Por Yuri Deliberalli
A religiosidade como um ponto de encontro da matéria, da presença física e da espiritualidade é um conceito que abarca estas três perspectivas em três longas-metragens que, dentre as diversas questões que abordam, procuram investigar os limites e abrangência da crença do ser humano em algo sobre-humano, intangível e não pertencente à ordem de seus atos. É essa vontade (e a credibilidade) da crença e do próprio ato de crer que levará os personagens a três formas distintas de encontro que, ao fim e ao cabo, validarão a noção de que a religião tem o condão de ensejar a harmonia e a ruptura das relações.
O modus operandi de Pasolini em O Evangelho Segundo São Mateus (1962) é todo alicerçado na premissa de um Jesus Cristo neorrealista, cujos atos milagrosos se aproximam da materialidade para alcançar a espiritualidade de seus ouvintes. Em suas pregações iniciais, Pasolini isola Cristo no plano frontal num sinal de que a palavra de Deus, desenvolvida enquanto um discurso radical de esquerda, não chega ao público com a força do fascínio e do encanto que deveria. Isto somente ocorre no momento em que os milagres materiais começam a ser operados por Cristo, porque apenas a consecução do bem material faz sentido para um povo acostumado à miséria.
A ideia de Pasolini é clara: Cristo somente conseguiria fazer a palavra de Deus chegar ao povo se usasse de meios identificáveis de assimilação do contexto espiritual, como, no caso, a transformação material dos bens. A atração do público não era exatamente o conteúdo, mas a demonstração empírica da palavra divina, como se Cristo fosse, na realidade, um mago. Religião enquanto matéria que traduz um significado espiritual e, portanto, vertente de manifestação política apta a causar a perseguição dos poderosos, razão pela qual o povo (e a câmera) se distanciam de Cristo em seus derradeiros momentos.
No mesmo filme, Pasolini articula a ideia de que a religião pode ser um elemento de sedução das massas, ao mesmo tempo em que pode causar a ruptura de todo um estado atual das coisas. É algo que Carl Theodor Dreyer também aponta em A Palavra (1955), ainda que em um grau diferenciado de abordagem. Aqui, a palavra de Deus é tida como um instrumento aristocrático, pertencente apenas à autoridade cristã e não aos membros comuns da comunidade como Johannes, que a prega aos quatro cantos da fazenda Borgen e é imediatamente taxado de insano. Caberá então a Johannes comprovar que não é palavra divina em si o meio de encontro da espiritualidade, mas sim a crença em tais escritos, alimentada pela fé mais pura (a fé de uma criança), que tem a capacidade de operar os verdadeiros milagres.
Não deixa de ser uma ideia de compreensão particular de manifestação da fé, alheia apenas à autoridade religiosa e presente em cada um dos indivíduos que, à sua maneira própria, manifestam a sua visão particular dos mandamentos religiosos. Johannes não é um padre mas é tão (ou mais) crente do que aqueles que possuem o encargo religioso e é a sua persistência na fé que acaba por trazer a união da família em torno de um objetivo comum.
Em uma família desintegrada pela dor da perda de um membro querido, a palavra é utilizada por Dreyer como um instrumento de reaproximação, seja entre tais membros da família, seja entre desafetos, como o alfaiate. Aliás, é no núcleo narrativo do alfaiate que Dreyer demonstrará que a interpretação pessoal dos escritos religiosos pode ser causa de conflitos pessoais e até mesmo sociais (a proibição do casamento), num sinal profético de que as guerras futuras seriam fundamentadas nesse fator.
E é desse sentimento beligerante proporcionado pela interpretação diversa da palavra divina que Martin Scorsese transita em Silêncio (2016), porque duas religiões não habitam o mesmo espaço ao mesmo tempo. Ou seja, a palavra de Deus é um meio de propulsão da violência contra os padres e japoneses que se aproximam de um olhar diverso sobre a religião dominante (o xintoísmo), razão pela qual a opção de Scorsese em tratar a questão religiosa como uma questão física, de penitência do corpo para preservação ou alteração da espiritualidade, se coaduna com a visão de que a crença é um ato de fé extremo, passível de sobreviver às mais duras investidas contra a materialidade do ser humano.
Curiosamente, o aspecto material é o componente-chave da discussão proposta por Scorsese, afinal, cuspir na imagem do Cristo crucificado e pisar no fumie significa trair a sua religiosidade ou é apenas um mero sinal público, naquelas circunstâncias, de sobrevivência, uma vez que o ataque à iconografia não implica dizer que houve renúncia espiritual à concepção religiosa? Ou, melhor dizendo, a ação pública traduz a verdadeira compreensão da sua própria religiosidade?
Como será comprovado no ato final, ainda que de um modo um tanto expositivo, é de que o sacrifício pessoal do padre Rodrigues não se confunde com o sacrifício espiritual, porque, embora preso fisicamente a um local, sua fé permaneceu intacta ao longo dos anos de cárcere. Sua religião o confinou ao abandono de tudo e de todos, mas também o fez encontrar o verdadeiro significado de sua aspiração espiritual.
Mais do que tratar do tema em si, os três filmes compartilham dessa busca pela verdadeira faceta da fé dentro de suas respectivas particularidades, sempre envolvendo a dicotomia entre o material e o imaterial como um subtexto narrativo. Em Scorsese isto é mais frontal, ao passo que em Pasolini e Dreyer é uma questão que permeia os respectivos filmes como algo mais conceitual do que concreto. Independentemente do método de abordagem, os três filmes estabelecem a desagregação causada pela religiosidade como um fator de incompreensão (a crucificação em Pasolini, Johannes como um louco em Dreyer e a tortura física em Scorsese) e a sua compreensão como um elemento de unificação (operacionalização do milagre em Pasolini e Dreyer e a autodescoberta da fé interior em Scorsese), reforçando o fato de que a crença na palavra divina, dada a sua condição de intangibilidade, está sujeita aos extremos dessa relação, mas sempre em busca de um ponto de conciliação.