Olhar de Cinema: Alan

Por Rubens Anzolin

Sete notas sobre Alan do Rap

I) Alan deve ser o melhor filme brasileiro que assisto desde Vermelha (Getúlio Ribeiro, 2019). Herdeiro da mesma linhagem de impacto de obras como A Cidade É Uma Só? (Adirley Queirós, 2011), A Vizinhança do Tigre (Affonso Uchôa, 2014) e Na Missão, com Kadu (Pedro Maia de Brito e Aiano Bemfica, 2016). É um cinema incontornável, impossível de sair ileso. Já visto, jamais visto.

II) Alan é um filme de ação direta, que recusa o extracampo. Tudo que existe está disposto para o jogo da câmera, não há atalhos e nem recusas. É um pacto sem retorno, quase cristalino. Resta somente um caminho: avançar.

III) Passam-se doze anos entre a primeira e a última vez em que vemos a imagem de Alan do Rap, protagonista do longa-metragem. Entre idas e vindas, o personagem reconhece a glória e a destruição, o céu e o inferno, e através dele somos capazes de abstrair sobretudo uma sensação de efervescência, de um corpo periférico esticado ao limite. Alan do Rap é uma espécie de personagem oásis, capaz de concentrar em si uma sabedoria simbólica, proveniente das ruas, da vivência do real, cujas falas revelam mais sobre o país em que vive e o contexto em que se insere do que boa parte do material acadêmico seria capaz de tratar.

IV) Acima de tudo, Alan do Rap é um orador. Da mesma estirpe de Lula, de Mano Brown, de Galo de Luta. É um daqueles sujeitos que, quando fala, sai apenas a verdade. A linguagem de Alan não faz curvas. Bem ou mal, ela diz respeito àquilo que vive na pele – e sobretudo, é importante que se diga, ela tem como principal aqueles que são capazes de entender olho-no-olho o que se é dito. Do início ao fim, Alan é sincero para a câmera. Do momento em que pede para encerrar a gravação por conta das dores no pé até o derradeiro final, com os tiros para o céu, o personagem jamais titubeia. Aliás, é por conta da sinceridade de Alan do Rap frente ao seu próprio registro que torna-se possível ao espectador conjugar um pacto com o protagonista. Alan é uma figura que abole a traição, trazendo-nos de volta para o real.

V) Quando falei em ação direta, era pra dizer respeito justamente a energia que o personagem emprega ao filme. No início dos anos 2000, Alan do Rap ficou conhecido por invadir as apresentações de artistas famosos e tomar o microfone para si. Suas apresentações eram curtas, geralmente encabeçadas por um hit popular criado pelo artista. “Favela, favela, favela, só quem vem de lá, sabe o que é sofrer”. Em poucos minutos, Alan do Rap subvertia o ambiente, os batuques, os sons, e tornava-se então o único frontman. Era uma espécie de herói do povo (não à toa que me parece justo compará-lo com os outros oradores acima citados), de corpo que convocava nos gritos de “Eu sou 157, quem fala é Alan do Rap” toda energia de uma massa, como se representasse cada um dos presentes na multidão. Ou seja, catarse plena. Uma explosão que tinha como fundamentação quase uma espécie de ritual messiânico: Alan do Rap saia das plateias, da galera, erguido pelos companheiros, até ser elevado ao palco, onde era capaz de falar por todos eles. Alan era uma espécie de escolhido. De número um.

VI) Há um gesto muito raro proporcionado por Alan do Rap no cinema de Diego e Daniel Lisboa que é o do encontro do real – esse real cinematográfico, que de tão bruto é capaz de capturar um pedaço da vida. Existem os cineastas que procuram o real, que tentam fabricá-lo; e existem aqueles poucos que são capazes de encontrá-lo. Lembro de alguns filmes como Baronesa (Juliana Antunes, 2017) ou Mascarados (Marcela e Henrique Borela, 2020), filmes que, ao meu ver, bem ou mal, tentam provocar esse encontro com o real, produzir esse achado entre sujeito e câmera capazes produzir faíscas transformadas em cinema. E há os filmes, como Alan, que não procuram o real, mas sim encontram-no, quase que despretensiosamente, de tão verdadeiramente arraigados que estão às relações humanas previamente estabelecidas entre quem filma e quem é filmado. Não existe modo certo ou errado de se produzir esses efeitos, mas é sempre justo salientar quando eles parecem se dar de modo natural, isto é, de uma forma tão direta – e, muitas vezes, bruta – que torna-se inviável voltar atrás.

VII) Existe outro gesto, ainda, que reside em Alan e que dá conta de fortalecer esse pacto com a estrutura da vida, que é o fato de Alan do Rap ser um personagem de comportamentos diversos, de altos e baixos constantes. O sujeito que, no início, ficara famoso pelas performances, que inundava a tela com seu conhecimento do mundo, é o mesmo que vem a ser cobrado pelo seu ídolo máximo, Mano Brown, quando tenta enviar a este uma mensagem direto da cadeia. Daí surge uma espécie de discussão semântica que Alan (o filme) captura muito bem, quando o líder do Racionais MC’s escolhe não mandar recados a Alan do Rap pois desaprova sua entrada na criminalidade. Entre aquilo que canta e aquilo que discursa, Brown apresenta uma espécie de discurso sólido que a vulnerabilidade de Alan do Rap talvez fosse incapaz de absorver. Se o líder dos Racionais segue sendo uma espécie de corpo fechado, de código de conduta, Alan do Rap é justamente o contrário, uma espécie de bússola moral, de bem e mal, de céu e inferno, força e fraqueza. Daí a sua magia, daí esse encanto que, de tão puro, sucumbe ao horror.

VII) Chegamos à morte, enfim. Que não à toa é uma espécie de fantasmagoria que se reproduz nos filmes que citei anteriormente (Vizinhança…, Kadu…) – e, aos quais, poderia facilmente acrescentar obras como As Mulheres Pensam (Talita Araújo, 2015), Enquadro (Lincoln Péricles, 2016) e O Sonho do Inútil (José Marques de Carvalho Jr). A verdade é que não há magia alguma na morte. Há sobretudo a certeza do fim, a certeza de que entre todas essas imagens, entre toda a dilatação temporal que se estabelece na vivência desses sujeitos, é chegado um momento em que não é possível para o cinema dar conta desse real. A morte é a consumação de que o real cinematográfico é inatingível, é parco, falho. A morte é a ruína, e o cinema é apenas os seus destroços. No fim das contas, Alan é como o próprio Alan do Rap: é um tiro pro alto, uma bomba, um retrato veloz de um destino incontornável. Uma baliza que estabelece de forma muito justa as agruras de um estado incapaz de sustentar suas próprias mentes, seus próprios corpos e seu próprio sistema. O personagem é o começo, o filme é seu fim. Tela preta. Viva, Alan do Rap.

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