Eu também fui espectador do fim do mundo – os filmes machinima de Phil Solomon e o Espectador Emancipado de Jacques Rancière

Por Gabriel Papaléo

“Matam-no e ele não sabe que morre para que se repita uma cena.”

A Trama, em O Fazedor, Jorge Luis Borges

O espectador no apocalipse.

Entre 2005 e 2009, o cineasta Phil Solomon construiu suas obras a partir de imagens realizadas nos jogos GTA: San Andreas e GTA IV, como parte de uma homenagem ao amigo Mark LaPore, cineasta experimental morto em 2005, após realizar com Solomon o primeiro dos filmes dessa série. Crossroad (2005), Rehearsals for Retirement (2007) e Last Days in a Lonely Place (2007) foram rodados dentro de San Andreas; Empire (2008) e Still Raining, Still Dreaming (2009) foram rodados no GTA IV. Os dois últimos, um remake longa-metragem do filme homônimo de Andy Warhol de 1964, e um curta de apocalipse como os três primeiros, são rodados em Liberty City, a versão de Nova York criada pela Rockstar, e não serão cobertos nesse texto pela distância geográfica (e por fins de coesão); me concentrarei nos filmes rodados no estado de San Andreas.

De início, há possibilidade de se questionar sobre as escolhas de “isolar” as imagens do jogo de contexto, no processo de alquimia de Solomon: GTA: San Andreas é um jogo tão divertido e carismático como tenaz e extremamente violento nas suas representações, uma obra que causa desconforto e discussão justamente pela especificidade de suas demonstrações de violência policial e do racismo estrutural impresso nas ruas dessa Los Angeles imaginária – e muito por isso ainda é a melhor representação audiovisual das tensões dos riots de 1992 pós-Rodney King, da cultura do gangsta rap como resistência, e como biografia não-autorizada (e bastante ficcionalizada) dos integrantes do grupo NWA. Solomon, por outro lado, toma a via do abstrato, do apocalipse motivado por um movimento quase incompreensível da natureza, dos fenômenos de destruição acontecendo ao redor sem que se trace explicações possíveis. Desconstruir contextos e ressignificar sentidos é quase um movimento inevitável das imagens encontradas e das modificações do material de origem delas (e Rehearsals for Retirement usa muitos mods e cheat codes para produzir imagens); o que importa é que se há “responsabilidade” no retrato da destruição, há em ambos. Ambos tratam de violência e ambos tratam do fim do mundo, ambos de forma política e ambos de forma experimental.

Em Crossroad, o primeiro dos filmes, nosso setting é na presença de um lugar abstrato, composto apenas pelo pedaço de terra, pela casa que mal acessamos, pelas árvores ao redor, e o buquê flutuante que faz companhia para o protagonista solitário. À beira do abismo, uma nuvem cinza infinita, carregando a chuva que não cessa, com relâmpagos ao fundo que sinalizam que o resto do mundo sucumbiu àquelas adversidades. Em um momento, um avião ocasionalmente passa, como se Solomon e LaPore sugerissem que existe uma luta humana (ou virtual) diante das tormentas eternas; notícias do apocalipse que não acessamos, digamos assim. O porto seguro de CJ, o protagonista de GTA: San Andreas e de Crossroad, é um local não-caracterizado, minimalista, cuja geografia abstrata não detalha um assentamento exatamente, mas sim um palco; a câmera aterrissou em uma simulação de realidade onde a ameaça está toda lá fora.

Há de se desconfiar dessa realidade, como há de se desconfiar de todas as realidades nos filmes de Solomon desde, pelo menos, What’s Out Tonight is Lost (1983), onde a textura radical de interferência na película transforma a impressão do real em uma animação destituída do plano físico naturalista, enveredando pelos céus tomados por riscos, paisagens de sonhos e também dos pesadelos. Em Crossroad a dúvida diante da realidade é diferente, com Solomon e LaPore evidenciando as diferenças físicas desse mundo comentado para o nosso suposto mundo; então a câmera atravessa o buquê, atravessa as árvores no longo loop da caminhada de CJ, interfere na materialidade dos objetos. Nesse extenso travelling, os diretores acompanham um corpo que não conhece limites físicos como os conhecemos – um tempo infinito que existe só dentro da unidade do plano. Partem do mais simples bug das texturas complexas e além do código comum de GTA: San Andreas para comentar a abstração desses símbolos colocados ali para emular o mundo com o qual estamos familiarizados no extra-tela.

Pela materialidade quebrada dos objetos, percebemos a curta extensão de terra desse porto seguro nas alturas. O movimento do código virtual começa a encontrar estabilidade no caos, no tédio demonstrado pelo gestual de CJ frente à tormenta à sua frente. Do alto de sua terra, existe um homem em ação reduzida. A realidade depende demais da materialidade, sem ela o corpo cansa e logo recorre ao repouso. Mesmo diante do fim do mundo, é preciso descer de alguma forma à cidade.

É nessa descida onde começa Rehearsals for Retirement, o segundo filme da série machinima de Solomon. A câmera passeia solenemente pela névoa da paisagem, no loop da programação do jogo, acompanhando a chuva torrencial. Nosso testemunho e do protagonista já começa na localização difusa de Los Santos, deteriorada pela realidade desfeita. Partir da névoa e da chuva constante para os desastres naturais interferindo nas criações humanas, na cidade: o fogo consumindo a matéria, sendo arrefecido pela água, para começar a queimar novamente. A Solomon interessam esses processos naturais porque é deles que extrai as texturas do apocalipse, como se a jornada desses elementos fora de controle fosse o pêndulo para a realidade se manter.

É um passo especialmente obtuso pensando na filmografia de Solomon porque, apesar das intervenções abstratas na superfície da imagem, uma das muitas heranças obtidas de Stan Brakhage, seu amigo e também por vezes mentor, é sobretudo um mundo dolorosamente concreto que o cineasta filma. E na virtualidade de Rehearsals for Retirement, Solomon acha um mundo cuja escala é grande o suficiente para que sua câmera possa voar, sendo ainda muito próxima de  nossa realidade, para então tecer seu comentário sobre a textura física do luto, pela perda de seu amigo LaPore, e também simbólico, pela despedida ao mundo moderno do qual estamos diante.

Nessa narrativa as imagens misteriosas desencadeiam num uníssono como um feitiço, quase contemplando o mal sem explicações, dos aviões explodindo sozinhos no céu, do homem que testemunha aquilo impassível, do ruído da chuva e da neblina que a tudo toma. Vemos um carro preso ao trilho do trem, no túnel carregado de fumaça, exemplo claro do que no extracampo tanto interessa a Solomon; o túnel em questão é afastado da área urbana de Los Santos, no trilho do trem que liga o centro da cidade às áreas mais rurais. É um caminho de fuga que o estacionou ali? Quem o abandonou? Para onde foi o motorista daquele fim de mundo?

A câmera que voa, como uma alma pelos lugares que passa, em certo momento estoura a mesma cerca de madeira que vemos no térreo da montanha do primeiro plano do filme. Diferente de Crossroad, aqui Solomon experimenta a presença que se choca com a materialidade, que entra em contato com ela deixando consequências, sem a textura invisível que fazia o corpo do primeiro filme atravessar árvores. Não é sobre uma alma fora do nosso plano, um fantasma digital; a dor em Rehearsals for Retirement é de tentar reunir desesperadamente um corpo para sobreviver às texturas em colisão que tentam o atravessar.

Na realidade à beira do abismo, as imagens surreais se enfileiram, todas de objetos que tentam negociar alguma escapatória da fúria dos elementos. Um carro que se afoga, um buquê que vela algo que não vemos, a bicicleta flutuando com o avião ao fundo. A física foi exposta em suas mentiras e o fluxo do homem digital é de testemunho do ambiente destrutivo, impossibilitado de qualquer revide, retirado do controle que um jogador poderia ter em alguma jornada narrativa mais trivial (e voltaremos a isso mais à frente). Solomon acessa os signos das águas e do fogo para criar uma sinfonia particular de cidade, como o movimento da chuva de Regen (1929, Joris Ivens e Mannus Franken) sob a sombra à espreita, o fim próximo diante do consumo total pelo fogo. Se em Regen a água era assimilada pela cidade de Amsterdã, cuja arquitetura foi desenhada para conter de alguma forma as torrentes, aqui a água incontrolável luta contra o fogo interminável para se tornar refúgio apenas ao final – talvez Los Santos, diferente de Amsterdã, tenha sido desenhada para acabar.

O homem digital que uma vez foi CJ agora observa os pássaros na superfície do mar, na fuga de tudo o que as pessoas construíram, no poder de voar que cessou diante da calmaria da matéria. A destruição aconteceu além das nossas capacidades, mal tivemos chance como atuantes naquele apocalipse; nosso único poder concreto é o da observação, do espectador. Estaríamos passivos diante da cidade?

A mesma questão e a mesma destruição acontece em Last Days in a Lonely Place, o curta seguinte de Solomon, que dessa vez parece funcionar como uma história anterior aos dois: estamos na cidade ainda em decadência, prestes a ruir, mas ainda contendo signos e paisagens suficientes para nos relacionar com uma normalidade. A opção pelo preto-e-branco da fotografia, dessa vez mais enclausuradora e elegíaca, já antecipa todo o fim que iremos testemunhar; não que isso impeça Solomon de articular seu apocalipse sob meandros mais insidiosos, menos diretos. O que há são pistas, como em Rehearsals for Retirement, e é através da topografia de Los Santos que podemos entender um pouco melhor os sinais do apocalipse. Solomon indica mais deliberadamente a sua aproximação cinematográfica entre a Los Santos do jogo com a Los Angeles real; melhor, não a Los Angeles real, mas a Los Angeles imaginada tantas vezes no cinema. E para isso recorre a uma imagem em particular: um cinema abandonado.

O Legal Cinema, a sala retratada, é localizada em Vinewood Boulevard, no distrito de Market. No jogo, é um cinema de centro de cidade, no coração comercial de Los Santos. Não há qualquer reação pública expressiva a esse cinema vazio; ninguém passa na frente dele, não há letreiro indicando qual filme está em cartaz, ninguém parece ocupar a sala que exibe o filme. Quando um carro explode na frente do cinema, nada acontece; na área rural de Los Santos, quase que como consequência, a sala de uma casa começa a pegar fogo. Por essas sugestões desconexas entremeadas a essa imagem recorrente das chamas, sempre mediada pela presença ameaçadora de pessoas à distância, Solomon parece se aproximar da reflexão sobre os fantasmas que objetos e lugares guardam de traumas passados também trabalhado por David Lynch na terceira temporada de Twin Peaks – para citarmos outro realizador que filmou um país com traumas passados.

Repete-se também as imagens de abandono elegíaco, com o vazio urbano preenchido pela atmosfera surrealista: um carro está parado com uma pessoa na floresta, um homem está petrificado sozinho no seu quarto, outro alguém aguarda algo na chuva, uma pessoa diante do mar testemunha os trovões e raios sem reação; a obsessão com os anos 50, um marco sociocultural da suposta civilização que os Estados Unidos construíram para si, através da arquitetura e através do cinema. É quase natural que a imagem que abre o filme seja na réplica do observatório Griffith, não por acaso comentado por Solomon com os ecos de James Dean questionando a hora do apocalipse em Juventude Transviada (1955, Nicholas Ray). Porque Los Santos aqui é a Los Angeles falsa do cinema, a cidade como palco dos filmes que por ali foram rodados. A memória daquele lugar se confunde com o imaginário de cinema, como um conjunto de memórias do que foi aquela cidade antes do fim. E não há conjunto de hábitos enraizados em um lugar revisitado sob o código dos fantasmas e dos filmes, desses rastros imprecisos de memória, que obedeça a alguma ordem sustentável de tempo presente.

No clímax do filme, Solomon compõe um mini-filme estrutural com a imagem da câmera fotográfica virtual testemunhando o Sol em colapso, a bomba atômica do amanhecer. A mesma pan se repete incessantemente, repetindo o gesto de destruição consecutivas vezes ao ponto da anestesia – um apocalipse programado e modificável, artificial. De alguma forma soa mais desolador, justamente porque o movimento de retorcer texturas virtuais termina irresoluto, abandonando os lugares e personagens que retratou por frestas. O incêndio foi apagado no Legal Cinema e nada mudou.

A calmaria nesse epílogo, na modulação dramática de Solomon, faz parte de um movimento de entrega. Há a vitória da natureza, há também a vitória do mistério intransponível. Escorraçados pela realidade, personagens se fragmentam; alguém sente sua solidão sob as sombras do quarto vazio, alguém se resigna com a realidade ao observar a indiferença do mar. Novamente: estamos passivos diante do movimento anônimo da cidade?

O jogador no apocalipse.

Solomon pergunta isso com imagens que representam, supostamente, o oposto ao que se espera de um videogame como GTA: San Andreas. Ao andar por Ganton, ou dirigir por Vinewood, ou mesmo voar pela área rural de Red County – onde Solomon filma um dos trechos finais, no aeroporto poeirento de lá -, existe a sensação de liberdade e de tempo próprios, no controle total do jogador. Mas pensemos no modo história – o verdadeiro diferencial que torna o jogo tão influente e tão agressivo como comentário para as transformações de Los Angeles em 1992 diante da brutalidade policial, das guerras de gangue e do racismo explícito expressado na gentrificação da cidade. Ao longo de 30-35 horas, somos transportados àquele mundo, executando as missões que guiam a história sob nosso tempo e vontade, mas planejada sob obstáculos que exigem a completude dela para que se aproveite a extensão do jogo por completa: San Fierro e Las Venturas, as cidades vizinhas a Los Santos, só surgem conforme o modo campanha avança, áreas da cidade são modificadas conforme a história progride, locais são desbloqueados à medida que missões são realizadas. Pensando dessa forma, a tal “liberdade” dos videogames, mesmo dos jogos sandbox, é apenas um leque maior de atividades e do flanar no mundo proposto pelo jogo; não caracteriza de fato uma liberdade total para se criar o que bem entender, mas sim uma liberdade negociada com o total controle criativo e narrativo dos designers do jogo.

Teoricamente, a distância das imagens de Crossroad, Rehearsals for Retirement, Last Days in a Lonely Place e GTA: San Andreas se apoia no argumento da “atividade” dos jogadores da Rockstar diante da “passividade” dos espectadores de Solomon. Mas tendo em mente que ainda estamos, enquanto jogadores, desvelando uma realidade programada – e, mais importante, linear, porque liberdade está diretamente associada à tempo -, essa distância se configura de fato como algo coerente?

É onde entra a teoria de Jacques Rancière em seu ensaio O Espectador Emancipado, de 2008. O filósofo francês não adentra nos signos dos videogames (ao menos não aqui), mas cria toda uma ideia dessa dissociação entre passividade e atividade do espectador a partir de teorias teatrais. Rancière exemplifica duas vertentes ideológicas do teatro, a do teatro épico de Brecht em se propor “a trocar a posição de espectador passivo pela de inquiridor ou experimentador científico que observa os fenômenos e procura suas causas.” [1], e a do teatro da crueldade de Antonin Artaud, em propor que o espectador “deve ser desapossado desse controle ilusório, arrastado para o círculo mágico da ação teatral.” [2]. Brecht dialoga com o espectador sob os termos da dialética franca, do ator que comenta direta ou indiretamente seu personagem através de sua impressão, e do espectador que é convidado ao debate político do texto e da encenação sem que para isso seja posto sob o véu da imersão narrativa, da (suposta) ilusão. Já Artaud pensa nessa mágica da encenação, de um espectador que assimila experiências sensoriais sem a princípio racionalizar essas impressões. Com isso, é construído o argumento de que o espectador de Brecht é mais “ativo”, pelo seu convite à reflexão das obras, enquanto o de Artaud é mais “passivo”, pela ideia da escuta que não atravessa a quarta parede do palco.

A questão para Rancière é menos de como essas teorias são válidas ou não, até porque ambas foram aplicadas magistralmente por cada um dos diretores/dramaturgos, e mesmo a interpolação entre ambas é possível em qualquer ramo das artes: da mesma forma que Michael Snow parte do cinema de paisagem que data dos Lumière para o aliar à sensorialidade pictórica das fusões e da montagem focada no cinema estrutural em Wavelength (1967), ou as pinturas entre 1910 e 1920 de Giorgio de Chirico, que pôde partir do impressionismo francês e das paisagens holandesas para chegar ao “surrealismo” de sua obra – entre aspas, porque nem mesmo entre os surrealistas ele fôra classificado após se afastar da sua fase metafísica. Não é sobre as obras que Rancière fala sobre, e sim sobre o papel de quem as recebe. E a questão central é do porquê dessa estranha dicotomia entre espectador e letargia, ou “por que assimilar escuta e passividade (…)?” [3]

Para Rancière, tanto no teatro épico quanto no teatro da crueldade isso coloca espectadores e atores em direto confronto estrutural, porque é dessa forma que desqualifica-se o espectador porque ele não faz nada, enquanto os atores em cena ou os trabalhadores lá fora põem seus corpos em ação”. [4] No cinema isso funciona de forma razoavelmente similar, uma vez que também existe o véu da quarta parede – imaginária no teatro, palpável na tela de cinema – e também existe a falta de controle do tempo na recepção daquelas imagens. No cinema e no teatro, estamos reféns do tempo de seus criadores. Já nos videogames, quem recebe as imagens não é o “espectador”, e sim o “jogador”. Ao jogador é entregue o controle, as possibilidades de renovar os caminhos da narrativa, de ponderar e decidir como serão aproveitadas as opções programadas nos jogos, o tempo no qual a obra será jogada; em síntese, ao jogador é dada a escolha.

E isso é tratado de forma ferrenha por uma parte do público de games. Obras como Thirty Flights of Loving (2012, Blendo Games), e os mistérios criados pelo diretor David Cage, Heavy Rain (2010, Quantic Dream) e Detroit: Become Human (2018, Quantic Dream), entre tantas outras, desafiam o controle do jogador, o omite da ação em prol de decisões morais, ou dedica foco maior em narrativa em detrimento de uma jogabilidade mais clássica; é só procurar em fóruns, nos comentários da Steam ou algo similar, para vê-los sendo classificados pejorativamente como “filmes interativos”, ou nem mesmo isso. Há também os jogos focados em uma história que é traduzida diretamente na jogabilidade, mais “clássicos”, mas que através dos caminhos narrativos tomam decisões emocionais que despertam a sensação de “traição” no jogador. Tomemos dois desses jogos como exemplos, Bioshock (2007, Irrational Games), um shooter de ficção-científica especulativa em primeira pessoa, e Spec Ops: The Line (2012, Yager), um shooter de guerra em terceira pessoa.

Bioshock começa com Jack, um protagonista sem memória que sobrevive a um desastre aéreo caindo no mar, e que busca refúgio em um misterioso farol no meio das águas. Lá descobre a cidade de Rapture, uma utopia subaquática moldada em volta do suposto livre pensamento e do espírito de ação, ideias promovidas pela literatura reacionária da escritora Ayn Rand. Ao longo do jogo, percebemos que aquela cidade uma vez próspera e ultratecnológica virou um apocalipse, com os habitantes tornados zumbis e ambientes destruídos por uma guerra civil. Nessa atmosfera de survival horror, uma voz nos guia para entender o que motivou o fim da cidade. Seguindo esses objetivos, vamos logo percebendo que a presença do protagonista ali é programada: sua (e portanto nossa) jornada é matar Andrew Ryan, o idealizador da cidade, que através de sua covardia em se blindar diante da ideologia de ação humana é assassinado por nós sem reagir, porque reagir seria interferir na escolha do jogador. Nossa ação é orquestrada por Fontaine, um político que confrontou Ryan e usou o povo, através da religião que antes era proibida na cidade, para questionar a utopia do magnata. Nossa queda na ilha era parte do plano para matar o rival de Fontaine, e o protagonista sofre uma lavagem cerebral para realizar tudo o que Fontaine manda. Claro que eventualmente o final do jogo é voltado na vingança contra o vilão que nos ludibriou, mas isso não tira um decisivo fator de Bioshock: enquanto jogadores, fomos enganados por 12 horas de narrativa.

Durante toda a história, faz parte da trajetória do protagonista que controlamos que ele funcione como um “vilão” não-declarado do jogo, que ele execute sua missão sem saber que a está realizando; com essa ferramenta controversa, o diretor Ken Levine busca uma reflexão sobre a suposta elucidação que as escolhas pregadas por Ayn Rand falam, e que não levam em conta a sociedade como um lugar de equidade e alguma justiça sociopolítica. Levine questiona o excepcionalismo nojento da escritora confrontando suas idéias na forma de Rapture, a cidade-fantasma destinada aos grandes feitos da humanidade mas que esconde terrível desigualdade social nas suas raízes; “escolha” não é um conceito que se aplica a todos nessa utopia. E com essa discussão, Bioshock fala sobre a própria ideia de escolha nos jogos: caso fôssemos avisados de antemão, talvez não houvesse narrativa alguma. Sofremos um direcionamento míope para melhor imersão na própria jornada emocional de Jack. Enquanto força trabalhadora, enquanto “operário”, a Jack não é dado o direito da escolha. E como jogadores percebemos que “jogar” não é sinônimo de “atividade”, ou de “escolha”; estamos no terreno pré-programado, imaginado, pelas escolhas das mentes da Irrational Games.

Isso é diretamente exemplificado também em um segmento de Spec Ops: The Line, brilhante adaptação de Coração das Trevas, que cito brevemente. Jogamos como Martin Walker, um soldado que, junto a dois outros fuzileiros, deve cruzar uma Dubai destruída por tempestades de areia para resgatar o capitão John Konrad, que ficou supostamente preso numa missão de resgate. Um dos soldados companheiros de Walker questiona sobre o uso de uma bomba fosforescente, uma arma química que derrete a pele dos afetados por ela. Ele diz que Walker “viu o efeito que essa bomba causa”, e que não deve usar. Walker então responde que “não tem escolha”, ao que o soldado replica que “sempre há escolha”. É quando o protagonista arremata: “não, não há”. E após essa cena o jogador é obrigado a jogar uma arma biológica terrível sobre seus inimigos, para mais tarde descobrir que matou dezenas de inocentes no ataque, em uma cutscene muito impactante e controversa.

Esse metacomentário de Walker, que diz com todas as letras que “não há escolha”, nos força a pensar, como em Bioshock, na essência de escolha atribuída a esses jogos. Nossa “impotência” diante dos eventos que tomam forma à nossa frente desvela explicitamente essa falsa ideia de controle do jogador. A questão é, como cito em Rancière anteriormente: essa “falta” de escolha significa passividade? Não estamos aproveitando uma experiência imersiva e sensorial baseada no nosso olhar e nossa reflexão? Essa distância, esse “controle”, é mesmo necessário para se ter uma relação frutífera com uma obra? Cabe aqui pensar então que é possível, também, a “emancipação” do jogador. Seguir um caminho determinado não nos impede de ter uma opinião sobre, de construir ligações com os signos ali apresentados. A emancipação do espectador proposta por Rancière passa por outro lugar, já que “começa quando se questiona a oposição entre olhar e agir.” [5] Atribuir uma qualidade ao fato do jogador, diferente do espectador, ter esse “controle” que já se provou em muitos casos imaginário, é negar que a recepção de obras cinematográficas tem preceitos tão ativos quanto.

Nos filmes de Phil Solomon existe menos liberdade de fruição e interpretação, menos atividade de quem assiste e joga, do que em games como os Far Cry mais recentes ou Ghost Recon: Wildlands, jogos repetitivos e cujos objetivos de ação se restringem às mesmas missões ano após ano? Existe mais ação e atividade mesmo em um ótimo jogo como The Last of Us (2013, Naughty Dog), uma aventura linear cujos mecanismos narrativos são bastante definidos e pré-programados, cujo desenvolvimento de personagens se assemelha tanto a vários exemplos no cinema clássico-narrativo americano? O mesmo vale para o oposto: não existem menos interpretações, reflexões e ganchos emocionais em Bioshock como existem em Rehearsals for Retirement, e presumir isso seria trair o fato de que “o que está em ação é sempre a mesma inteligência, uma inteligência que traduz signos em outros signos” [6], que Rancière aponta no ensaio.

Essa ideia da liberdade do jogador diante dos games, sejam eles em mundo aberto ou não, soa diretamente como a falsa liberdade do espectador chamado à ação no teatro apontada por Rancière. A noção dicotômica permanece falha, e como o francês aponta, “caberia hoje reexaminar esses princípios, ou melhor, a rede de pressupostos (…): equivalências entre público teatral e comunidade, entre olhar e passividade (…); oposições entre coletivo e individual, imagem e realidade viva, atividade e passividade, posse de si e alienação.” [7]

Do espectador não é tirado o controle que um jogador teria; somos chamados a um novo tipo de fruição, tão complexa quanto a de alguém jogando, na atividade de um espectador buscando ligações sensoriais entre os planos, para que então possamos compor nosso “próprio poema com os elementos do poema que tem(os) diante de si.” [8]

A dialética das imagens propostas por todas essas obras, de duas artes aparentemente distintas, funciona sob a mediação do artista que realiza sua obra e que também escuta, de certa forma, o espectador/jogador, através das questões e reflexões dos espectadores, e da fruição interativa e interpretativa dos jogadores. Rancière levanta o quanto essa distância não deveria ser inquisidora, sob alturas distintas de argumentação, e sim uma troca comunicativa cujas transformações virão de ambos os lados, já que “a distância não é um mal por abolir, é a condição normal de toda comunicação.” [9] O escritor diz que “a distância que o ignorante precisa transpor não é o abismo entre sua ignorância e o saber do mestre. É simplesmente o caminho que vai daquilo que ele já sabe àquilo que ele ainda ignora, mas pode aprender como aprendeu o resto.” [10], e como tal, os jogadores precisam ir do ponto A, que conhecem, ao ponto B, que os designers do game conhecem; não existe hierarquia pejorativa, existe diálogo e dialética, e é dessa fricção que se gera conhecimento.

Em GTA: San Andreas, podemos vasculhar a densa e vasta topografia daquelas três cidades, supostamente com a liberdade da não-linearidade, da escolha; decisões de game designers que entendem que o jogo de aparência que envolve “liberdade” é uma convocação à exploração curiosa de um espectador/jogador precisamente limitado aos desejos e regras dos criadores da obra, mas sempre se reconhecendo como tal, sem ilusões; um jogador emancipado como o espectador de Rancière. Quando estamos diante dos filmes de Solomon, não é diferente: espectadores expostos a signos enigmáticos, abstratos, cujas imagens inspiram memórias e reflexões próprias que forçam o espectador a lidar com um objeto tão oblíquo e capaz de despertar reações emocionais tão diversas, através de seu desenho de som focado em noise e ambient como um fluxo constante, ou com a torrente de imagens cataclísmicas geradas por códigos virtuais e a inteligência do quadro e do corte do cineasta. Não existe relação de qualidade entre o espectador de Solomon e o jogador da Rockstar; ambos estão em diálogo constante e fluido. Como aponta o filósofo francês, “é nesse poder de associar e dissociar que reside a emancipação do espectador. (…) Ser espectador não é a condição passiva que deveríamos converter em atividade. É nossa situação normal.” [11]

Quando se tira totalmente o controle das mãos do jogador, o suposto poder de decisão delimitado pela Rockstar, Phil Solomon escancara dois tecidos muito densos da realidade, mas que nunca soam contraditórios: estamos passivos na experiência cinematográfica de algo que nasceu na “atividade”, e ao mesmo tempo estamos conscientes como espectadores de podermos articular interpretações distanciadas que não teríamos caso estivéssemos sob a teia da imersão em terceira pessoa do agir no jogo; é demonstrado que somos capazes de produzir aquelas imagens porque estamos num mundo de recursos de ação familiares aos olhos, e simultaneamente nos é destituído o véu da missão, nos sobrando apenas o fluxo espiralado de confronto de uma natureza fora do (aí sim) nosso controle. No caos urbano de Los Santos, seja na versão oficial da Rockstar ou no mod cinematográfico concebido pelo tempo de Solomon, estar jogando ou assistindo são convites igualmente atraentes a quem está do outro lado da tela repensar o fluxo contínuo e anestésico do que significa agir.

Referências:

[1] – O Espectador Emancipado, Jacques Rancière, pág. 10

[2] – idem, pág. 10

[3] – idem, pág. 16

[4] – idem, pág. 17

[5] – idem, pág. 17

[6] – idem, pág. 15

[7] – idem, pág. 12

[8] – idem, pág. 17

[9] – idem, pág. 21

[10] – idem, pág. 21

[11] – idem, pág. 21

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