Por Natália Reis
Se eu pudesse nomear dois padrinhos para o momento da concepção de Sessão Bruta, eles seriam Marlon Riggs e Hélio Oiticica. De um lado, a investigação poética de trajetórias, corpos, gêneros e sexualidades à margem da margem. De outro, a noção de vida e arte como vetores indistinguíveis entre si e a experimentação cinematográfica como forma de se manter no limiar do cinema, no quase-cinema. Se Oiticica falava da necessidade de assumir uma condição “subterrânea” para trilhar a produção artística no Brasil, o coletivo mineiro LGBTQIA+ “As Talavistas” vai reinventar o conceito pela via da “clandestinidade”, parte constituinte das identidades radicalizadas de suas integrantes e força motriz que faz com que o próprio processo de produção do filme se afaste de qualquer normatização.
Sessão Bruta vai abrir com uma cena totalmente adorável: no aconchego de um quarto cor de rosa, um grupo de amigas conversa através de uma caixa de som potente com a assistente virtual do Google. Em alguns momentos as perguntas (sobre drogas, terrorismo, etc.) feitas à inteligência artificial vão gerar respostas incoerentes, equívocos, falhas engraçadas; em outros, a voz feminina robotizada simplesmente prefere se calar e é desafiada pela sua interlocutora a se retratar. A situação toda é guiada por um humor provocativo, do tipo que faz você querer conhecer melhor essas personagens igualmente adoráveis. E é exatamente isso que vai acontecer nos próximos 80 minutos de filme.
Através de depoimentos, performances, discussões acirradas sobre gênero, classe e raça e momentos escrachados de diversão, o longa vai se estruturar como uma espécie de apresentação do coletivo, explorando ainda histórias individuais e as possibilidades de cor, texturas e ruídos oferecidas pela manipulação de imagens de arquivo captadas por uma câmera Mini-DV e distribuídas pelo intervalo de cerca de quatro anos de registro. Ao partir de uma ideia de obra em transição ou “um filme por fazer”, a montagem tenta empreender uma fragmentação intuitiva que nem sempre consegue se ater à proposta experimental que a articulação do material bruto pode oferecer, caindo por vezes em cenas puramente didáticas e arrastadas que acabam prejudicando o dinamismo e a força das demais. Ainda assim, o filme é um interessante exercício de reflexão sobre o próprio processo da experimentação coletiva como fortalecimento das redes e existências clandestinas. Muita coisa, coisas maravilhosas e poderosas, estão acontecendo sem que tomemos nota, e Sessão Bruta é um convite para abrirmos os olhos a elas.