofobia – adulteração de um seminário do Escola sem Homofobia.
Na versão de Bolsonaro, o livro já estava disponível nas bibliotecas das escolas públicas do país. Em seguida, Bolsonaro anuncia para os espectadores: “Então, pai que tenha filho na sala agora, retire o filho da sala”. Ele ameaça exibir páginas além da capa na direção da tela, mas é interrompido pelos apresentadores do jornal. Em 2016, o então deputado federal gravava um vídeo para seu canal acompanhado de sua filha em que apresenta o mesmo conteúdo, não sem antes avisar que, para o que vai fazer, é preciso que nenhuma criança esteja por perto.
Afinal, esses episódios das querelas do Kit Gay formulam o lugar da criança como o de uma figura retórica, uma peça dentro da argumentação que jamais responde por si só. A estratégia ressalta a autoridade paterna centralizadora, com a qual Bolsonaro se identifica, da tomada de decisão no lugar de outros que ainda não conseguem fazê-lo por si sós. A criança precisa ser afastada, porque ainda está aberta ao que o bolsonarismo parece mais temer, na ambiguidade cultural que se produz a partir da democratização do conhecimento e a inclusão social.
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O Kit Gay constroi um regime de imagens de índole securitária, com o principal propósito de promover uma vigilância guiada por valores conservadores. Não só essa teoria conspiratória ganha forma através de seus protagonistas inseridos na política institucional, como Bolsonaro, Damares e demais ideólogos, mas se apresenta como um fenômeno de “vigilância distribuída” (BRUNO, 2013) em um modelo de difusão da produção de imagens por uma ampla gama de produtores-eleitores-espectadores da vida pública. Em outras palavras, não só o político profissional, mas o eleitor se torna um realizador, quer seja de imagens amadoras ou profissionais, que vem somar a uma já ampla quantidade de conteúdos como novos escândalos, notícias falsas e afins.
O que se buscou através desse texto, limitado pelo seu tamanho na tarefa de dar dimensão da pervasividade do Kit Gay, é que por trás de um uso aparentemente aleatório das imagens, residem imagens mentais – mais do que discursos coesos – que acionam o medo e a paranoia no bolsonarista que se sente imbuído a agir. A pedofilia, por um lado, e a criança, como sua vítima, compõe o imaginário que impede aquele que é precisamente o trabalho da democracia, de partilha da palavra e da imagem. Se ao outro é reservado o lugar de um inimigo absoluto, de hábitos e desejos com os quais é impossível negociar, o diálogo também se torna impraticável. A ilusão que confere potência ao Kit Gay é sobretudo de que há um dever moral a ser cumprido, uma interpelação impossível de se negar.
O fenômeno do Kit Gay consiste em uma instrumentalização das imagens do mundo, amiúde ambíguas, de “genealogia dúbia” (STEYERL, 2012), que são capturadas em um dispositivo de afetação e reação dos espectadores. A mamadeira de piroca, o Kit-Antihomofobia, as reportagens, fotografias e matérias televisivas discutindo a identidade de “crianças viadas”, os filmes, performances e demais obras artísticas, toda a diversidade de objetos culturais e políticos do mundo se vê submetida ao imperativo de uma mesma aniquilação da ambiguidade e alteridade na democracia.
Bibliografia:
BRUNO, Fernanda. Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre. Sulina. 2013.
CESARINO, Letícia. Como vencer uma eleição sem sair de casa: a ascensão do populismo digital no Brasil. internet&sociedade. São Paulo. v. 1, n.1, p. 91-120. fev. 2020.
CHUN, Wendy Hui Kyong. Control and freedom: power and paranoia in the age of fiber optics. Massachusetts: The MIT Press, 2006.
ROCHA, João Cezar de Castro. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um brasil pós-político. Goiânia. Caminhos, 2021.
STEYERL, Hito. Em defesa da imagem ruim. Revista Serrote #19. 2012
A palavra, ainda que aparente não ter corpo, propaga-se, sonora, obra física do impacto, pelo ar, e sobre a matéria de seu ouvinte, finda por tomar corpo; reclama, ali dentro, espaço de persuasão. Quando quer que uma função pública, religiosa, judicial ou acadêmica (e mesmo grande parte das ocasiões íntimas/privadas em que as posições hierárquicas se confundem) torna a palavra capaz de oficializar ou fazer insurgir relações que o mundano não comporta, nota-se que há regimes em que a representação verbal oral “pesa”, perfura e ressignifica os corpos, mais que em outros. Quando Manoel de Oliveira escolheu roteirizar a vida do padre António Vieira, muito além do fundo histórico que entrelaça a coroa portuguesa à história colonial e à sociologia brasileira, persiste a compilação das muitas vidas (negras, indígenas, divinas, políticas, teóricas [futuras], de altas classes) contidas nos pensamentos do jesuíta: daí o filme sabiamente se intitular “Palavra e Utopia” (2000).
O Brasil que o seminarista nunca pôde mostrar digno ao olho europeu, nem defender politicamente; o Reino materno que torceu suas palavras em processos estapafúrdios, proibiu-o e o tolheu a liberdade (de voz pública) diversas vezes, e eventualmente “esqueceu” (descartou) sua relevância crítico-litúrgica às alturas da corte. As realocações colônia e metrópole adentro, as prisões, os textos intermináveis, as burocracias da Inquisição – o NÃO-lugar é sua morada, e a palavra é “quem” tece o lugar ideal, U-TOPOS, paisagem de permutas justas e distribuições horizontais, MAS ainda por vir, ao mesmo tempo que a sucedânea de defesas de Vieira não é senão fruto da invocação de uma visão “do que estamos vindo-a-ser”, isto é, das projeções que as idealidades da ambição criam, contradizendo o próprio evangelho.
Sua imensa paixão e longevo estudo do sapateiro e profeta Gonçalo Bandarra, ao privilegiar a interpretação discordante do texto sagrado, derrama sobre os séculos de hereditariedade real portuguesa a vinda de um Rei-Messias como último estágio da Terra. Mas o movimento em que a Inquisição interpretou o judaísmo continha louvação ao sangue da nação que acaba por o punir. Pregado em menos de 10 ocasiões, o texto acusa ser, portanto, “ambíguo (em sua intenção) demais”, uma palavra contrária ao DEVER evangelizador do pontífice: converter, implicar no reconhecimento de outra superioridade de crenças, o selvagem, e nada mais.
Quando, ainda jovem, é detido por soldados da coroa enquanto pregava aos escravos nigerianos na Bahia sobre a predileção de Deus por todos os corpos – posto que foram oriundos de sua mesma carne –, sendo então um absurdo na Terra que tal sistema sequer exista, Oliveira filma os ecos de uma pomba em vaivém diante de Maria, na câmara vazia, enquanto repousa um crânio à distância frontal da figura misteriosa, trajada inteira de negro, ao lado daquele Cristo ressequido tão comum ao barroco. “A velhice é a morte – sem esperança”, dirá, adiante, o velho Vieira (interpretado por Lima Duarte). Tal cena pode ser vista não apenas como anúncio oracular desse filho sem pátria e incapaz de ressurreição plena na vida pública, mas como a fatalidade de um destino onde a palavra está licenciada, ausente, e é esperança esvoaçante e pueril num púlpito vazio e de interlocutores congelados, sem vida.
Se Yasujiro Ozu conseguiu sistematizar o “plano-tatame”, em que a reverência horizontal ao falante o punha, respeitosamente, à mesma altura que a da câmera/interlocutor, criando um regime confessional que ao mesmo tempo eternizava, como nos retratos, a frontalidade da franqueza íntima e mundana de seus personagens frente ao tempo ininterrupto da vida, Oliveira preservou uma série de “formatos” de plano não menos disparadores da relação de António Vieira com aqueles a quem suas palavras de vida ou morte se endereçaram:
o plano-púlpito, captado sempre de modo a uniformizar os ouvintes (postos de costas, às beiras dos portões das igrejas, ou contra a luz que a penetra, mirando acima, uma massa de sombras surpresas com a dialética oral barroca) e enfatizar o som grave, cavernoso, do vozerio eloquente; pura palavra-possessão;
o plano-juizado, que ora incrusta Vieira num fundo absolutamente obscuro, ora o põe levantado, com palavras altivas e autodefesa argumentativa impecável, a despeito do avanço de sua idade e múltiplas enfermidades, mas ainda assim diante de juízes filmados mais indiferenciados por seus capuzes do que transparentes por clara implicação justiceira;
e o plano-carta, quando na juventude e vida adulta Vieira curvava os olhos à procissão de palavras, rente ao sol à janela, e quando a última fase da vida o obrigou a ditar a seu padre-secretário as linhas dos afazeres políticos e religiosos (na companhia de Jesus e frente à realeza); o montante destes escritos mais que suficiente para biografar parte substancial desta e de todas as vidas convergentes às dele.
Tal meticulosidade com a formação inerentemente PLURAL do registro de quase todas as etapas da existência do padre, construindo em suas ‘opiniões (no exercício de seminarista)’, ‘escritos’ e ‘visões’ (modos de tratamento com outras classes de importância política à coroa) uma bomba-relógio de perturbações sobre o status quo da alienação colonialista, não só reitera o desmascaramento ambulante que suas palavras comportavam, como o exercício de mistura que faltava a cada fragmento do funcionamento colonial justamente para que eles coexistissem sem que um oferecesse resistência ao outro. Faltava ao colono querer “o indígena como ele é” perto de si… e não (continuadamente ver, e forçar a existir) um selvagem completamente subjugado aos desígnios de um rei que, há menos de 5 décadas, ele mal sabia que existia. A aprendizagem das variantes linguísticas indígenas foi praticamente nula, se posta em relação ao projeto catequizador e sua imposição de aclimatação e reprodutibilidade do vocabulário cristão.
Ditar quais palavras e idiomas são condizentes com a preservação de um ideal supostamente unívoco, e quais são os produtores de escrituras, vozes e memória dignas de participação horizontal num mundo terceiro, de leis criadas pelos apropriadores das culturas primeiras – esta é uma tecnologia que sabemos ser demasiado antiga; mas sua ênfase funcional, quiçá, não nos chegue à mesma proporção que a superfície da manipulação extrativista: se os juízes podem interpretar livremente o corpo de uma vida, ou o corpo de obras de uma vida, então o PROPÓSITO delas nunca teve importância (de antemão) – a não ser quando decidido e demovido por estes mesmos legisladores, isto é, para fins sempre oriundos de cima para baixo, e capazes de variar sobre a “compreensão” da utilidade política do corpo em julgamento.
É a quem pertence o direito de INTERPRETAÇÃO, mesmo para um dos doutos ‘cavaleiros’ do Reino de Portugal, que dependerá o ditame sobre a preciosidade da vida. Quando Vieira replica todas as acusações flechadas pelo Tribunal de Coimbra na virada à segunda metade do século XVII, assume francamente que foi para deixar claro PARA SI, enquanto testemunho de última correção-retificação contra as inverdades fabricadas pelo júri, que trouxe todos aqueles argumentos. Seu átimo de rebeldia parece almejar transformar aqueles rostos nos rostos da morte, a mesmíssima a que assistiu, ao longo das décadas, assolar a falta de voz dos indígenas e escravos. Parece afirmar que sua maior tristeza foi ter dialogado, a vida inteira, consigo, com suas próprias utopias de clareza e esperança por meio dos sermões e textos, e com essa força sobrenatural que coloca a ganância acima do entendimento do lugar de palavra desses radicais ‘outros’.
Prepara-se então para morrer, não mais com as honrarias, títulos ou considerações de uma pátria que não o justifica mais o berço da apreciação (nem da devolução cordial) – ainda que o conforte não passar os últimos anos na miséria –, mas com o máximo de palavras publicadas, para que se preserve, em obra, a dignidade das vidas além de si, junto a si. Como último ato de nobreza perante um Deus que ainda voltou para redimir seus filhos da crueldade de seus semelhantes.
Se alguém quiser saber alguma coisa sobre poesia, deverá fazer uma das duas coisas ou ambas: É Olhar para ela ou Escutá-la. E quem sabe, até mesmo pensar sobre ela. E se precisar de conselhos, deve dirigir-se a alguém que Entenda alguma coisa sobre ela.
— ‘O ABC da Literatura’, Ezra Pound.
Em um texto chamado The Art of Moving Shadows, Annette Michelson, teórica da avant-garde americana, discute sobre o primeiro cinema partindo da ótica da fotografia. Segundo ela, a imagem estática inserida no fluxo da narrativa cinematográfica ocasiona uma tensão e um questionamento sobre qual é a validade da imagem cinematográfica estática versus a imagem sequencial e cinemática. A leitura vai em direção a uma relação dialética entre cinema e fotografia para além do aparato e como constante eco em influência e meio.
A inscrição da imagem estática como recurso perpassou os diversos movimentos cinematográficos, porém teve maior ressonância em seu período modernista, em especial com o uso da iconografia e pintura, principalmente no cinema dos anos 50 e 60. Seu uso era principalmente como maneira de questionar a relação entre som e imagem como meio para a representação cinematográfica não somente em forma, mas também em ideologia. Em uma análise para Letter to Jane (1972) de Jean-Luc Godard – um filme composto de uma única imagem estática – ela propõe:
“Letter to Jane (1972) está situado em uma resposta à guerra do Vietnã por Godard e apresenta uma análise crítica de uma imagem estática, submetendo a imagem a um questionamento ideológico intenso, completando assim um ciclo histórico. Ao fazer isso, põe-se de novo em questão: quando um filme é um filme? Ou: o que é o cinema?”
Para além do questionamento ideológico da imagem, a proposição de Michelson é certeira; se o cinema é a imagem em movimento, o que está fora disso pode ser considerado cinema? Ou é uma outra coisa? E que coisa seria essa?
Esse pressuposto parte de uma imagem estática de Jane Fonda, logo, uma representação visual do mundo decomposta – experimentos esses que não são incomuns dentro do cinema, vide Tom Tom The Piper’s Son (1969) de Ken Jacobs e, em certa medida, nostalgia (1972), de Hollis Frampton – mas e quando não há uma imagem e sim, uma palavra? A palavra em si, enquanto matéria, é um ser estático; quem dá o significado ou a torna um organismo vivo é o espectador/leitor. Logo, a palavra por si só em uma tela a 24 quadros por segundo seria cinema? É possível um projeto cinematográfico que torne a palavra estática cinema?
Nenhuma dessas perguntas possui uma resposta – e se possui, levam a outros questionamentos infinitamente, como devem ser todos os questionamentos – no entanto, é possível aliar a imagem e a palavra como seres de instâncias distintas em um filme e, ainda assim, produzir um todo orgânico. Um dos nomes que melhor encapsulam essa fusão entre palavra e imagem, movimento e estático, mundo exterior e interior, o pensamento e a ação, é o cineasta americano David Gatten.
As obras de Gatten se inserem em um corpus fílmico pautado pelo uso da literatura, se valendo da escrita e do que foi escrito impressos na tela junto de imagens, texturas, efeitos fotoquímicos, teorias físicas, narrativas históricas, fissuras e turbulências. Ao longo dos anos, partindo de um cinema artesanal e íntimo, ele estende uma colcha de retalhos constante, costurando referenciais e narrativas que tornam o seu cinema, com a palavra estática impressa na tela, um cinema que se move e se conta a cada frame.
Nas palavras do próprio cineasta, Hardwood Process é “um filme-diário artesanal, criado a partir de técnicas alternativas de processamento, tratamentos químicos e impressão ótica e por contato, é uma história de superfícies marcadas, uma investigação e uma imaginação: sobre as marcas que vemos e as que fazemos, sobre as linguagens que conseguimos ler e aquelas que estamos tentando aprender. Escrito nos arranhões no chão, nas cicatrizes das mãos e nas gravações químicas na emulsão do filme, essas linguagens da experiência são instáveis — vocabulários que mudam constantemente com o passar do tempo.”
Como um filme-diário errante exposto ao acaso da revelação e processamento do filme, e fruto do incerto, Hardwood Process é um filme cuja linguagem está em um processo de descobrimento. As mãos tateiam pelas paredes, as imagens se dissolvem e se reconstroem, o mundo material se torna um misto de cores e ranhuras na tela. Todas essas texturas são entrecortadas por entradas de um diário divididos por dias, onde o narrador fala consigo, conta quem visitou, quem não viu e se pergunta constantemente do que é feito esse filme. Em uma das entradas, ele se pergunta “O que são essas cicatrizes, de que elas são feitas e de onde vieram?”, como quem estivesse se perguntando qual é a maneira correta de interpretar tantas ranhuras e ruídos, e afirmando em seguida: dessas cicatrizes e ranhuras, é possível conciliar e criar, aos poucos, uma nova linguagem, um novo vocabulário. Em uma das últimas cartelas de texto do filme, surge a inscrição color pharmakon. Não por acaso, a noção de pharmakon é um mistério em tradução – podendo ser o grego para elixir, poção, encantamento e, ao mesmo tempo, designar o veneno. É um conceito proveniente de mistério. No caso de Hardwood Process, o phamakon está inserido no filme como um efeito cromático, uma matéria da ordem do inefável. Em outras palavras, pode ser descrita pelo pharmakon de Jacques Derrida como “(…) uma substância, com tudo o que esta palavra possa conotar, no que diz respeito a sua matéria, de virtudes ocultas, de profundidade críptica recusando sua ambivalência à análise, preparando, desde então, o espaço da alquimia.”
Moxon’s Mechanick Exercises, or, the Doctrine of Handy-Works Applied to the Art of Printing (1999): Linguagem enquanto arte e reprodução
Moxon’s Mechanick é o primeiro de uma série de filmes de Gatten que trata sobre a figura de William S. Byrd, escritor americano do século XVIII, com produção teórica prolífica espalhada por diversos registros escritos. As cartas, livros e diários se aliam à biblioteca vasta de Byrd, trazendo à tona o referencial como pedra fundamental no cinema de Gatten, cunhado pelo termo ‘secret reading’ – ou, uma leitura de/em segredo aplicadas aos filmes como citação ou referência implícita. Uma dessas citações foi um livro de Joseph Moxon escrito em 1703 (que batiza o filme) e que é o primeiro manual de estilo e impressão para as primeiras prensas. Gatten pega os princípios de Moxon, sobre como a letra deve ou não se comportar em um meio físico, e aplica à Bíblia de Gutemberg.
Tal escolha não é arbitrária; a Bíblia de Gutemberg marca um ponto de transição entre a matéria escrita e a reprodução mecânica. Os trechos da Bíblia, dissolvidos pela água e colados entre os fotogramas, garantem à palavra não apenas a recuperação do ímpeto primordial da linguagem enquanto significação e enunciação, mas também enquanto reprodução e forma.
Além disso, na segunda sessão do filme, é proposto o questionamento e a navegação da palavra entre línguas, a tradução. Para o filme ser feito, foram utilizadas cinco versões da Bíblia e cada uma delas propõe uma versão da história. A leitura secreta de Gatten mistura esses excertos e, em meio ao segredo da montagem, propõe o colapso e a elevação das palavras traduzidas, as questiona e mostra ao espectador que há a possibilidade de uma história documentada e de uma história secreta, entrecortada pelas anotações de Byrd e traduções e retraduções da Bíblia. O filme é, principalmente, um tratado da letra e seus movimentos, sejam eles em uma análise da letra enquanto forma material ou do movimento do quadro cinematográfico movendo a letra. O texto é físico; o significado não o é.
Dessa forma, Moxon’s Mechanick age como um filme-palimpsesto, onde a primeira inscrição da palavra foi raspada para que outra(s) palavra(s) pudesse(m) ser escritas. As vemos através da transparência da película cinematográfica, sem perder sua materialidade primeira, mas destacadas de um todo, e, citando Moxon, assim criando um Corpo e um Espírito da linguagem no cinema composto por letras capitais.
The Great Art of Knowing (2004): Língua como ciência
The Great Art of Knowing é mais um dos filmes da série sobre William S. Byrd e, desde o princípio, atua como um filme-como-biografia/bibliografia da vasta biblioteca do escritor.
O filme parte de um evento, o leilão da biblioteca de Byrd e se estrutura de forma enciclopédica pelas páginas de um livro do século XVII – cujo qual nomeia o filme – de autoria de Athanasius Kircher. Definido pelo próprio autor como um filme antinômico e de uma iconoclastia gentil, é uma análise sobre como a ciência instrumental e mecânica é a mais nobre e a mais aplicável entre todas as outras ciências.
Isso ocorre porque ela demonstra como os corpos animados possuem movimento e como esses movimentos permitem transformar operações. Segundo ele, todo movimento tem sua origem no centro de gravidade, que está localizado no ponto de equilíbrio entre extremidades com pesos diferentes. Essa ciência também revela a relação entre abundância ou escassez de músculos e o equilíbrio entre peso e contrapeso. Nesse contexto, a mecânica instrumental pode ser entendida também como o próprio uso da palavra. A palavra, assim como o movimento nos corpos, é o que “anima” ou dá vida às ideias e expressões. Se o cinema é a “imagem em movimento”, aqui é a palavra que gera movimento, tanto ao criar imagens mentais quanto ao desafiar significados já estabelecidos. A palavra em si é o peso e o contrapeso, em combinações que estruturam o universo em uma reconstrução do mundo.
Aliado a isso, entre uma palavra e outra, há o entrelace de textos e destinos; Gatten preenche as lacunas deixadas pela ciência, explicável e química, com o que é inexplicável e terreno, como o romance oculto de Evelyn Bird. O espaço entre as letras, as frases e as linhas criam a margem de seus próprios segredos, como se em cada uma das correspondências de Evelyn ao seu amante distante a ensinassem a viver em um imaginário secreto e íntimo, como quem lançasse uma garrafa ao mar esperando que alguém a lesse. Esse romance, da ordem do impossível, se estende em outras obras do cineasta, como no filme What Places of Heaven, What Planets Directed, How Long the Effects? or, The General Accidents of the World (2013), em variação de tom e forma, adotando assim a forma poética e como um breviário-bússola do amor perdido.
As palavras de Gatten são dotadas de forma e movimento; se a fotografia de Jane Fonda em Godard é ideologia, a de Gatten é a palavra e a iconoclastia. E dessa iconoclastia, das palavras na tela, dos mundos dentro de mundos e das narrativas à borda da imagem cinematográfica, o que resta enquanto certeza é que não é o modo como as coisas existem no mundo que as tornam místicas; mas sim, apenas o fato delas serem. E a palavra é. Sempre é.
Entre 1978 e 1985, o grupo Mel de Abelha se dedicou à realização de filmes com câmeras caseiras super 8mm em diferentes cidades do Piauí. Este engajamento coletivo surge a partir de uma postura crítica em relação à apatia da intelectualidade piauiense diante dos fenômenos sociais que surgiram durante a ditadura civil-militar brasileira. Tudo se passa como se o grupo estivesse dizendo: se os intelectuais não querem pensar a miséria, a fome, o crescimento urbano desordenado e a criatividade popular, o cinema o fará.
Os membros do grupo Mel de Abelha compartilharam a tarefa estética (e não menos política) de dar forma às culturas locais a partir da perambulação pelos ambientes com a câmera na mão, gesto facilitado pela portabilidade das câmeras utilizadas. Filmes realizados pelo grupo — como Espaço Marginal (Luís Carlos Sales, 1980) e O pagode de Amarante (Dácia Ibiapina, 1984) — abrem mão da elaboração de teses generalistas sobre a pobreza e opressão capitalista típicas da produção documentária cinemanovista para praticar uma interação inquieta com as cidades do Piauí, produzindo perspectivas de lugares tão distintos como o centro urbano de Teresina e o bairro que serve de palco para a festa popular em O pagode de Amarante. Este filme de Dácia Ibiapina parece querer nos tirar para dançar. Mas o que acontece quando um filme dança?
Nos créditos iniciais desta obra lemos “Um filme do grupo Mel de Abelha” sob a tela preta granulada. Escutamos em destaque o batuque do pagode marcando o compasso de nossa fruição – o corpo estremece, sentimos o ritmo com olhos, ouvidos, barriga e os pés pisando-pisantes. Os créditos se encerram para nos mostrar imagens de um bairro localizado no alto dum morro da cidadezinha de Amarante. Vemos planos fixos de casebres, postes de iluminação e fiação elétrica, o movimento pacato nas ruas de terra, animais e crianças brincando na sombra. A montagem sobrepõe as imagens da paisagem local à voz de Chico Dedinho, convidando o povo de Amarante para a filmagem que o grupo Mel de Abelha realizará mais tarde no pagode na casa de João Bitu.
Nesse prólogo, já é possível perceber dois traços característicos da obra de Dácia Ibiapina. Em primeiro lugar, nota-se uma entrega da equipe ao encontro com as pessoas e os lugares filmados. Esta forma de trabalhar parece buscar a instauração de uma comunidade, ainda que provisória, entre equipe de filmagem e seus interlocutores – modo de trabalho que resulta numa conversa franca e direta com as pessoas. A própria forma do filme nos sugere que a relação produzida no encontro entre os envolvidos na filmagem é de franca aliança e camaradagem. Em segundo lugar, destaco a atenção particular que a autora dedica à montagem, que não apenas encadeia os fragmentos, mas também interrompe nossa fruição com o objetivo de produzir choques. A forma com que a cineasta amarra as bandas sonora e imagética também se destaca. Não se trata de inscrever numa forma simétrica ou simultânea som e imagem, mas tecer com os materiais algo singular. Um filme tecido, tal qual um bordado.
Responsável por fazer aparecer aspectos da fisionomia da cidade ao mesmo tempo que desdobra o convite de Chico Dedinho aos possíveis espectadores desta obra, a sequência inicial é bruscamente cortada pela montagem. Interrompendo o fluxo de uma possível apreciação idílica das imagens da cidade-vilarejo, Dácia Ibiapina apresenta o discurso do anfitrião dos pagodeiros, João Bitu, a partir de um enquadramento frontal. A entrada disruptiva da entrevista e a relação dialógica com a pessoa que discursa toma a forma de um papo reto com o público.
João Bitu nos comunica a razão de ser do pagode de Amarante: “O pagode aqui é o seguinte. (… ) o esforço que a gente faz é pra fazer ter movimento”. O homem se queixa dos preços altos que atrapalham a vida naquele tempo e apresenta o pagode como uma forma de arrecadar dinheiro e inventar formas de se movimentar em reação aos problemas que assolam a comunidade. O pagode também convida os “velhos pra dançar”, contribuindo para a lembrança de que eles estão vivos e, por isso, não podem ficar parados, pois, “se nóis fica parado, nóis fica morto”.
O discurso do personagem provocado pela entrevista de Dácia Ibiapina descortina aspectos de uma situação social e política que ambienta o festejo popular. As forças invisíveis que surgem no discurso do pagodeiro Bitu são capazes de imobilizar os corpos das pessoas pobres (sobretudo as mais velhas), e também podem suscitar reações bastante inventivas, como é o caso do pagode. Nesse contexto de precariedade material, devido ao desemprego e à inflação, os pagodeiros de Amarante colocam as pessoas a “pular prum lado e pra outro” numa coreografia alegre. Uma resposta criativa às forças petricantes que emergiram das entranhas do “Milagre Econômico” do governo militar.
Da entrevista saltamos para o festejo popular. Com a câmera na mão, a documentarista se imbrica no outro em festa: é noite de saliva, suor e pagode em Amarante. Homens e mulheres comem, bebem e dançam girando de um lado para o outro da roda iluminada por alguns refletores. Nos interstícios da movimentação dos corpos, distinguimos semblantes embebidos de suor e pagodeiros tocando seus instrumentos. Os pés dançantes enquadrados em plongée (de cima para baixo) evocam imagens de um filme realizado dois anos antes por Leon Hirszman, Partido Alto (1982). Ambas as obras se dedicaram a uma observação e escuta atentas às diferentes formas da criatividade popular a partir de engajamentos etnográficos de casos particulares: o pagode no Piauí e o samba de partido alto no Rio de Janeiro.
A montagem do curta de Dácia Ibiapina entrelaça imagens das pessoas dançando com entrevistas com os pagodeiros. Além disso, é possível distinguir um motivo visual que se tornou recorrente no cinema da diretora: a observação das pessoas na labuta. No meio do festejo, a documentarista desvia nossa atenção para as mulheres que preparam a refeição do pagode. São trabalhadoras de movimentos manuais ágeis que se colocam na tarefa de descascar laranjas a fim de colaborar para a nutrição da coletividade na farra.
A noite se encerra e o dia ressurge. Acompanhando o movimento do pagode que não cessa com a noite virada, a câmera curiosa da cineasta deambula pelo espaço como se tentasse mimetizar o movimento dos corpos. Explorando a silhueta escurecida das construções à contra luz da manhã que se anuncia, Dácia Ibiapina rascunha desenhos com sua máquina-mão, brincando com os volumes negros das casas e árvores.
Frame do filme O pagode do Amarante (Dácia Ibiapina, 1984)
O pagode de Amarante inventa uma instância que acolhe a alteridade e dá tempo à performance popular, nos oferecendo uma etnografia sensorial do movimento dos corpos que se misturam articulada ao ritmo intenso do pagode e aos discursos das pessoas entrevistadas. Este poderoso experimento procura antes performar em relação à alteridade e produzir uma ação no espaço citadino do que representar cidades e culturas.
Se aproximando do happening e da performance, o filme realiza um engajamento sensual com a festa popular. Dácia Ibiapina nos presenteou com um curta-metragem de texturas que coloca a vida em seu devido lugar: em movimento. E eu, que sou duro como uma rocha e nem ao menos sei dançar, o que farei depois de assistir a esta raridade no atual contexto de petrificação no Brasil e alhures? Eu quero mais é cair num pagodão!
A relação do cinema com a palavra – escrita, falada, intencionada – é inerente à linguagem dos filmes narrativos e condensa seu rumo após o cinema das atrações. Seja pela relação direta como cartelas que comunicam intenções, sentimentos e caminhos de um filme sobretudo na fase do “cinema mudo” indo daqueles que mais investiram no lirismo das imagens como Dreyer ou daqueles que usavam palavras como um complemento às ações corporais como Chaplin e Buster Keaton. Há outros, como Jonas Mekas ou Hollis Frampton, que usufruíram da força das letras e palavras para comunicar, ou aqueles como Godard, que pagam tributo à palavra pela força da leitura, ou como Straub e Huillet, que transformam o exercício de compreensão em beleza. Ausência de explícita comunicação como forma de tensão narrativa e de representação, como são os casos de Chantal Akerman e James Benning, por exemplo, também perpassam a relação das imagens e da comunicação.
Se hoje é possível vermos uma teia de elementos de comunicação em um só plano em filmes como Unseen (Yoko Onomura, 2023), Desaparecida (Missing, Nicholas D. Johnson, Will Merrick, 2023) e Unfriended (Levan Gabriadze, 2014) na junção da palavra, mensagem de textos, imagens de desktop com o desenrolar da trama, chamam atenção dois realizadores contemporâneos que, de formas distintas, realçam a relação com a palavra e o verbo. A realizadora argentina Lucía Seles, de carreira prolífica e de método rígido em relação ao desenvolvimento de trama e construção de personagens, e o norte-americano Charles Roxburgh, que baseia suas comédias na verborragia e no como ela molda o cotidiano absurdo de seus personagens.
São dois realizadores que residem em extremos opostos quando pensamos em construção e efeitos. Seles desenvolve suas tramas como contos passíveis de seus próprios comentários. Eles vêm em frases escritas na tela, tal qual uma mensagem de texto em um desktop movie. Ela comenta o caminho dos personagens, as locações, as reviravoltas e, claro, seus próprios métodos. Já Roxburgh utiliza de formas estabelecidas na sociedade moderna, como propagandas para televisão, espetáculos de stand up-comedy ou palestras, para dialogar com situações que se costuram muito bem com o subúrbio americano, local no qual seus filmes se desenvolvem.
Roxburgh sempre trabalha em parceria com Matt Farley, protagonista de todos os seus filmes e que dirigiu Local Legends: Bloodbath (2024), longa-metragem que serve como representação satírica do pequeno núcleo que representa o cinema independente, sobretudo dos realizadores que usam de seus arredores e amigos para filmar e, que no primeiro lampejo de reconhecimento, entram em crise. Farley simplesmente utiliza das cartelas para afirmar que se trata de um filme de Roxburgh, ou seja, não há grandes mudanças nos métodos de composição. Bloodbath parece sair do mesmo mundo de Boston Johnny (2023) e Heard she got married (2021), estes sim dirigidos por Roxburgh, que está no elenco do novo filme de Farley.
Em comum, Seles e Roxburgh têm seus próprios universos desenvolvidos pelas palavras. Em Seles vemos os mesmos atores, personagens, locações e que aos poucos passam por mutações como uma série de filmes que muda de temporada, a exemplo da “tetralogia do tênis” composto por Smog en tu corazón (2022), Saturday disorders (2022), Weak rangers (2023) e Terminal Young (2023). O método de Seles segue intacto em seus mais recentes filmes como The Urgency of Death (2023) e Escuela Privada Alfonsina Storni (2024), mas o que chama atenção desta primeira “série” são as respostas vindas na mesma forma que seu método como vemos nas reações do público via Internet registradas pela Revista Caligari:
Roxburgh recomeça suas intrigas a cada filme, porém, como Seles ou Sang-Soo, seus métodos e referências dizem mais que os próprios personagens ao (re)compor seu mundo no subúrbio norte-americano. Frequentemente composto por relações do “dizer”, ou seja, recontar o que foi dito e, neste ato, ter tempo para ouvir as palavras escutadas com mais – ou menos, dependendo do caso – atenção e caminhar, durante o filme, para embates envolvendo situações passadas, Roxburgh condensa a vida cotidiana e seus pequenos curtos-circuitos. Seja em uma promessa feita que é obrigada a ser descumprida e que levará às mágoas de um homem a explodir, ou um homem apaixonado que tocará suas músicas em um restaurante para conquistar o seu amor e renega a força de uma boa conversa, o diretor cria teias de relações de caos e bonança com o humor que lhe é característico e que dá espaço para seu protagonista-parceiro Farley refazer seus caminhos e ironizar este feito.
O que difere de Farley a emular Roxburgh com John Turturro a fazer um filme de Woody Allen em Fading Gigolo (2011) ou Alfonso Arau em Picking up the Pieces (2000) por exemplo, é como sua frontalidade é passível de mudanças suaves como um divertido jogo dos sete erros. A pergunta é justamente se Roxburgh se comunicaria da forma que Farley ou se teríamos uma abordagem distinta. Este ruído que é intuitivo entre Roxburgh e Farley toma corpo na filmografia de Lucía Seles que utiliza de espaços coletivos – clubes, colégios – e pauta o espectro social e as distorções e repercussões das palavras ditas ou intencionadas. Como uma grande ação do ver e ouvir, Seles se permite intervir como uma ouvinte sentada à mesa com aqueles que contam a história, com seus braços cruzados e com frieza cirúrgica pronta para rebater o que se vê e o que se diz, ou, simplesmente, assumir suas identificações com personagens, espaços, situações e emoções. Dois casos ricos do cinema contemporâneo sobre a plurivalência do ensejo, mesmo quando se assume como diversão domesticada – ou poesia do mundo capitalista e que produzem em alta escala pois têm muito a dizer. Como um dos personagens de Local Legends diz: “você faz filmes com mais velocidade do que eu para vê-los”.
“Se há uma coisa que pode ser encontrada na teologia chamada judaica em Kafka é sua virtual ausência do conceito de Natureza; em certo sentido não existe Natureza na Gêneses, já que o mundo é criado para o homem”. ”
Günther Anders, Kafka pró e contra
“Eu, como os cães, sinto a necessidade do infinito…Não posso, não posso satisfazer essa necessidade! Sou filho do homem e da mulher, ao que me dizem. Isso me espanta…acreditava ser mais! De resto, que me importa de onde venho? Se dependesse da minha vontade, teria preferido ser antes o filho da fêmea do tubarão, cuja fome é amiga das tempestades, e do tigre, cuja crueldade é reconhecida: eu não seria tão mau.”
Conde de Lautréaumont, Cantos de Maldoror
Em seu Le champ aveugle, Pascal Bonitzer tem uma intuição de vertiginosa profundidade genealógica, quando nos diz que o cinema começou escatológico (no burlesco: Fatty Arbuckle , Sennet) e terminou frígido, com Marnie de Hitchcock: esta História feito cristal teve seus paradigmas, suas exceções, seus heresiarcas e asseclas, mas no Relações de classe (adaptação do América de Kafka pelo casal Straub e Huillet) ela adquire, para nos intrigar e enlevar de fascínio, uma mecânica muito bem torneada, oleada, escorreita e lisa, mas em todo caso uma mecânica: na citação intertextual do encontro de Karl com o policial saído diretamente de um Chaplin da Mutual, temos a sensação de que algo de muito antigo e nobre acedeu novamente à profundidade de campo de uma tela de cinema, e nos convoca para indagar de suas origens; o policial corre, apita, corre de novo (atrás de Karl, que por sua vez foge impromptu), e acaba por perdê-lo para um cubículo estreito e vertical onde Delamarche espera o rapaz para tapar-lhe a boca; em um découpage causalista de soberana potência demonstrativa (ou deveria dizer “monstrativa”, forçando os limites da língua para falar da fulgurância do gênio?), um plano para cada ação e uma ação em sequência da outra, Straub e Huillet se utilizam da diligência mecânica do burlesco para nos falar de corpos autômatos, da tragicidade do autômato espiritual que recupera o Kafka cartorial de seus últimos romances para se apresentar numa arte materialista, onde figurar um corpo que se precipita espaço abaixo é uma questão seminal.
Um moto perpétuo de engrenagem que adquiriu autonomia, uma inconsciência automática, um encadeamento de causas e de efeitos que se implicam reciprocamente são os comandos desta sequência fabulosa, sobretudo se a pensarmos como uma exceção, visto que ao longo de todo o filme o expressionismo reivindicado por Straub e Huillet se nutriu de um classicismo muito à americana, tamisado de luz e sombras, découpage elementarmente arquiteturado (campo, contracampo, entradas e saídas de campo, raccord diretivo do olhar, em suma, uma transparência elementar, que só se recorda da câmera para um sibilante flerte com o extracampo do texto onipresente: Kafka, Mallarmé, Pavese, Corneille), mas de um espaço coordenado pela vontade de potência de um escriturário de cartório; Straub, numa entrevista a Positif, nos falava de sua nostalgia pelo grão do som dos primeiros falados, de Lang e Féjos e ao Man to man de Dwan, e aqui como em seus melhores ele sabe destilar a pregnância de um da-sein (ser aí) que poucos tardios souberam reencontrar (sim, pois houve um Era uma vez na sua história onde o cinema, com Lumière e Secondo de Chomon, foi “aí”; as mediações todas vieram depois, e paulatinamente), mas este ser-aí só o “é” se o pensamos como o atalho a posteriori para uma consumação da história do cinema clássico e expressionista alemão (este encontrou na América uma suprassunção dialética de sua atmosfera, seus personagens assombrados e seus cortes abruptos do inconsciente do personagem para o cenário de cartolina pintada onde este se exteriorizava, enfatizando-se o fato nada fático de que a América castrou o stimmung histérico do expressionismo e ficou apenas com o esqueleto ou estrutura de seu cenário mental e objetivo, como os dois últimos Lang tão bem ilustraram); o “ser aí” do casal Straub e Huillet, porém, veio ao final de uma História, e assim reencontrou seu começo, mas o preço a pagar foi um diálogo de sombras urdido pelo agenciamento, ativo mas minimalista, das sublimes mediações de majoritária História aurática do cinema, arte é bom lembrar herdeira do extracampo da pintura e (um tanto menos) do teatro; mas como Straub e Huillet, adaptando um autor de escritura cartorial como Kafka, vão acabar por reencontrar a presença suntuosa dos primórdios do cinema falado? Em que medida a palavra, avara de enfeites mas não de metáforas, de Kafka vai servir de uma plataforma inexcedível para esta adaptação segundo a letra e o espírito de sua novela americana?
Em uma carta a seu amigo e executor testamentário Max Brod, Kafka, aqui um rabino niilista, escrevia: “Há um ponto além do qual não há a possibilidade de retorno; é este ponto que devemos atingir”; o ponto teleologicamente orientado para a tragicidade do no return, no casal Straub e Huillet , é precisamente este aí: o murmúrio de ramagens das árvores, as pegadas do homem no espaço, sua respiração, o trateio de sua fala entrecortada de saliva e ar; e qual palavra senão a protocolarmente neutra de Kafka ( os franceses diriam: a palavra do on, do pronome indeterminado que envolve o nós e o eles) é a necessária para ressentirmos, como uma mosca na teia da aranha ou de um corpo no furacão, a resistência que os elementos, naturais e humanos, opõem ao sentido ideológico-metafísico, para a perversa preeminência da Ideia sobre o ser? Como bem pensava Daney, a resistência dos Straub é da ordem da rocha: um túmulo para o olho, é como ele diz mais precisamente; tudo o que é resiste à cooptação pela ideologia, pelo significante, pela alienação geral do homem decaído do cotidiano (Heidegger), pela metafísica da subjetividade, etc, e se Kafka é paradigmático desta condição, mais ontológica que política (mas também política, ambas devidamente coordenadas por uma reflexão imanentista) é porque o seu texto mata-mosca só permite filtrar aquilo que resiste igualmente ao sentido fácil e frívolo, à flor da pele, à perigosa sedução pela prosa engalanada do beau siècle, que os Straubs exorcizaram com seu decoreba de cooper de dicção cosmopolita na adaptação do Corneille de Othon: se os Straub o escolheram, antes de tudo é porque, autores austeramente quakers, as sentenças lacunares do autor tcheco (como Lucrécio, como Mallarmé, citados expressamente por Straub em entrevistas e corpo a corpo com a redação dos Cahiers) permitem a incrustação, a captura, a cooptação do essencial, um exorcismo da superfície e do anódino em nome de uma profundeza dialogal com o passado, da história da literatura, do cinema ou do Talmude, de sua fixação no coração da presença filmada: elas exigem ser preenchidas, como o fora de campo do cinema tardio straubiano, pelas interjeições expletivas, índex de atenção humilíssima aprendidas pelo espectador ao cabo do filme-Lição; no caso do casal hermeneuta, com tudo aquilo que “é aí”/da-sein ao alcance da mão do homem e transcendente ao seu domínio programático, prático-inerte; mas também porque, em corredores ensombrecidos, Straub pode designar a presença/ausente do expressionismo metafísico de Night of the demon de Tourneur ou Sétima vítima de Lewton/Robson, por exemplo: ao puxar para si o classicismo americano como metro de toda figuração, o casal também está se assenhorando do expressionismo, cujo maior legado foram as obras em chiaroscuro e unheimlish da América profunda; este aprendizado de centrar toda a atenção naquilo que resiste se faz pedagogicamente no Relações de classe, como num bildgsroman filosófico, paradigma Wilhelm Meister e Fenomenologia do espírito: cada encontro ( com o foguista, com Delamarche, com o garoto do ascensor, com Brunelda, etc) vai permitindo a Karl ascender a um grau superior de know how sobre o que o cerca, sobre o fenômeno e a ética e a necessidade insofismável de achar uma ponte entre eles: esta operação, como num espelho convexo de epifanias fulminantes de alteridade, também tem por objeto a percepção do espectador, é claro, porque sem isso ainda seríamos clássicos; é a neutralidade háptica do mundo que resiste, a heterogeneidade do sintagma e do plano que persiste resistindo ( Daney ainda: “(…) disjunção, divisão (…) o olhar a e a voz, a voz e sua matéria, seu grão); à montagem ideologizada, dicotômica significante/significado, superestrutural dos russos o incipiente cinema falado americano resistiu com o grão da fala, do rugido do vento, da burilação do espaço pelos corpos: ao terrorismo dos constructos russos, o cinema falado resistiu, como as sentenças lacunares e protocolares de Kafka resistem (modelo das fábulas e ditados do Talmude judaico, a lei oral que permitiu a sobrevivência da doutrina hermeneuta do rabino Hilel) ao senso-comum, ao prático inerte da literatura de consumo rápido ( e portanto também ao capitalismo, sistema que a endossou porque ganha um usufruto infinitamente sórdido com ela); os Straub, sem o declarar, fizeram outro filme de inspiração rabínico/materialista (e qual grande cineasta não cerziria o Segredo segundo o anátema da matéria, daquilo que ainda resiste ao filisteísmo doutrinário?), à semelhança do Fortini cani e do Moisés e arão: Kafka era um sábio talmudista laico que, como na balada de Wilde, não ousava dizer seu nome, e foi incólume aos ventos do Sul- um tanto como na revolução dos passos de pomba nietzschiana- que ele nos deixou algumas das páginas mais belas sobre o Totalmente Outro, agora em chave imanentista/burocrática, do século 20.
Ao elegerem Franz Kafka como o estilista menos estilista de todos ( aquele para quem o estilo é antes de tudo um problema, uma questão: como o teorema de Gödel, sempre infenso à resolução do raciocínio fiável), o homem da prosa plana e do sintagma elíptico, o casal Straub e Huillet, fiéis à letra e o espírito do rapazote burocrata de Praga, elevaram-no à condição de clássico que um filme ruim como o de Orson Welles lhe negara de forma brutal; e para terminar: não tenho como capturar neste texto o tempo intempestivo de Relações de classe, como capturo seu espaço anfractuoso e saturado de luz, mas revejam e reparem que Huillet, montadora do casal, sempre nos dá um tempo maior antes e depois no plano ocupado “há pouco” por uma pessoa ou um objeto ( de pronto: a valise de Karl, a estátua que abre o filme e a estátua da Liberdade, etc); é seu jeito de resistir mais metafísico: um pouco de tempo em estado puro antes e depois, um infinito tempo incrustado num plano de densidade inquebrantável; ao cinema terrívelmente ruim que hoje nos bate à porta vindo de todas as partes do mundo, a resistência ofertada por Kafka, Cézanne, do casal Straub ( como também de excelsos cineastas como Apichatpong, Costa, Claire Denis, Stanley Kwan, Eugène Green, Kiyoshi Kurosawa e Rousseau) é um alento, uma inspiração e a realização de uma Promessa para a cinefilia penitente.
”E então, tudo é loucura – a loucura de uma memória que se ocupa de coisas proibidas.”
Edgar Allan Poe, O Poço e o Pêndulo
Adaptados diretamente para o cinema por diretores como Jean Epstein, Edgar Ulmer, Dario Argento, George A. Romero e Lucio Fulci, os contos de Edgar Allan Poe também inspiraram diversos outros cineastas que trabalham com o imaginário do horror gótico dos mistérios sobrenaturais, cuja obsessão com fantasmas e maldições mantém sua influência no terror até hoje. Entre 1960 e 1964, o diretor Roger Corman realizou algumas das mais famosas adaptações do escritor, oito longas-metragens baseados nos contos do americano no que ficou conhecido como o “Ciclo Poe”, da American International Pictures. Para essa edição da Multiplot!, focada no diálogo e nas interseções entre cinema e palavra, pensei imediatamente em dois dos filmes desse ciclo: O Poço e o Pêndulo, de 1960, e A Orgia da Morte, de 1964 – duas adaptações particulares por suas sintonias finas entre a adaptação das tramas e de suas viradas, incorporando a essência do medo que atravessa os escritos de Poe para além de suas intrigas. Como o cinema de Roger Corman, que ao lidar com o fantástico buscava entender o desconhecido, sentir o mistério, descobrir a distância entre o palpável e o etéreo, lida com um escritor cujas imagens de horror perduram por mais de um século no imaginário cinematográfico?
A morte contra o tempo
No conto O Poço e o Pêndulo, a morte em Poe é vista por fragmentos: o narrador enxerga chamas que aos olhos se confundem, alguém cujos algozes desconhecemos, que sabe apenas por imagens imprecisas que caiu num poço cuja armadilha pende de cima, e se aproxima a cada instante. A descrição minuciosa do espaço ao redor mapeia diretamente o olhar do narrador que tateia, no completo breu, essas paredes, intuindo seu cárcere apenas pelas medidas dos seus pés e mãos – uma imagem hipnotizante, mas bastante complicada de se transpor para o cinema. Diante dessa escuridão de base, Corman toma outros caminhos, e junto do roteiro do grande Richard Mathieson, capta o que Poe oferece de essencial em espírito para a sua atmosfera de opressão, e principalmente de contexto histórico: a complexa cela, palco dos sadismos de homens invisíveis, era instrumento de tortura da Inquisição Espanhola. É através dessa pista, a princípio apenas contextual, que Corman encontra a danação da alma que quer filmar.
As cores abstratas do início do filme, escorrendo pela tela, apresentam um contraponto ao escuro apavorante que Poe descreve no conto: o que era indistinção de luz no breu literário vira indistinção das formas nas imagens cinematográficas; são imagens que preparam terreno para o prólogo que, sem diálogos, já antecipa a chegada a um lugar sombrio sem recorrer ao desespero inicial de desorientação de Poe. É justamente porque o interesse de Corman é mais num mal-estar construído aos poucos, não da clausura forçada da cela, mas a clausura consentida da conveniência do castelo; menos uma prisão espacial e mais uma prisão temporal.
Esse é um dos mecanismos narrativos que explicitam como a transposição do texto de Poe para o filme é mais detalhada nos seus comos e porquês: o roteiro é focado nas intrigas familiares que disparam o contexto para a armadilha do título ser filmada – uma cerimônia em torno daquela armadilha que não causa o mesmo choque proposto por Poe, mas adere à violência física e simbólica que, tanto pela forma de narração quanto pelo contexto histórico de opressão institucionalizada, já estava no texto.
A ambientação da inquisição espanhola do conto original é colocada em perspectiva pelas lembranças familiares do protagonista: filho de um inquisidor que mantinha no castelo as máquinas de tortura como troféus, Nicholas precisa lidar com um espaço que teme e odeia por mera letargia cerimoniosa com seus deveres familiares. A violência se torna uma herança histórica maldita, um pesadelo formado no sangue do personagem de Vincent Price, cuja casa é amaldiçoada justamente pelos crimes do passado de seus familiares. O tormento de sua esposa morta, que sentia medo do que aquele castelo guardava, permanece entre os corredores como uma assombração, uma rara presença extracorpórea que percorre o filme.
Para discutir esse fantasma que ronda o castelo, Corman usa de demais imaginários da escrita de Poe. Outra das imagens que atormentam o protagonista, os retratos de sua esposa morta, vem como mais uma herança de Poe, especialmente no conto O Retrato Oval, que também falava sobre quadros pintados em homenagem a almas tão perturbadas que permanecem vagando como fantasmas. Ao pintar o rosto de sua esposa, Nicholas simbolicamente a mantém viva, vigilante por uma casa que não suporta sua perda, cujas criptas escondidas revelam os segredos que psicologicamente a consumiram. À medida que vemos flashbacks do passado de ambos, e conforme o irmão da falecida descobre mais sobre o castelo e seus habitantes, vai se construindo um mal-estar que mantém no seu centro um crime do passado que projeta sua sombra pelas paredes do lugar.
Quando a grande revelação acontece, não por acaso, os doppelgängers se enfileiram, porque a intriga do presente se torna a do passado, com seus adultérios provocados quase que pelos espíritos violentos da casa. Um histórico de horror é tornado concreto pelo salto entre o simbólico e o literal: Nicholas, o homem apaixonado e traumatizado que passou uma vida a negar a herança maldita de seu pai homicida, abre seus olhos diante da traição de sua esposa e de seu amigo para ser legitimamente possuído pelo espírito do pai inquisidor. Essa mudança, magistralmente conduzida por Corman ao encenar a queda da escada – para que nos lembremos que quanto mais profunda a viagem para o subsolo, mais descobrimos o horror desse passado – é trágica pelo seu peso do inevitável, um legítimo sentimento gótico herdado de Poe sem nem ao menos estar no conto original.
A armadilha do poço e do pêndulo, que no texto de Poe evoca a leitura dos dois acertos de contas com o destino, o inevitável manifestado ao norte e ao sul do narrador, aqui é a ferramenta de tortura contextualizada de um homem cuja vingança tem os laços sanguíneos que buscou recusar uma vida inteira. O que em Poe eram dois abismos de existência – cujo resultado só podia ser a morte exemplificados pelo pêndulo cortante e o poço escuro e infinito – aqui é lido sob uma ótica de fatalidade histórica: os dois abismos têm suas origens no que a família conjurou para sua linhagem, instrumentos de tortura institucional que se espalham pela História como ferramentas também de vinganças pessoais, passionais, conjugais. É um dos muitos trunfos do roteiro de Mathieson: para mantermos nas referências literárias, se adapta não a Júlio César, mas sim ao espírito de Roma.
A morte contra Deus e o diabo
Em O Baile da Morte Vermelha, a extravagância do príncipe Próspero, o anfitrião do baile do título, é sentida principalmente pelo seu apreço pelos rituais da festa: há um badalar constante que arrepia a espinha dos convidados, a forma que organiza as cores variadas de cada espaço no conto, salões declaradamente caracterizados pelo narrador pelo seu potencial de horror, há uma sensação de movimento constante entre os convidados, e um espectro de controle, de poder sobre seus vassalos, que ronda o castelo muito antes da Morte Vermelha dar as caras; uma obra in loco, friamente calculada por um anfitrião que pensa como Deus. Em A Orgia da Morte, sua contraparte cinematográfica, o príncipe Próspero, vivido também por Vincent Price, pode até pensar como Deus, mas sua fé é enquanto servo devoto de Satã.
A Orgia da Morte logo apresenta muitos dos lugares conhecidos do conto, como as câmaras coloridas e o relógio cujos badalos suspendem as almas alheias por um momento. Mas também se estrutura como uma conversão do rigor de Poe para uma narrativa novelística, condensando as ações e as intrigas mais em volta do espírito e da poética da prosa de Poe, e menos em sua trama. Aqui, o diretor é bem mais fiel ao conto original que em O Poço e o Pêndulo, mas não deixa de tomar suas liberdades tanto narrativas quanto analíticas. Em Poe, o papel da morte é onipresente por sua implacabilidade quase científica, uma peste que arrasa um castelo como forma tanto de demonstração de seu poder absoluto – que não conhece marcações de território –, quanto de vingança moral contra um homem que julgava controlar o destino de si e dos que tiraniza. Aqui, esse julgamento moral é mantido em foco sob uma constante disputa de fé, entre Próspero e Francesca, entre Deus e Satã, entre Satã e a Morte. Interessa a Corman os iconográficos variados do inevitável, e para isso filma outras formas de misticismo, do tarô ao ritual de sacrifício, passando também pela religião.
Desde o prólogo, o filme de Corman vai numa raiz religiosa punitiva da peste, como o início de A Maldição do Demônio, de Mario Bava – não por acaso um sucesso de bilheteria nos Estados Unidos, que foi trazido ao país pela mesma AIP. O príncipe de Vincent Price condena o pequeno vilarejo ao fogo sem pensar duas vezes, e a destruição daquela gente humilde assombrada pela tirania humana e da peste permanece um espectro que consome A Orgia da Morte. Como Bava, Corman filma formas de encarar imagens amaldiçoadas pela disparidade social, por quem os poderosos marcavam como hereges e dispensáveis, desde os sacrifícios religiosos até as humilhações às quais os convidados são constantemente submetidos. Nesse sentido, é marcante a sequência dos camponeses que pedem pela clemência de Próspero para que ele os deixe entrar no castelo e se proteger da peste: ao recusar, o conde ordena a morte de todos (menos de uma criança), e os seus guardas sacam as bestas e disparam flechas sem cerimônia, sem piedade ou hesitação – mortes brutais filmadas de forma ríspida, seca. O corte a seguir soa ainda mais cru, porque exemplifica bem a indignação social de Corman: imediatamente depois das mortes, vemos o banquete que acontece no castelo, dos visitantes que estão entre reféns da crueldade mística do rei e felizes súditos de uma terra arrasada.
O badalar do relógio do conto aparece no início, um marcador momentâneo do horror, que relembra aos presentes a sua efemeridade e, principalmente, a sua clausura – mas são pequenos toques estilísticos de ambientação cuja importância no conto é consideravelmente maior. Não deixam de ser bons motifs visuais na construção estética do filme, mas estão lá por outros motivos narrativos, da mesma forma que os salões de luzes coloridas, aqui adaptados para uma cripta que esconde os desejos mais ritualísticos do conde e de sua esposa. Convém mais à batalha espiritual do filme que essas criptas sejam menos esboços de um esforço intelectual de construção de terror por parte do príncipe, e mais locais pregressos de tortura, cuja oferenda é para seu mestre sobrenatural. A última cripta, preta com luz vermelha, é o local principal das cerimônias, a igreja de Satã cujo uso diário de repouso dos seus vassalos reais está sempre pronta para ser usada como altar de sacrifícios e pactos.
Não por acaso, a Morte Vermelha confronta Próspero nessa sala. A morte surge como punição do culto a Satã, um acerto de contas que arrasa com um homem que pensava enganar a morte ao ser também súdito de uma autoridade maior, e que encontra na Morte Vermelha um oponente tão poderoso que usa de seu rosto para amaldiçoá-lo para sempre – mais um duplo na leitura de Corman aos textos de Poe, uma curiosa ideia que não está presente nos contos.
No conto de Poe, o confronto místico se dá enquanto plano estético: a peste personificada em um corpo que transita pelo baile, mas cujo alcance não deixa de ser científico, não religioso. Já no filme de Corman, como recompensa a todas as discussões teológicas no confronto de fé entre Francesca e Próspero, a representação se torna ainda mais etérea: no clímax, ao espalhar a doença por todos que se julgavam seguros dos horrores, Corman filma uma dança macabra como um ataque zumbi, da peste que se espalha pelo salão até a morte de todos, como um equalizador das castas – a Morte Vermelha mostrando aos humanos que seu alcance é vasto e oferece vidas como forma trágica de provar sua supremacia diante das deidades que cultuamos. Tragédia essa reconhecida pela Morte quando encontra seus pares, as outras responsáveis por pestes, trajadas com vestes que ecoam justamente as câmaras coloridas do castelo; entidades destinadas a continuar a espalhar o horror inexplicável e inapreensível da morte.
É nessa repetição da violência que Corman encontra Poe, uma linhagem de horror que se recusa a cessar diante da mudança dos tempos, cujas ideias aproximam muito os dois filmes. Em certo momento, Próspero diz que, nas criptas subterrâneas sua família, tortura pessoas há pelo menos uma centena de anos, como se Vincent Price aqui fosse uma continuação do inquisidor de O Poço e o Pêndulo e um oposto de seu filho, três personagens marcados por um histórico sanguinário. Esse mal-estar, essa contemplação estupefata do horror, atravessa as palavras de Poe nos dois contos originais e em muitos outros, e aqui ganha no corpo da História, explicações dolorosas para esse mal que paira sobre a Terra, e que o escritor americano nem sempre se interessava em mapear o porquê dele. Nessas duas brilhantes adaptações, as raízes da violência têm em seu coração as trevas do exercício apavorante de um poder que se julga ilimitado até encontrar autoridades mais fortes. Seja no destino inevitável da morte, seja na repetição terrível do tempo, sentimos a respiração de dois monstros invisíveis e metafísicos cujas concretudes ganham corpo, quadro e movimento com Roger Corman.
Séculos distante da trilogia tebana, da tragédia fundadora de Édipo, que marca o destino de sua família, em Mugunzá o que vemos é uma história tipicamente brasileira: a vida de uma mulher negra e lésbica lutando contra as opressões cotidianas em uma cidade pequena e cuja luta por dignidade e liberdade parece atravessar gerações, todas marcadas por dilemas de fundo semelhante: raça, sexualidade e classe.
Apresentando Arlete – interpretada por Arlete Dias – como narradora e personagem principal, acompanhamos o desenrolar de alguns capítulos de uma vida insubmissa: mãe, dona de bar e crítica da situação política de sua cidade, Cachoeira, essa figura se vê perseguida dentro de sua própria casa, onde a encontramos devastada desde a sequência de apresentação.
Arlete vive enquanto narra, reivindicando sempre a palavra a partir da necessidade que sente de contar a própria história. Na esteira disso é possível dizer que uma das forças desse filme é seu texto, que tem uma importância antiga, muito anterior ao cinema, remontando a oralidade como transmissão de conhecimentos.
Essa força da palavra, aliás, é característica da já profícua trajetória da dupla de diretores Glenda Nicácio e Ary Rosa, cujos filmes, desde Café com Canela, entre diferentes escolhas de procedimentos, se ancoram sempre na importância de uma comunidade, nas formas como as opressões cotidianas atravessam os corpos negros e o desenrolar de histórias de pessoas que se negam a ceder a elas.
Entre escolhas que chamaremos aqui de artesanais, como locações únicas e a forte presença dos atores em cena, com seus textos e sotaques afiados, a impressão é de que todos os procedimentos arranjados para contar essa história são calcados em pressupostos ancestrais, desde griôs e a oralidade, passando por bardos e arautos – de onde tirei a referência às tragédias gregas clássicas -, passando pelo teatro, – escolha escancarada em Mugunzá -, esses artifícios artesanais, experimentais para o cinema, se resolvem concentrando toda a potência do que vemos na tela no corpo dos atores, e não há dúvida de que o filme exista em função de Arlete Dias, antiga colaboradora de Nicácio e Rosa.
Recusando encarar esses procedimentos ou escolhas dos realizadores como necessidade pautada pelo material e encarando o minimalismo da estrutura de palco, locação única e um ator – Fabrício Boliveira, em cinco papéis diferentes – como potência narrativa, é feita uma economia de estímulos que guia a atenção na direção da história contada, apostando no jogo de criação de mundo conjunta com o espectador.
As canções originais compostas por Moreira ganham uma dimensão popular de discurso público cifrado em algumas cenas, como a despedida do casal de amantes, Arlete e Prefeitinho, cada um, ao seu modo, declarando intenções de forma difusa sobre o futuro da relação. E é esse apelo popular ancorado por personagens que, se não documentais, são inspirados em figuras facilmente encontráveis na realidade de Cachoeira, que vem como outro ponto forte do filme.
A anedota sobre a presença de uma empresa de exploração mineral que busca apoio na força de uma mãe de santo local para ter acesso a riquezas num fundo de rio traz aspectos religiosos, mas também de uma inteligência e modo de navegação social muito próprias do lugar, mais uma vez espelhando essa ancoragem popular do discurso fílmico, que na interpretação de Arlete Dias perde qualquer traço caricatural.
Essa arqueologia de formas de discurso popular, algo de pedagogia mas também de aviso sobre si, a revelação das armas possíveis de serem manipuladas por Arlete, passam despercebidas pelo olhar pouco apurado de Prefeitinho que, seduzido pela forma, não percebe as intenções declaradas da personagem frente a qualquer ameaça possível e ao seu profundo conhecimento do lugar Cachoeira, de onde ela se recusa a sair, mesmo sob forte pressão.
Ao final, a heroína destroçada produz uma teia elaborada para conduzir sua vingança, livrando a cidade de vários homens de poder numa única jogada, e, que azar de meu nego, que acabou levado a reboque. Que azar. “O mundo seguirá melhor sem você”, Arlete sentencia.
Ainda que a presença do personagem do Pastor sirva ao propósito de elencar mais uma opressão, a religiosa, no já pesado fardo crítico da personagem, a construção de sua entrada em cena não parece ter sido tão cuidada quanto os demais, carecendo de melhor elaboração. E, mesmo com toda a cênica da mãe que conta ao filho histórias de ninar nem tão bonitas, saímos do clímax para um dos poucos momentos em que o discurso não parece ter sido usado com toda a força que se constrói ao longo do filme.
Imperfeito, mas nem por isso menos interessante e propositivo de formas outras de narrar, Mugunzá é um exercício de estilo precioso, que referencia arquétipos populares, baianos, ao mesmo tempo em que dialoga com estruturas clássicas, num jogo gostoso de ser visto, seja pelo ritmo, pela presença em cena de ótimos atores, embalados por canções e a cadência do sotaque baiano que arremata um cinema muito brasileiro, um cinema do recôncavo.