Por Pedro Tavares
O futebol exerce sobre o povo um poder que só se compara ao poder das guerras. Leva um país inteiro da maior tristeza à maior alegria. Para explicar esse fenômeno, há duas teorias: uma diz que a bola de futebol é um símbolo do seio do ventre materno, de modo que se compreende o ardor que os jogadores disputam um jogo e a preocupação dos torcedores com o destino da bola. A outra teoria, mais sensata, diz que o povo usa o futebol para gastar o potencial emotivo que acumula por um processo de frustração na vida cotidiana. O universo lúdico do estádio é um campo mais cômodo para o exercício das emoções humanas.
(Garrincha, Alegria do Povo, Joaquim Pedro de Andrade)
Onze jogadores em campo em Garrincha, Alegria do Povo:
1.
No espaço não-linear utilizado por Joaquim Pedro de Andrade para empregar Garrincha como um fenômeno inerente aos valores do povo, indo das vitórias da seleção em 1962 e 1958 à derrota de 1950, no Maracanã, o que está em jogo a cada plano é a paixão que existe nessa interpenetração de mundo que rege emoções: Nele está o estudo dos corpos em ação nas mais diversas vertentes: do aquecimento no vestiário ao desespero emocional nas arquibancadas. É um filme que não se contenta com os relatos, mas sim com a ideia de recomposição e de novos significados através das posições das imagens, o que parece sintomático para um filme que envolve corpos e o social.
2.
Assimila-se, no quadro, a distância e Garrincha como seu centro. Joaquim Pedro de Andrade chega a filmá-lo em sua cidade natal, Pau Grande, mas concretiza um tipo de respeito que induz a noção de realeza ao seu protagonista. Garrincha não é um personagem expressivo, porém está sempre em atividade. Sereno com a formulação e execução de seus deveres, seja no campo de General Severiano, casa do Botafogo de Futebol e Regatas, seja na final da Copa do Mundo de 1962, jogando com febre e sentindo a ausência de Pelé em campo. A emoção, neste sentido, é contida até mesmo pelo realizador, como um movimento de respeito máximo a quem se filma.
3.
A lembrar que cinema é linguagem, a citar André Bazin em O que é o cinema? (1958), a maior delas aqui é a fixação ao ritual. É no processo de deslocamento ao estádio, na compra de ingressos, na espera pelos times em campo, pelo jogo em si e pela volta para casa acompanhada de uma alegria extasiante ou de uma ressaca indescritível. É um tipo de emoção que pode ser podada por qualquer acontecimento ordinário da “vida real”, mas a paixão por esta posição que é oferecida no dia domingo é perdurada e leva até o próximo apito do juiz, sete dias depois.
4.
Abro um parêntese para destacar que este tipo de paixão incontrolável aumenta conforme o time passa por uma montanha russa de emoções. Sabe-se que o Botafogo é um time com esta forte característica até os dias de hoje e a última colocação no Campeonato Brasileiro da temporada 2020/2021 não me deixa mentir. Apesar de seu apogeu estar na época de Garrincha, Manga, Jairzinho e outros, a câmera de Joaquim Pedro capta o time acuando os adversários como Flamengo, Vasco e Fluminense, mas nos olhos dos torcedores é possível notar a angústia e dificuldade que o esquadrão alvinegro passava no gramado do Maracanã.
5.
Garrincha: Alegria do Povo está longe de ser um filme límpido. O protagonista tem direito a uma só fala no filme. Suas palavras estão contidas nos gestos que transparecem sua personalidade: a brincadeira nos treinos, a tranquilidade dos dribles e o prazer em estar com os amigos em uma mesa de bar. Narrações em off pontuais. Os arquivos, como citado anteriormente, não são lineares. A derrota na final de 1950 vai para o fim do filme, depois de uma análise sobre os jogos de 58 e 62. Fotos. Muitas fotos. E são elas que captam melhor o espírito de um exercício apaixonado de 90 minutos. Com elas assimilamos uma descentralização em relação ao tempo e foco em um estímulo que independe de sua posição cronológica.
6.
Um filme que cria um conflito curioso entre os imprevistos de uma história com seu formalismo. A exemplo do momento que Garrincha assume ter dado um pontapé em um jogador e toma uma pedrada da torcida, o filme toma por iniciativa um momento de total sobriedade: a voz off narra o que de fato aconteceu. As informações são cedidas de modo que a construção lógica elimine a necessidade da existência deste fato em tela. E é isso que acontece. O filme se faz nos dribles da montagem, na visão torta do tempo e longe de uma dinâmica já estabelecida em documentários biográficos.
7.
Aproveito o número sete, místico para qualquer botafoguense, para dizer que a “máquina do cinema”, a citar um termo adotado por Ismail Xavier em A Experiência do cinema (1983), exige a crença no olho (p. 280), e que nesses “golpes de vista” o Botafogo vive suas duas vidas, não à toa como se divide uma partida de futebol. Um molde para que a câmera crie, em imagens descontínuas – ora o Botafogo joga contra o Flamengo, ora com o Vasco –, e essas transformações montam um clube que passa por seus altos e baixos em blocos.
8.
Nesse sentido, a vida de Garrincha fora de campo tem o mesmo peso que sua vida dentro das quatro linhas. E isso se dá pelo formalismo: nas imagens, os transeuntes no centro da cidade, os amigos em Pau Grande ou os companheiros de time e seleção circulam e circundam a alegria. E é para ela que a câmera aponta. O que interessa ao filme é, de certa maneira, como a engrenagem desta alegria funciona em todos os dias da semana como uma visão mítica da subsistência do proletariado.
9.
Um retrato desse jogador ainda no auge não é inerente à suposta emergência consumista. Um filme efetivo sobre Garrincha em ação é um registro histórico de um sentimento alastrado pelo Brasil, transformando em imagens o que o exercício lúdico do rádio criara.
10.
Enquanto constrói um mundo palpável através das imagens, Joaquim Pedro parte da ideia das arquibancadas de concreto, dos trens lotados, do centro da cidade repleto de trabalhadores na hora do almoço. Garrincha é atração em pessoa no domingo, mas suas ações refletem na segunda-feira. É um alicerce para um filme que recusa todo tipo de acordo com o olhar burguês; e é justamente nas imagens de formalidades que o filme é interrompido por um óvni capaz de jogar toda solenidade no chão: “Vasco!”.
11.
De certo que o filme não antecipa qualquer caminho trágico que a carreira de Garrincha tenha tomado e se concentra no sublime momento de manutenção semanal de uma paixão avassaladora. O sistema utilizado é sim dos onze homens com a camisa alvinegra ou da seleção, porém, o coração que bate é daqueles que roem as unhas, seguram os seus rádios colados à orelha, gastam toda sua voz conforme os passes e cruzamentos param em pés errados. Garrincha: Alegria do Povo, antes de qualquer contorno social, é um filme sobre a desnecessidade de explicação de como esta paixão alegra e derruba mais de 120 mil pessoas ao mesmo tempo e em um mesmo lugar.