Por Natália Reis
A 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes começou deixando um gosto agridoce na boca de quem foi pego desprevenido com a notícia, quase às vésperas do festival, do cancelamento das exibições presenciais. Entre momentos preciosos da abertura transmitida no Youtube – como uma homenagem à colossal Elza Soares, que nos deixou essa semana –, a presença da montadora Cristina Amaral comentando sua relação com Adirley Queirós e as vinhetas rememorativas realizadas a partir de antigas entrevistas com figuras essenciais da mostra (como um muitíssimo jovem Francis Vogner dos Reis), sobra ainda espaço para o lamento pela inevitabilidade de uma situação pandêmica que violentamente nos priva de instantes tão recompensadores quanto a conversa acalorada na mesa de bar após uma sessão, ou ainda, tendo em conta a classe dos realizadores, a possibilidade de ter seu trabalho atravessado pela experiência coletiva de uma plateia reunida em frente à tela grande do cinema. Se por um lado o formato virtual representa uma forma de democratização do acesso e de priorização da saúde pública, por outro é bem provável que ele pode ainda facilitar certos processos dispersivos e de carência das condições ideais de exibição. Parte desse lamento reside no fato de que não há muito, na verdade quase nada, a se fazer. Resta celebrar à distância a persistência de um evento que há 25 anos oferece um espaço único de acolhimento e florescimento do cinema brasileiro, apesar de tudo.
No primeiro dia de festival, decidi focar nas três sessões independentes de curtas-metragens: Mostra Regional, Mostra Foco Minas e a Mostra Temática: Cinema em Transição. Seguem as obras (diversificadas entre trabalhos de veteranos e iniciantes) que mais ressoaram por aqui:
O que eu gosto de fazer é ter nascido no mundo (2021)
de Monique Rangel – Mostra Regional
No filme de Monique, conhecemos Maria da Conceição Rangel, Aparecida Rangel e José Rangel, três familiares que realizam juntos um gesto de imersão nas memórias de um antigo centro de umbanda na cidade de Leopoldina, outrora regido pela matriarca da família já falecida, e hoje uma espécie de depósito de imagens sacras que perecem pela ação do tempo. A relação com a diretora (que compartilha do mesmo sobrenome) não é posta de maneira clara, mas é notável a cumplicidade que ela exerce enquanto ouvinte que acompanha atentamente os relatos dos protagonistas, pontuados por temas que envolvem fé, misticismo e questões de raça. A crença em milagres, as lembranças narradas de um lugar de assombro e a confiança mútua que vai permitir a abertura e o compartilhamento sincero faz com que O que eu gosto de fazer… se concretize como uma experiência encantadora, que deixa claro ainda o papel da história oral na superação da morte e do tempo.
Ácaros (2021)
de Samuel Marotta – Mostra Foco Minas
O curta-metragem é um formato que por si só pode garantir experimentos interessantes, que ultrapassam a simples necessidade de concatenar uma ou mais cenas em um curto espaço de tempo. No caso de Ácaros, em pouco menos de 5 minutos Samuel Marotta realiza um jogo de revelação que se vale de exercícios concretos de escala, aproximação e distanciamento para desvelar uma imagem maior e assustadora. É um filme sobre ruínas que podem abrigar outros mundos (ou seres vivos, além de ácaros), e nada mais certeiro que o uso da trilha de Rebeldes do Deus Neon de Tsai Ming-Liang, um cineasta que, entre outras coisas, sabe localizar e trazer à tona a pulsão de vida que emerge das paisagens decadentes.
Corre de Marmita (2021)
de Luiz Pretti e Philippe Urvoy – Mostra Foco Minas
No filme de Pretti e Urvoy uma câmera dinâmica acompanha e assimila o “corre” envolvido na coleta e doação de alimentos e materiais de higiene pessoal pela Kasa Invisível, uma ocupação anticapitalista e autônoma de Belo Horizonte cujas áreas de atuação se estendem a ações de cunho social como a distribuição de marmitas para a população em situação de rua num momento de grande vulnerabilidade como a pandemia. A montagem acelerada, os enquadramentos fragmentados de braços, mãos, corpos sem rostos e as vozes determinadas dos integrantes do coletivo condicionam uma fisicalidade e movimento a Corre de Marmita que nos cabe reconhecê-lo como um elogio da ação direta.
Rua Ataléia (2021)
de André Novais de Oliveira – Mostra Cinema em Transição
O cinema de André Novais é um cinema conhecido pelo tratamento dado à intimidade e cotidiano familiares como catalisadores do extraordinário que por vezes percorre subterraneamente o ordinário. Nesse filme, gravado há mais de 10 anos e só agora recuperado, Novais mergulha na escuridão total de um apagão na rua para encontrar seu irmão e seus pais como habitantes de uma noite infinita, respingada por uma ou outra fonte de luz. A textura granulosa da imagem que deixa os contornos tão turvos, não restando nada além de cabeças flutuantes, parece enviar uma mensagem codificada de algum lugar do passado: a memória é essa coisa viva que vai tentar se fazer visível quando menos se espera, nesse caso, em uma brincadeira de reconhecimento de fotografias de um antigo álbum de família.
Yãy Tu Nũnãhã Payexop: Encontro de pajés (2021)
de Sueli Maxakali – Mostra Cinema em Transição
A realocação de aproximadamente 100 famílias tikmῦ’ῦn-maxakali da reserva de Aldeia Verde em decorrência da pandemia é o motivo que norteia o filme de Sueli Maxakali. Mas, sem se ater aos aspectos práticos que envolvem o deslocamento e o isolamento da aldeia, a diretora traz, por meio de cenas absolutamente poderosas de conexão imediata com a terra e de celebração com cantos e danças, um vislumbre da força vital que transborda de suas imagens: a ritualização da esperança.