Por João Paulo Campos
Ao mundo – olhos!
Dziga Viértov
Fungos possuem vários núcleos que se expandem no caos do solo. Vermelho Bruto (2022), filme de Amanda Devulsky, parece se organizar a partir de um gesto de montagem marcado por esta multiplicidade fúngica. Trança de imagens e sons numa experiência cuja origem lembra o crescimento de organismos multicelulares. Universos em expansão que também são sugeridos pelas aparições de imagens do espaço sideral e suas constelações, planetas e galáxias. Um amigo me disse que tomou cogumelos para assistir à sessão no Cine Tenda de Tiradentes. Uma forma acertada de se aventurar com esse filme.
A documentarista elaborou um jogo de filmagem entre quatro mulheres de diferentes trajetórias sociais que, no entanto, tornaram-se mães durante a adolescência, na década que sucedeu a redemocratização do Brasil. Em 2018, seus arquivos domésticos entram numa alquimia com registros de suas vidas atuais em Brasília.
O experimento de Devulsky efetua um choque de temporalidades ao articular cacos do passado de suas interlocutoras no presente – justamente no ano em que Jair Messias Bolsonaro foi eleito, acontecimento que marca o início de um período de ressurgimento do nazi-fascismo no Brasil que, sabemos, nunca foi de fato exterminado pelas forças progressistas. Algo notável na epopeia bordada pela montagem de Amanda Devulsky e Luisa Marques é que, ao realizarem uma entrega radical à concretude dos arquivos a partir de uma práxis de montagem caracterizada por conexões parciais e associações livres, nos mostram contaminações entre memórias pessoais com os caminhos da história social do país num ritmo para se curtir, viajar, pensar. Criar entre os arquivos uma movimentação sensual – de perto e de longe.
Clarice Lispector escreveu que Brasília não é bonita nem feia, pois é a imagem de sua insônia: seu espanto. Uma ficção científica, um delírio: a dupla Lúcio Costa e Oscar Niemeyer teriam erigido, em vez de beleza, seu espanto. E assim deixaram o espanto inexplicado. Vários dos registros colecionados e remixados no filme carregam a marca deste assombro originário da cidade modernista. Uma das protagonistas, empregada doméstica, caminha à noite entre as quadras do Plano Piloto. Ela filma sua perambulação e descreve o que observa. Nos diz que saiu do trabalho tarde e nota que as famílias ricas já estão com as luzes de seus apartamentos acesas. Estão no conforto do ambiente doméstico enquanto ela bate perna entre o trampo e sua casa na periferia do DF. Cada um na sua realidade, diz a mulher. Outra cena mostra, a partir de um movimento horizontal de câmera, uma série de ministérios iluminados por uma luz vermelha. A Esplanada dos Ministérios ganha um aspecto macabro.
Este é um filme também de caminhos e descrições. As mulheres cujos movimentos no tempo e no espaço perseguimos adotam uma postura descritiva com seu entorno. As câmeras assumem uma função investigativa e experimental. A vida se torna, assim, uma interrogação. Observamos recorrentemente a presença do chão, dos caminhos e dos pés das protagonistas que perambulam, filmam, narram suas vidas e desenham pequenas janelas para olhar o Brasil desde sua capital, espaço emblemático por ter sido a suposta alvorada de uma nova nação moderna no passado recente, território tão complexo quanto desigual que o cinema contemporâneo do Distrito Federal, em figuras como Adirley Queirós, Dácia Ibiapina e a própria Devulsky, transformou em posto de observação crítica da República.
Palimpsesto como operação figurativa. Um dos recursos expressivos que caracterizam a tessitura desta obra é a interposição de imagens. Registros caseiros são rasurados recorrentemente com outras imagens, sobretudo retratos das protagonistas que, no entanto, quase nada mostram de suas faces. São fotos de cantos, imagens abstratas.
Confluências e dissonâncias. Há uma relação de dissonância entre as experiências das mulheres que se filmam no que diz respeito, sobretudo, à classe social, território e raça. Mas as coisas encontram confluências na montagem. Os temas vão se amalgamando: maternidade, família, ideologias, militares, democracia, eleições. É um filme polifônico que coloca os fiapos de experiência em diálogo, mas também em tensão.
O vermelho aparece como fantasma. A cor se insinua em diferentes momentos, seja rasurando registros domésticos em borrões ou fades para o vermelho – que, no entanto, nunca se concluem! Outra característica dos fungos é a indeterminação. O vermelho no filme é errante e concreto, simultaneamente. É vermelhidão e nada mais: o chão do DF é vermelho.
Lisergia das imagens. Em vários momentos cogumelos se abrem em desenhos coloridos. Preenchem lacunas entre fragmentos de memórias. Intervalos bonitos que nos fazem deambular o olhar pelo quadro e viajar na escuta do testemunho das protagonistas.
O som faz o espaço. A articulação entre imagens e sons numa pegada atmosférica cria a sensação de um fluxo que nos convida a uma habitação provisória nesta espécie de lugar de memória virtual. O desenho de som traça conexões parciais entre o cinema e a instalação, o filme e o labirinto.
A articulação final da obra é uma das sequências mais bonitas do cinema brasileiro recente. Uma mulher fala e se filma fumando um cigarro a partir de um enquadramento vertical que entorta sua imagem. Ela reenquadra a cena ao filmar o que é uma das características marcantes das paisagens das periferias de Brasília. O horizonte mostra um fiapo reto de luzes da cidade, tal qual um corte amarelo no breu da noite. Essa horizontalidade da paisagem urbana distante do DF é bagunçada pelo ângulo vertical do registro. A cidade se inverte imagéticamente. Ela diz que não quer mais namorar, pois quer ser livre para ir para onde quiser. Relata que uma amiga cobrou seu sumiço. Daí escutamos: “Tô sumida não. Só estou andando por outros caminhos”. Um lampejo de seu sorriso rasga o ecrã e o filme acaba. Tela vermelha, que logo se converte em preto.
Devulsky fez memórias dançarem. A matéria de Vermelho Bruto é, ao fim e ao cabo, a experiência: sangue e chão em movimento.