Por Natália Reis
“Then one night, she had a strange dream,
and was told that the answers to all her problems
lay within the land around her.”
A morte por suspeita de inanição da desertora norte-coreana de 42 anos Han Sung-ok e de seu filho de 6 anos de idade em Seul configurou um tipo de tragédia evitável que assume a forma de questões grandes demais e dolorosas demais para serem respondidas com prontidão. Uma das poucas informações sobre a identidade e o passado de Han Sung-ok (fornecida por quem pôde ter algum nível de contato com ela) é a de que ela havia deixado a Coreia do Norte em busca de melhores condições de vida. Mãe e filho só foram descobertos cerca de 2 meses após virem a óbito, pela pessoa responsável pela leitura do hidrômetro de onde moravam. O caso perturbador ocorrido em 2019 desencadeou uma série de questionamentos sobre a natureza solitária da morte por desassistência: “por que ela nunca disse que passava por dificuldades?”, “se ao menos ela tivesse pedido”, uma vendedora nas proximidades declararia. O fato é que, para além de questões culturais, quando penso na história Han Sung-ok, o que mais me aterroriza é a naturalização de um individualismo tão entranhado nas dinâmicas do neoliberalismo que uma crise gerada pela falta de recursos básicos passa despercebida num cenário onde o senso de comunidade há muito foi esquecido. E não digo isso apontando somente para os vizinhos de Han Sung-ok. Não é difícil constatar que se trata de uma postura tragicamente universal. A dúvida que fica é: quando e como foi que deixamos isso acontecer?
A primeira vez que vi algo a respeito de Arcadia de Paul Wright foi no blog de um estudioso de Mark Fisher que partia da premissa de que o conceito de “Comunismo Ácido”, desenvolvido inicialmente por Fisher no livro em que estaria trabalhando antes de sua morte em 2017, se relacionava diretamente com a obra de Wright. Arcadia foi um projeto encomendado pelos produtores John Archer e Adrian Cooper, tendo como proposta a realização de um longa-metragem utilizando imagens de arquivo do British Film Institute de modo que pudesse se operar uma reflexão sobre o passado rural dos britânicos e sua relação com a terra. Wright, que até então só possuía experiência com o cinema de ficção, vai conceber um “folk horror” que pulsa através de 100 anos de história em imagens para narrar as curvas e desvios tomados numa trajetória que tem início nas comunidades rurais, nas comunas, nas celebrações e ritos pagãos guiados pelas estações e colheitas, passando pelo deslocamento massivo da população para as cidades e pelas organizações sindicais, greves, festivais de música psicodélica, shows de punk e raves. Nesse sentido, é possível traçar uma relação entre o Comunismo Ácido de Mark Fisher, que vai mirar na contracultura das décadas de 1960 e 1970 para especular sobre a possibilidade de “um mundo que poderia ser livre” através da convergência “da consciência de classe, a conscientização socialista-feminista e psicodélica, a fusão de novos movimentos sociais com um projeto comunista” e o ruído provocado pelas redes relacionais que se estabelecem, ainda que temporariamente, no transe musical dos festivais trazidos em Arcadia e tidos ali como uma forma de restabelecer um instinto de coletividade perdido em algum ponto entre a instituição da propriedade privada e a exploração do trabalho.
A Arcádia, esse lugar mítico que aponta simultaneamente para os aspectos nostálgicos e utópicos de uma convivência harmoniosa entre homem e natureza, vai ser reimaginado como uma face obscura de um tempo pregresso. Na superfície, o horror do filme de Wright reside nas imagens que acessam um temor pelo desconhecido, na associação do incomum e do estranhamento ao ameaçador. Máscaras e vestes ritualísticas que simulam entidades animistas e outras criaturas, o frenesi da dança e da música (conduzido pela trilha de Adrian Utley do Portishead e Will Gregory do Goldfrapp), o encantamento, o fogo, a terra e a comunhão são elementos que, aproximados e articulados na montagem, capturam o espectro de um primitivismo assustador (pois distante, selvagem, logo, incontrolável), mas se resguardam ainda intocados por terrores maiores, que vão percorrer uma outra camada do longa, como o êxodo urbano e o esquecimento das raízes, o campo gradativamente se tornando um local reservado ao lazer de uma classe privilegiada, de casas de veraneios, jogos entre famílias abastadas – como a caça à raposa – e de um circuito exploratório dos trabalhadores braçais. Pensando para além dos recortes geográficos, históricos e culturais, a análise da sociedade britânica engendrada em Arcadia escoa para um âmbito mais amplo, de forma que minha pergunta inicial é retomada aqui enquanto uma das premissas dessa horrorificação: há um movimento contínuo de afastamento e negação da comunidade que cada vez mais nos lança a um futuro sombrio, aterrador?