Imagem-trabalho

Por Diogo Serafim

Ao compararmos a iconografia do cinema à da  pintura cristã, percebemos que lá o trabalhador  é visto como aquela mesma criatura rara, santa. O cinema mostra o trabalhador de  outras formas também, mas capta  principalmente o elemento referente ao trabalhador presente em outras formas de vida. Quando os filmes americanos falam de poder econômico ou dependência, eles costumam retratar isso usando o exemplo de bandidos, sejam pequenos ou grandes, preferindo essa   dinâmica ao cenário de trabalhadores e empregadores. Devido ao fato da máfia controlar alguns sindicatos dos EUA, a transição do filme trabalhista para o filme  gangster pode ser tranqüila. Concorrência, formações de trust, perda de independência,  destino de funcionários menores e exploração – todos são relegados ao submundo. O filme americano transferiu a luta pelo pão e o pagamento da fábrica para as salas de entrada  dos bancos. Embora os ocidentais freqüentemente lidem também com batalhas sociais, como as que ocorrem entre fazendeiros, elas raramente são travadas em pastagens ou campos, mas com mais freqüência nas ruas da  vila ou no saloon.

Harun Farocki

 

HOLY MOTORS

O trabalho na física está relacionado com o deslocamento de um corpo devido à atuação de uma força, consistindo assim em uma transferência de energia. Quando Farocki analisa a força que puxa os operários para longe da fábrica ao fim do turno diário, o diretor está se referindo a uma força concreta que faz com que aquele movimento acelerado resulte na saída uniformizada e coletiva dos operários de diversas fábricas no mundo no processo de se individualizarem. Uma força que aparentemente age contra um bloco de indivíduos se demonstra na realidade uma congregação de forças que agem em cada operário de acordo com as vidas próprias que cada um possui, vidas estas perdidas durante o turno de trabalho em uma lógica de alienação comunitária.

Aqui Farocki retoma como ensaio uma ideia que Kaurismaki já tinha trabalhado em Sombras no Paraíso (1986) como relato, a ideia de uma vida que é própria a um proletário mas que floresce apenas ao fim do turno diário. Usualmente vemos a saída da fábrica mais como uma extensão do trabalho em outra modulação do que propriamente uma fuga temporária, e devemos ao menos acreditar na possibilidade de um novo tipo de lógica laboral nessa inversão de rotina. Já que a ideia de comunidade não pode sobreviver fora do ambiente do trabalho, Farocki vê a saída dos operários como possível catalisador de uma articulação reformista. Mais que isso, vê o cinema como a possibilidade de propor a faísca necessária para que essa articulação ocorra.

HOLY MOTORS

Mas como poderia o cinema, atividade intelectual, proporcionar uma mudança efetiva? Como se pode transformar a abstração da imagem e reduzi-la a uma práxis materialista? Farocki afirma que há de ser possível encontrar um substituto para a medição manual com o uso de fotografias. É perigoso estar fisicamente em algum lugar para mensurá-lo precisamente, tirar uma foto é um procedimento mais seguro. A primeira imagem de Auschwitz foi tirada a 7000 metros de altitude, mas sequer percebemos do que ela tratava efetivamente naquele momento. A questão que deve ser posta, sabendo que o olho pode manter uma distância segura do objeto e mesmo assim observá-lo, é saber se o olhar pode substituir a presença. O registro de uma imagem pode ser orientado como poesia, controle ou examinação, mas jamais como presença. A presença deve, então, ser intelectualizada.

Recentemente a imagem de uma criança morta em uma praia na Turquia foi catalisadora para uma nova política imigratória em toda a Europa. Uma imagem foi capaz de alterar o curso político de um continente inteiro por meses, feito que semanas de diplomacia não foram capazes de concretizar. Assim, felizmente, a intelectualização de uma imagem é espontânea. Sua dialetização não forçosamente, e é por isso que temos a combinação de imagens, o cinema, incumbido com tal tarefa.

O movimento repetitivo das ondas indo em direção à terra é o que provoca a ignição da reflexão. Na fábrica que inicia o filme Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra (1989), os pensamentos provenientes desse processo repetitivo, constante, culminam na reflexão. Uma piscina de ondas provocadas por um braço mecânico, um barco à deriva que na realidade tem um movimento programado. Tudo é controlado, tudo é utilitário. A produção em massa é uma produção de guerra. Assim, o estado fundamental econômico nosso é um estado de guerra.

O trabalho de Farocki está muito próximo do marxismo clássico. Guardando a imagem da fábrica como o ponto de inflexão entre o mundo privado e o público, propondo a alienação do espaço controlado de trabalho e a liberação do fim do turno diário, guarda também boa parte dos elementos exigidos pelo autor para o exercício dialético de natureza materialista. Sabendo que as dinâmicas de produção mudaram drasticamente mais de um século seguindo a escrita de O Capital de Marx, como encontrar paralelos entre a descrição proposta pelo autor da sociedade com a política do trabalho no mundo atual, mantendo o olhar crítico e a emergência para reforma social proposta pelo autor? A solução parece repousar próxima do traço de paralelos entre o mundo da segunda metade do século XIX com o mundo devastado pela guerra na primeira metade do século XX e da vigilância tecnológica da segunda metade do século XX. Sua obra consiste na busca por uma imagem que defina o processo de barbarização coletiva que continua para muito além da alienação proletária, para além do genocídio programado nazista, para além do controle estatal e empresarial. A fé de que a dialetização do registro possa ser uma chave emancipatória para o mundo.

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