Só os lokos sabem: a noturna de Belo Horizonte (As linhas da minha mão, João Dumans, 2023)

Por João Campos

Comecei a caminhar no universo do cinema buscando formas de sentir o mundo para além da crise e da morte iminente – superar o inferno pela arte parecia meu desejo. No desespero de viver em ruínas, acabei vendo filmes demais e me tornei crítico de cinema desse jeito: emocionado, desesperado, apaixonado. Digo isso para contar que nessas trilhas jamais encontrei obra brasileira que encontre o sofrimento psíquico com tamanho cuidado e amor – talvez com exceção de Imagens do inconsciente (Leon Hirszman, 1988) – como As linhas da minha mão (2023), documentário de João Dumans vencedor da Mostra Aurora do Festival de Tiradentes deste ano. 

O filme de Dumans elabora um retrato de uma artista da performance de Belo Horizonte chamada Viviane de Cassia Ferreira, Vivi, ou Viva. Além de performer, roteirista e “estrela de cinema”, Viviane tem uma experiência no mundo marcada pelo sofrimento psíquico – algo que ainda é um tabu, apesar de fazer parte da vida de cada vez mais pessoas. Mulher cuja câmera de Dumans, que assina também a fotografia do doc, persiste em seguir em uma série de encontros. O filme é estruturado em sete sequências ou atos, cada qual aparentemente autônomo em relação ao outro.

Mas a montagem de Luiz Pretti constrói a argamassa que junta de forma orgânica os blocos de experiência produzidos pela máquina, fazendo do retrato algo mais próximo de uma colcha de retalhos. Tudo se passa como se Dumans, Viva e seus companheiros e companheiras de trabalho estivessem trabalhando num espaço limítrofe entre o plano e o descontrole – as intenções e o caos. 

E isso se dá nas escolhas formais da obra. Por exemplo: os planos no rosto da protagonista respeitam a duração não apenas dos seus relatos sobre arte, loucura, passado e sonhos, mas também parecem espreitar o improvável, a indeterminação de suas expressões faciais, as hesitações, as miradas que ela dá para o fora de campo – imagens prementes da fita de Dumans. O que ela olha?

Mas a câmera não registra apenas a face de Viva. O documentarista persegue o movimento do pensamento da performer através da escuta e da câmera próxima ao rosto, mas também procura registrar aspectos da cinética de seu corpo. Presenciamos contações de histórias em meio ao centro de Belo Horizonte, bastidores de performances, conversas com amigos como o Douglas, leituras de Nietzsche com seu primo Leo. A forma errática e libertária de Viva pensar encontra afinidades eletivas com seus gestos, movimentos, caminhadas e, por fim, sua performance que encerra a obra sob a luz negra de um quarto que, devido ao enquadramento oblíquo da cena, só podemos imaginar a completude pela força da especulação. Seu corpo cintila através de pinturas corporais fluorescentes na escuridão.

O filme se aproxima do corpo de Viva através de uma observação que utiliza movimentos de câmera para acompanhar as linhas de seu corpo – pele, cabelos, olhos, boca – mas também as linhas de movimento no espaço: os momentos de repouso ou prostração, mas também as situações de excitação. É um filme cuja mise en scène epidérmica nos lembra obras mineiras do passado recente como Sociedade dos amigos do crime (Dellani Lima, 2009) – longa experimental que Dumans participou como ator. 

Para acompanhar uma personagem que caminha no mundo entre a petrificação e a agitação, o documentarista utiliza diferentes operações. Primeiramente, é um filme que só foi possível por um encontro que produziu uma afetação entre as partes – afeto, confiança e, a partir daí, aventura juntos? Outras ferramentas nos levam ao cinema independente norte-americano de outrora em figuras como Jonas Mekas e Shirley Clarke, sobretudo em Portrait of Jason (197): o uso do plano-sequência, os reenquadramentos, zooms, ajustes de foco, isto é, formas de fazer a máquina acompanhar uma figura urbana incendiária – no melhor sentido do termo. A câmera hesita e também brinca, descontrola de leve, se deixa levar numa entrega total ao movimento da vida de sua interlocutora. É um cinema da amizade.

“Estou em movimento… aberrante”, nos diz Vivi. É o movimento de seu pensamento, sua invenção, sua perambulação que o documentarista procura (re)ensaiar em cada sequência. E a trilha sonora entra no jogo não para acompanhar as cenas, mas para criar novos arranjos de imagem e som, driblar um pouco nossos sentidos, produzir um pequeno caos em nossa barriga. É como se o filme se (des)estruturasse por um caos ordenado – um controle descontrolado? A trilha musical faz uma dança com as imagens – dança aberrante. Um equilíbrio instável entre imagem e som.

A montagem de Pretti interrompe nossa fruição dos blocos de encontros com Viva para instaurar um contra-ritmo que nos mostra algo de Viviane que não sabíamos por completo até então: seu ecossistema é urbano. Uma série de fotografias em preto e branco, realizadas pelo artista mineiro Desali em parceria com o próprio Dumans, cria trilhas escuras no meio do filme. Assistimos a uma amálgama de vistas urbanas do baixo centro de Belo Horizonte, zona da bagaceira boêmia da capital mineira. Viva deambula nas ruas, esquinas, bares: bebe e fuma e anda numa espécie de trotoar dissidente. Ela parece caminhar a ermo, notívaga errante, a noturna de Belo Horizonte? Quando o cinema filma bem a cidade, ele encontra sua parte maldita, diria Comolli. Ela veste uma camisa preta escrita: “Só os lokos sabem”.

Podemos dizer que As linhas da minha mão borda uma experiência de encontro entre o cinema e uma personagem urbana que nos mostra faces de sua vida entre a arte e a loucura. Isso acontece por uma observação radical do movimento de seu pensar, criar e caminhar no mundo. Seus relatos sobre os acolhimentos que vivenciou no SUS nos emocionam num tempo de renovação das políticas sociais de saúde e cultura de um país semi-arruinado pelo nazi-fascismo. O filme nos revelou uma presença inesquecível – força do desejo em meio à cidade noturna. Em tempos de reconstrução, é bom lembrar com quais palavras o júri do festival, sob a representação de Cristina Amaral, encerrou o texto de premiação. “Viva o SUS!”. Viva a vida. Viva a Viva.

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