Rastros e Palavras: O Canto das Amapolas (2023, Paula Gaitán)

Por Ana Júlia Silvino

Presumindo as operações da memória como gestos de fabulação e considerando as imagens como regimes de visibilidade que constroem ficções na realidade, o filme O Canto das Amapolas (2023) dirigido por Paula Gaitán é uma espécie de ensaio sonoro e visual que trabalha as operações da memória como rearranjos de signos, imagens e sonoridades. O som de uma conversa em extracampo entre Paula e sua mãe, Dina Moscovici, é o fio condutor de uma narrativa que aposta nos ruídos semânticos – quando o falante e o ouvinte têm interpretações distintas do sentido de certas palavras – e nas vibrações como estratégias de visionamento. A dificuldade em identificar na conversa quem está falando ou a veracidade do que está sendo dito é um instrumento não para conservar uma memória, mas para criá-la a trancos e barrancos, incorporando opiniões contrárias e jogos de palavras que deslocam os temas históricos de seus lugares pré-estabelecidos.

Indo na direção contrária de uma tendência do cinema brasileiro contemporâneo em que a voz em extracampo é usada como um mapa em busca de memórias familiares, Paula não está preocupada com uma elucidação adequada pela fala ou de trabalhar uma poética através de uma voz doce e feminina que apenas comenta o que está sendo mostrado pelas imagens. Em O Canto das Amapolas, na ausência de imagens que localizem o que está sendo dito, algumas palavras acabam se lançando ao vento. A impossibilidade do diálogo torna-se, portanto, uma proposição que lança perguntas ao invés de respondê-las. As palavras ditas possuem uma profunda fluência, são ideias sem filtro. A montagem intuitiva das manifestações sonoras do diálogo entre Paula e sua mãe está mais preocupada em mostrar o que está sendo dito, do que em sugerir um deslocamento poético ao espectador.

Gaitán se desobriga do compromisso de reprodução do real e da busca pela verossimilhança e causalidade para lançar-se à experimentação como ferramenta para engendrar movimento em tempo e espaço e produzir vestígios que se desdobram para além dos limites da tela do cinema. Ao escolher narrar pelas ausências e lacunas que são intrínsecas à própria noção de memória, Gaitán se dedica ao trabalho artesanal de prolongar a vida de sua mãe através do cinema e de reinventar a si mesma enquanto cineasta (ou como a filha que faz filmes), evocando essas duas corporeidades femininas e as confrontando ao mesmo tempo. Paula se filma em um espelho com a câmera na mão, escolhe inserir-se, corpo e voz, naquele universo como personagem da ficção de sua mãe. As imagens e cenas construídas por Paula Gaitán e Rodrigo Levy parecem traçar rastros nessas lacunas. São como tremores oníricos que se deslocam pelo – e através – do inconsciente da artista.

A cena de um cômodo com as janelas abertas e o vento pairando entre as cortinas é um momento que me remete à janela em Ostinato (Paula Gaitán, 2021), em que no espaço onde Arrigo Barnabé cria suas composições há uma janela com um livro posicionado no parapeito. O vento movimenta as páginas do livro e captura o olhar da espectadora. Em ambos os filmes, as janelas são frequentemente revisitadas pela montagem e operam como uma espécie de véu. Em Ostinato, a janela, ao mesmo tempo em que conecta o músico com o mundo exterior, também o distancia. Delimita o território. No O Canto das Amapolas, a janela é usada tanto para estabelecer um limite entre o espaço público e privado, quanto para suscitar a imaginação. À medida que o vento promove movimento dentro daquele espaço, somos convidadas como espectadoras a imaginar o que existe para além daquela janela. Imaginar Berlim para, só assim, conseguir reimaginar Paula ou Dina. Dar lugar e endereço aos fantasmas da memória que circulam pelo ar.

As mulheres que manifestam-se no filme podem, à primeira vista, parecerem deslocadas do primeiro fio condutor narrativo (o campo de batalha que é o diálogo entre Paula e Dina), mas são uma tentativa de dar corpo ao imaginário, construir uma fantasmagoria que se sobressaia à palavra e se mostre na carne. Esses corpos perambulam pelos espaços e suas posições oscilam entre a identificação e o estranhamento. São fragmentos inconclusos, assim como os discursos entoados pela voz. Não indicam nenhuma direção, apenas nos convidam a observar. Pela experiência e pela fruição de visionamento fica a certeza de que o que vimos é uma ficção ativa e fragmentada, sem o compromisso de se fidelizar ao regime representativo. O filme joga com as concordâncias e discordâncias das imagens e sons disponíveis para fabular sobre uma memória que permanece viva, se desdobrando em cada imagem, música, ruído e silêncio escolhido pela realizadora.

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