O Sétimo Código (Kiyoshi Kurosawa, 2013)

por João Lucas Pedrosa

Apesar da tradução internacional de Sebunsu Kodo para “Sétimo Código” (Seventh Code em inglês), ao jogar o título em katakana no Google, encontra-se o conceito de “Acorde de Sétima”. Seventh Chord, não à toa, é o nome anglofônico da música que encerra o filme, performada pela atriz principal (e celebrada cantora j-pop) Atsuko Maeda, e que inspirou o título do filme. Há uma diferença conceitual enorme entre um código e um acorde: um código é um sistema de normas que transmite uma mensagem pré-definida; um acorde é a união de três ou mais notas que criam um conjunto harmônico. O código pode ser interpretado, promete uma resolução; o acorde é um acúmulo, uma fusão de sons individuais ouvidos ao mesmo tempo. Um é teleológico, o outro é experimental. Faz sentido a escolha pelo “código” na distribuição internacional de um suposto thriller e a promessa implícita de solução linear para um suposto mistério. Mas, para quem a obra de Kiyoshi Kurosawa já é familiar, não é surpresa que estamos a experimentar algo da chave fenomenológica, do fracasso de quaisquer linhas e objetivos que pareçam minimamente claros. Seus filmes têm um corpo pulsante e metamorfo, que se direcionam ao mesmo tempo para dentro e para fora continuamente. Talvez como um acorde, um acorde mutante que adiciona uma nota por vez no decorrer dos minutos, compondo e distorcendo a cada adição.

O Sétimo Código é o primeiro de dois filmes que Kurosawa faria com Maeda como protagonista jogada num país asiático não amarelo onde ela é estarrecedoramente estrangeira (o segundo é O Fim da Jornada, O Começo de Tudo, lançado comercialmente em 2018). O desamparo e a alienação dessa condição fazem parte de ambos os filmes, cada um à sua maneira, mas, especificamente neste primeiro, o estrangeirismo da personagem principal Akiko é manifestado pela sua opacidade. Ela é estrangeira – estranha, alheia – tanto em seu contexto como em sua representação. Assim que o filme começa, entendemos que foi à Rússia perseguir Matsunaga (Ryohei Suzuki), que ela afirma não conseguir esquecer desde quando tomou um café com ele no mês anterior. No primeiro plano do filme, Akiko sai correndo atrás do carro azul vintage que o transporta – e que será um ícone da presença desse homem-objeto de desejo ao longo do filme – numa corrida já injusta: não apenas tenta alcançar um automóvel em movimento a pé, como carrega uma pesada mala que faz estrondo por onde passa. Ela surge em plano – e em filme – logo depois que o carro azul sai, na frente de uma fachada em cirílico; antes de Akiko surgir, o espectador comum intuiria que o carro seria o guia dos planos numa sequência introdutória à trama do filme. Mas quem nos guia pelo filme é a protagonista em sua luta romântica estranha, aparentemente infundada e aparentemente perdida. Matsunaga não apenas denota verbalmente seu desinteresse pela moça, como foi à Rússia para tocar uma negociação ilícita com criminosos nativos.

Akiko, assim, se nos apresenta a priori como um desvio tonal, uma revolução epicentral. Ela surge como uma figura inoportuna e indesejada ao contexto estabelecido, buscando desesperadamente romance num lugar emaranhado em intriga internacional. Mas veremos que o ziguezague de intenções e expectativas será o fundamento de nossa relação com ela durante todo o filme. Um personagem particularmente curioso para Maeda, que, enquanto ídolo j-pop, corporificava um arquétipo de estilos e trejeitos graciosos próprios ao conceito da AKB48, supergrupo feminino que integrou até 2011. É um conjunto de configuração muito específica, com dezenas de membros e diversas frentes simultâneas realizando shows pelo Japão. Um exército da delicadeza performática. À altura do lançamento de O Sétimo Código, estava lançando singles solos (Seventh Chord seria o quarto e último) enquanto prosseguia em trabalhos de atuação, apartada do corpo-nação musical onde começou. No filme, ao invadir um prédio fechado para seguir Matsunaga em meio a negociação com mafiosos russos, Akiko é raptada e agredida, e então deixada amarrada e ensacada no meio de um campo remoto. Agora perdeu sua bagagem – as posses que sinalizavam alguma raiz anterior à viagem – e precisa rasgar seu caminho de volta ao mundo, como um pato quebrando a casca. Um renascimento que se dá também enquanto personagem, ao menos aos olhos do espectador, pois uma Akiko muito diferente se levanta da grama. Ela rasga o saco e desata os nós com facilidade e propriedade, anda pelas ruas sem o descuido frágil (e estridente, sempre acompanhado do arranhar da mala arrastada pelo asfalto) de antes, mas com as costas eretas, a precisão analítica de quem encontrará o que precisa. Responde em russo fluente a um homem que lhe oferece ajuda na estrada e invade sem cerimônia uma casa vazia para pegar roupas limpas e um band-aid para o corte no rosto. Um gesto de “auto remonte” a partir dos escassos recursos em mãos – algo coeso ao tom de Kurosawa, que ama erigir potências de mundo das ruínas, e à então fase de Maeda, que formava seu novo tom de carreira.

Podemos, daí, talvez, entender que se trata de um romance – ou novela, dada a curta duração do filme – de formação. Seria, talvez, uma das definições melhor resolvidas com a teleologia inquieta de Akiko: a jornada da maturidade e do autodescobrimento tomando os contornos e rodeios caóticos da vida. Mas a personagem é quem representa o próprio caos, numa sorte de auto entropia, vinda de dentro para fora. Em sua inquietude, constantemente reinicia do zero nossa compreensão de seus objetivos. Ela passa a trabalhar num restaurante para ter sustento, moradia e poder observar a rua (e a possível passagem da Matsunaga). O seu chefe lhe ajuda a entender que seu homem-objetivo está atrás do Krynon, um dispositivo nuclear raro, e morre no processo. Matsunaga vê Akiko a esmo na rua e a leva para casa, com pena. Lá, em completo domínio de combate físico, ela o imobiliza e mata com um tiro na cabeça para roubar-lhe o Krynon e levá-lo a um político russo. O motivo emocional parecia então apenas o subterfúgio de um motivo muito claro e utilitário. Isso não vem como surpresa, dada a postura de Akiko após sair do saco de pano, mas a sua sustentação da narrativa romântica para o chefe do restaurante e a colega garçonete ao longo de tanto tempo nos faz questionar o quanto talvez Akiko possa ter se “perdido na personagem” – ou, talvez, encontrado algo.

Com o dinheiro que ganha, ela pega carona com uma caminhonete cheia de dinamite em direção ao futuro. Seventh Chord, enfim, toca, e a cena incorpora a performance filmada da música por Akiko numa afetação poética em promessa de vida que, ao mesmo tempo, também assume a natureza musical de sua atriz. A música termina assim que o caminhão sai de plano, sumindo no horizonte. Mas o carro azul de Matsunaga aparece seguindo-os, mais uma vez desviando o desfecho do filme. Vemos Akiko sorrindo em close ao ver o carro – o júbilo da inversão de perseguidora a  perseguida? Ela parou de buscar e agora é o objetivo – e, já num plano geral, a troca de tiros ao fundo da estrada. Um deles pega na dinamite e tudo se explode. Sempre houve algo a interromper ou ressignificar a jornada ao extracampo conclusivo, mas agora tudo se dissolve aos céus; à nossa frente, mas a uma distância intimista aos explodidos. O plano lenta e quase imperceptivelmente acompanha a elevação da fumaça em travelling up – uma jornada que nunca foi só “para a frente”, mas para todas as direções, em expansão – até que, talvez no reconhecimento de sua limitação transcendental, a câmera joga o enquadramento para a direita, e a estrada e as cinzas para fora de tela, enquanto os créditos rolam sobre o campo ao qual agora tudo se fundiu em estranha paz. Uma unidade imanente em que todas as sugestões e tons pelos quais o filme se propôs a passar – o romance, o suspense, o jogo de mentiras, o Bildungsroman, o videoclipe, a trova, a poesia – são, enquanto armadilha de uma compreensão “linear” ou “global” da trama, parte do corpo fílmico em toda sua sinceridade metamórfica e contraditória. A explosão acidental é resultado de uma batalha de máfia, de espião contra espião, e também é um shinjū (duplo suicídio dos amantes). Recusar a renúncia de qualquer potência; recusar a verossimilhança para não renunciar à verdade.

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