Reflexões corridas sobre representações do bicho

Reflexões corridas sobre representações do bicho[1]

Por João Lucas Pedrosa

 “Profeta, ou o que quer que sejas!

         Ave ou demônio que negrejas!

Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno

         Onde reside o mal eterno,

      Ou simplesmente náufrago escapado

      Venhas do temporal que te há lançado

      N’esta casa onde o Horror, o Horror profundo

         Tem os seus lares triunfais,

Diz-me: existe acaso um bálsamo no mundo?”

         E o corvo disse: ‘Nunca mais.’

“O Corvo” (1845), Edgar Allan Poe; trad. Machado de Assis

            Em “A Grande Testemunha” (1966), de Robert Bresson, o protagonismo é de Balthazar, um burro que, no decorrer dos anos, é posse de diferentes pessoas. De cara, nos grita que tipo de animal é o burro: é um animal inofensivo, indefeso, de carga. Carga humana que o monta ou carga material em seu lombo. Não é vistoso ou grande como um cavalo, mas sua vida é, ainda, andar pelos outros e com o peso dos outros sob o desprezo alheio. É um animal marginal.

A direção de Bresson é particularmente pungente nesse retrato, sua conhecida estética de despojamento: a técnica de direção de atores envolvia exaurir os atores (que preferia chamar de modelos) para que, de um corpo quase sem expressão, sob rígida contenção cênica e expressiva, uma graça metafísica pudesse se manifestar de uma proposta estética alimentada pela negatividade. Aqui entra a força do burro-modelo. Balthazar passa de mão em mão e tanto sofre como assiste a diversos abusos. Em efeito Kuleshov, vemos plano e contraplano com Balthazar enchendo, como por osmose entre os planos, as esferas negras que usa para enxergar de expressão, de significado. Há um diálogo em particular entre Balthazar e os animais enjaulados no zoológico onde nosso personagem principal carrega palha. Um diálogo não verbal; mas um diálogo, à medida que cada tigre, urso e macaco emite som, e os olhos esbugalhados do elefante da cena, emitem algo muito próximo do desespero – que Balthazar nada pode fazer além de assistir (daí a alcunha de “testemunha” do título brasileiro). As mortes e abusos que acontecem com humanos nos filmes de Bresson são sempre em extracampo: quando o padre que dá título a “Diário de um pároco de aldeia” (1951) morre, nele existem olheiras, mas o corpo não se fere; o suicídio de Mouchette (1967) é um jogar do corpo na água, e o corpo desaparece de nossa visão; a pele de Jeanne D’arc jamais entra em contato com o fogo. A vida some do corpo, mas ele jamais se destrói. Os corpos humanos de Bresson são destituídos de carne, pois são matéria de graça. Porém Balthazar é um corpo que sofre: vemos sua cauda pegar fogo quando um moleque perverso quer divertir-se às suas custas; Balthazar leva um tiro no lugar do mesmo moleque, anos depois, agora um fugitivo cujas cargas levava no lombo. Vemos a ferida em seu corpo indefeso, que lentamente se deita e escolhe esperar a morte entre as ovelhas até o último fade out da fita.

Eis aqui que a divisão res cogitans (substância pensante, o homem) e res extensa (substância que não pensa, o animal e/ou o vegetal) entram em choque: pois a substância pensante não esboça expressão facial/corporal – que em última instância, aparenta emoção -, mas o animal sim. Segundo Susan Sontag, nos filmes de Bresson, os protagonistas tendem a ter projetos mais importantes que a própria vida, pois refletem uma “luta contra o peso, contra a gravidade de si mesmo”[2]. Balthazar acaba por incorporar a mais profunda inocência pois é incapaz de ter projeto; como uma eterna criança que passa pela escravidão e que é, portanto, a vítima por excelência da humanidade.

Perco-me em Balthazar pela inversão muito pungente da ideia de que o animal é inferior ao homem – relativizada, senão totalmente rejeitada pelo filme de Bresson. O animal é mais legível que o homem, e agente despertador de uma compaixão dilacerante. Eis a inversão maior, pois o animal tende a ser o que não compreendemos: ele é movido pelo que compreendemos como instinto (assassino ou de sobrevivência) e, portanto, supostamente muito mais instável e imprevisível que nós, regidos pela consciência e pelas normas sociais. O poema de Edgar Allan Poe que aqui uso de epígrafe é potencialmente a mais irônica representação de choque entre as duas formas de funcionamento: um corvo velho pousa no umbral de uma biblioteca (o símbolo do acúmulo do conhecimento) e gorjeia toda vida uma máxima: “Nunca mais”. Numa lógica mais desprovida de sentimento, é tudo que o animal aprendeu a falar. Mas cá está uma criatura da noite a gorjear o mais contundente limite a um homem de suposto grande saber na mais amaldiçoada hora da noite. O eu-lírico pensa por demais (a auto destrutiva exacerbação de pensamento também é presente em “OCoração Delator”) sobre a frase e a projeta em seus fantasmas pessoais – pois não só de lógica é feito o homem – e afunda-se num horizonte sem fim de melancolia. O corvo aqui, enquanto animal, é como Balthazar, representante de um conceito superlativo: se o burro é a inocência em Bresson, o corvo é a sentença do eterno para Poe. A ave mostra exatamente a máxima deslocada de contexto, gatilhando todos os contextos de finitude que atormentam uma subjetividade pensante. O eu-lírico tenta ler a máxima sob a luz de seus tormentos e se afunda cada vez mais neles, num exercício quase masoquista: ele não vai conseguir tirar nada além de “Nunca mais” do pássaro, sendo ela demônio, profeta, ou apenas uma ave.

A intangibilidade da forma animal acaba trazendo ainda alguns outros significados quando tratamos do conceito de “metamorfose”, o humano cuja forma torna-se animal sem perder a essência. Penso em Seth Brundle, protagonista de “A Mosca” (David Cronenberg, 1984). Cientista, tem o DNA fundido com o de uma mosca num acidente de laboratório, e o filme acompanha o processo desta transformação de homem em mosca. Primeiro, ganha força extrema, instintos sexuais exacerbados; parece ter virado um super humano. Então caem suas pele, dentes, cabelo: é a esta forma grotesca que esses poderes pertencem. Mas ele continua a amar sua namorada mulher e, após, por motivos bem próximos da moral humana (impedir o aborto do feto que fecundou já geneticamente modificado na amada), cometer algumas atrocidades e causar um acidente que dilacera seu corpo, ele puxa sobre a cabeça artrópode o cano da espingarda que a amada segura – seu último gesto de consciência é um pedido de eutanásia. Por volta de 2012, viralizou na internet o vídeo de uma cobra se devorando vorazmente numa loja de animais estadunidense[3]. Cientificamente, a explicação para o bizarro evento é relativamente simples, a cobra passava privações e calor em sua gaiola, condição que intensificava os instintos da sede e da fome, e a levou a tomar como presa a primeira coisa que visse se movendo: a própria cauda. É trágico, entretanto involuntário; a humanidade que marca a diferença entre o gesto da cobra e o de Seth fica sendo o desejo de morrer, a vontade do fim.

Essa condição carrega um outro tipo de agonia na mais celebrada obra kafkiana, “A metamorfose”. Gregor Samsa, um belo dia, acorda como um enorme inseto. Não existe motivo para esta mudança, nem a descrição do processo metamórfico que dá nome ao livro. Como em “O Processo”, não precisamos saber por que crime Josef K. está sendo acusado ou se realmente o cometeu: do que precisamos é que ele tenha que passar por tudo que passa sem nunca saber o porquê. Acontecimentos sem razão são o motor narrativo de Franz Kafka, movido a vertigem de sofrer consequências de causas impalpáveis. A consciência de Gregor, portanto, não mudou absolutamente nada: ele ainda pensa em sair da cama e (Deus sabe como) sustentar a família, mas passa – se não me falha a memória – por volta de um quarto (ou quinto) do livro tentando nada mais que sair de sua cama. Apenas para, sem êxito, tentar explicar à família o que sabe – no caso, apenas que, tanto quanto eles, ele ainda tem consciência – e ter o casco quebrado pela bengala do pai. Aqui, ironicamente, a família é quem age de forma instintiva, pelo medo, que fala mais alto que qualquer tentativa de entender se há ou não resquício de Gregor dentro daquela barata gigante. Gregor aqui acorda oficialmente um monstro, e sofrerá as consequências de ser um. Chegamos num ponto em comum entre Gregor e Balthazar: ambos são socialmente marginais por sua forma física. A Balthazar resta a escravidão; a Gregor, o isolamento e a execução. Diferente de Seth, Gregor é inofensivo. Mas, por seu corpo de barata, vira monstro social.

Invertamos a relação: uma forma de homem com instintos monstruosos. “M – O Vampiro de Dusseldörf” (1931), de Fritz Lang, é inspirado pelas atrocidades cometidas por Peter Kürten em fins da década de 1920. O filme nasce de e responde a um contexto de histeria coletiva: o pré-fascismo que buscava um bode expiatório para a crise alemã pós-Primeira Guerra. Dusseldörf entra em estado de alerta e convulsão social quando um assassino de crianças assola a cidade. Idosos e adultos não podem se comunicar mais com crianças desconhecidas sem sofrerem linchamento – o pavor da monstruosidade é projetada no primeiro homem que aparece, já que o monstro tem o rosto de um pária humano: é o lobo em pele de carneiro. A cidade está parada à noite, e até os contrabandistas pararam atividades por conta dos toques de recolher. A força policial tenta agir de um lado; a criminosa/popular, de outro. Em determinado momento, encontram o assassino com a boca na botija: um civil, em articulação com a máfia local, escreve “M” em giz na mão e bate nas costas do criminoso após um esbarrão falso. “M” de Mörder: assassino (ou de “monstro”). O título original do filme é apenas esta letra, a marca de Caim. O pedófilo anda, sem saber, com ela gravada nas costas. Em determinado momento, olha num espelho de vitrine e se depara com ela, entrando em completo desespero. Seu segredo agora é imagem social ostentada sobre a veste: é visivelmente monstro. Após capturarem-no, os criminosos juntam o povo num porão/estacionamento para uma sorte de julgamento extra-institucional, em que o advogado de defesa do réu é um beberrão – a humanização do monstro, esse atentado contra o senso comum, só poderia vir de uma mente alterada. “M” tem uma crise histérica e desabafa sobre seu descontrole. Ele não sabe o que faz, sente uma vontade incontrolável, um impulso que só se desfaz depois que já cometeu o crime – e aí, então, sente a culpa. A cidade decide eliminá-lo: ele não pode se conter. Mas a defesa diz: ele é doente! “Deve ser tratado, não morto”. O povo rechaça o contra argumento e partem famintos para cima do assassino, mas a polícia chega logo antes de executarem sua vontade. No julgamento, as mães enlutadas quebram a quarta parede: “Isto não vai trazer nossas crianças de volta. Alguém precisa tomar melhor conta de nossas crianças! Todos vocês precisam…”. O justiçamento se esquece das vítimas pelas quais quer justiçar. Já não era mais sobre elas, mas a expiação coletiva da frustração de sistema falido praticando um ódio muito pontual. No filme, é justificado pela calamidade pública; na vida real, uns anos depois, pela eugenia institucionalizada. Quando o instinto assassino se entranha por todo um povo amargo de fracasso, ele será liberado, de forma ou de outra. O bicho é o pedófilo, mas também é todo mundo.

A sociedade contra o bicho, a sociedade composta por bichos. E o animal anti-social? Me refiro aqui não ao animal contra a vida em sociedade, mas o animal contra a instituição sociedade. A hipocrisia do senso comum, das convenções sociais, da bolsa de valores, da pequena burguesia. O sistema racional, do tal ser pensante evoluído, como os poemas góticos e livros expressionistas e filósofos sessentistas já perceberiam, são exatamente como a cobra que morde a própria cauda. O sucesso do projeto da razão envolve sua própria crise, a desconstrução e a crítica da ordem mesma que a constitui. No cinema, esse extremo foi levado à excelência muito provavelmente pelo cinema de invenção brasileiro. O caso de “Mangue-Bangue” (1971), de Neville D’Almeida, chamado não à toa de filme-limite, seu motor é a recusa de quaisquer convenções de representação e narrativização – inclusive a linearidade de um diálogo; a faixa sonora é unicamente instrumental. Do mesmo jeito, rejeita o normal social comum: as pessoas filmadas fumam maconha, picam a veia, enchem a boca de maçã pra falar cuspindo e tiram a roupa sem muitas intenções. Se existe algum sentido nas cenas, é pelo choque, pela ironia do que escolhe rejeitar. A personagem de Paulo Villaça é um investidor da bolsa que começa, no meio do banco, a passar mal e vomitar sem parar; no meio do mal-estar, se chafurda na lama da rua. De vômito e de barro mancha sua roupa social clara, encharca o rosto e o cabelo de sujeira. Ali regurgita o que do social já esteve em seu sistema. Nas últimas aparições em filme, está nu, mexendo no pênis flácido e no cu, cheirando os dedos depois de tocá-los. Explora-se como um bicho, em busca de um autoconhecimento primitivo. O filme conclui com ele cagando no mato, se abaixando para cheirar a bosta, e depois se jogando no rio para se lavar e brincar na água antes de sumir mato adentro.

O animal marginal, enfim, como final feliz.


[1] A reflexão é inspirada, porém não norteada, pelo texto “Dos lecciones sobre el animal y el hombre”, de Gilbert Simondon, assim como por discussões com o cineasta, colega e amigo Felipe Leibold.

[2] SONTAG, Susan. Contra a interpretação de outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 242.

[3] “(Original) Suicidal Snake eating itself”: <https://www.youtube.com/watch?v=jIl2DSXUffw&t=1s>.

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