por Ana Júlia Silvino
“Se você puder achar uma encruzilhada, qualquer encruzilhada, esta encruzilhada. Se você puder fazer uma escavação arqueológica nessa encruzilhada, você encontrará fragmentos, tecno-fósseis. E se você puder colocar esses elementos, esses fragmentos juntos, você encontrará um código. Desvende esse código e você terá as chaves para o seu futuro. Você tem uma pista e é a frase: Mothership connection (conexão nave-mãe)” – O Último Anjo da História (Akomfrah, 1996)
Pela elaboração de uma realidade sinuosa e com o procedimento narrativo de agouro, I Walked With a Zombie (Jacques Tourneur, 1943) é um presságio que induz a revelação de um mistério que, embora pressentido, quando revelado não deixa de transtornar a nós, espectadoras, e ao próprio filme. É importante, entretanto, também agourar o que será dito nesse texto: para além dos questionamentos que concernem o modo como os personagens negros foram construídos no longa metragem, interessa aqui marcar a noção de encruzilhada e de como isso reverbera como proposição estética e formal para a construção narrativa, com o exercício de encontrar algo que possa ser pressentido e capturado. Em St. Sebastian, ilha onde a narrativa se desenvolve, o sobrenatural pertence ao cotidiano. No entanto, acessamos a ilha através do olhar estrangeiro e desconfiado de Betsy, uma enfermeira que viaja até o Caribe para trabalhar como cuidadora de Jessica, uma mulher catatônica, largada à passividade, a quem as “más línguas” chamam de zumbi. Betsy se insere em Fort Holland, no contexto de uma família branca rica que é atormentada pela tragédia que acometeu Jéssica, uma calamidade sem explicação aparente.
Adentrando os portões de Fort Holland, somos apresentados a uma imagem peculiar: Ti-Misery. Um calcês de um navio negreiro que imita um homem negro morto a flechadas é o irrigador e parte da decoração do jardim da família abastada e, ao mesmo tempo, é posicionado como uma alerta. Um lembrete de que é necessário não esquecer dessa imagem e, talvez, de que seja preciso olhá-la mais de perto. Ti-Misery é uma encruzilhada. Nela, interseções coabitam com desvios. Na primeira noite de Betsy em Fort Holland, um choro contido a desprende de seu sono profundo, choro que depois descobrimos ser de Alma, uma funcionária da casa que mantém a tradição ancestral de chorar e prestar luto ao nascimento de uma criança negra e de ficar feliz aos funerais, algo que é explicado no filme como uma herança do período da escravidão. É curioso, no entanto, marcar que as lágrimas de Alma são veladas, e quem de fato parece chorar é o calcês na função de irrigador de jardim. Esse signo cultural, ao mesmo tempo em que é colocado como uma alegoria da história e experiência negra em St. Sebastian, também é uma metáfora do falseamento que existe dos portões de Fort Holland para dentro. Lá, tudo é performance. Assim, essa potência do cruzo, de duas interpretações conflitantes, uma exagerada em signos políticos e a outra esvaziada nesse sentido, fundamentam o lugar de Ti-Misery como uma encruzilhada, um campo de possibilidades onde opções se entroncam e se contaminam.
No longa de Tourneur, fica explícito que os tambores dos rituais vodu são o novo código, a macumba, a qual os brancos dizem querer distância. Eles estão protegidos pelos seus portões até que Betsy, em um delírio de paixão pelo homem que a contratou, mesmo contrariada pela matriarca Holland – que descredibiliza os rituais, no entanto, admite se aproveitar da crença da população para passar conhecimentos básicos de saúde -, tem a ideia de levar Jéssica para o ritual, na esperança de que ela se recupere e, assim, faça o homem de sua vida feliz outra vez. No caminho até o local onde acontecem os rituais, somos apresentados a outra personagem, tão decorativa quanto o calcês: Carrefour. No vodu, o espírito Carrefour controla a encruzilhada. Todavia, apesar da importância do espírito para o ritual, ele, assim como Jéssica, também está entregue à passividade em sua condição de zumbi, que segundo as terminologias do vodu haitiano, é uma pessoa que teria retornado dos mortos, através de feitiçaria para servir como escravo de alguém que o adquira através de pagamento a um feiticeiro ou a este mesmo.
Fica evidente a posição de Carrefour como uma rasura entre a vida e a morte. No entanto, com a sua apatia patológica, não transparece guardar os saberes das encruzilhadas, as operações de Exu. Saberes de ginga, de síncope, das mandingas. Carrefour explicita a arte de Tourneur de não criar cisão a partir do tema central, que dá nome à obra. Os zumbis e suas imbricações são, conscientemente, esvaziadas de sentido e servem, em certa medida, como uma distração para o verdadeiro mal existente em St. Sebastian. Apesar de Betsy se assustar com ambos os zumbis, o medo provém das operações de imagens que historicamente ocuparam uma partilha implícita de modos de representação. Carrefour nada faz. Todavia, Betsy se amedronta com a sua presença, como se a existência de Carrefour fosse o suficiente para colocar a vida dela em perigo. As encruzilhadas construídas no filme possuem uma superficialidade inerente a sua própria existência na mise en scène. Tourneur utiliza de um caminho historicamente demarcado, como a violência das imagens por exemplo, para traçar um percurso paralelo de mistério, transversal acima do primeiro.
A matriarca Holland, que em dado momento propaga a ideia de que o vodu é uma fachada na ilha, mais a frente na narrativa admite acreditar na prática ritual e confessa ter, ela mesma, lançado uma maldição sobre Jéssica, sua nora, por que ela era motivo de discórdia entre seus filhos. O estado catatônico da personagem zumbi, apesar de ter sido justificado, permanece, entretanto, em suspenso. Tourneur encontra os códigos, mas escolhe não fazer o movimento de desvendá-los para o espectador. Pelo contrário. Ao final do filme uma narrativa de que o ritual vodu quer o corpo de Jessica é construída. Por uma montagem clássica de plano e contraplano, Tourneur entrega todas as pistas de que Jessica está caminhando por ordem do vodu. Porém, subverte os procedimentos da decupagem clássica à medida em que constrói outra narrativa paralela de um dos irmãos Holland pegando uma das flechas do corpo estático do calcês e tirando o pouco de vida que ainda existia no corpo de Jéssica. Essa ação é replicada na montagem do ritual vodu com uma boneca. Ao recriar a cena em ambos os caminhos da encruzilhada, Tourneur cria uma polissemia visual e exclui qualquer possibilidade de uma verdade interpretativa. Cria, assim, um código outro a ser desvendado. Como espectadores, não sabemos se foi o vodu que tirou a vida da menina zumbi ou se foi o ego da família mais antiga de St. Sebastian, um efeito de cruzo. Quando a tela preta faz sua aparição e dá lugar aos créditos finais, sabemos que houve uma transgressão dos parâmetros da moral pela encruzilhada. Encante e desencante seguem seu movimento contínuo, esperando transgredir para outra coisa.