Por Waleska Antunes
“O universo é eterno, os astros são perecíveis e como formam toda matéria, cada um passou por bilhões de existências. A gravitação, com seus choques ressuscitadores os separa, os mistura, os sova e modela incessantemente, com tanta maestria que não há um só que não seja composto da poeira de todos os outros. Cada polegada do chão que pisamos fez parte do universo inteiro.
Mas é apenas uma testemunha muda, incapaz de contar o que viu na Eternidade.”
(Louis Auguste Blanqui em A Eternidade Pelos Astros).
Em um ensaio sobre “A História do Olho” de Georges Bataille, Júlio Cortázar descreve um dia quente em Grignan onde, à beira de um plátano, olha o movimento da rua e observa uma ciclista a andar com graça em sua bicicleta. Em algum momento, a jovem ajusta sua saia e todo o cenário que cerca Cortázar se isola e se torna uma única coisa: esse leve remexer deixa à mostra as coxas em contato com o selim da bicicleta, criando um movimento hipnótico e sexual sob um sol imperdoável. O mundo se isola e se define naquela curva entre a saia e o selim, como se fosse a expressão de um momento divino – e proibido.
Essa é uma digressão.
Há também quem diga que há duas impossibilidades primordiais no cinema: A representação da morte e do sexo. Há quem diga que a presentificação do ato sexual é inconcebível em uma arte onde se morre dez vezes em sequência. Também muito se discutiu o ato voyeurístico de ir ao cinema nas academias e na prática, ao bisbilhotar por entre as frestas nas madrugadas pela TV ou em quartos escuros o ato da nudez em nossa frente. A palavra ‘abjeta’ é usada em ambas as situações, em diferentes contextos. Há quem discuta todas essas implicações. Há quem discuta a necessidade do sexo no cinema.
E todas essas questões são válidas. Se não as fossem, eram tão somente conjecturas.
Mas essa é outra digressão.
Porém não cabe aqui a digressão. O que talvez caiba aqui é algo da ordem material e das coisas e não das ideias: Se nada disso é possível, se o sexo é abjeção na tela, se o isolar de um momento é um ato voyeurístico, como se explica, então o ato de trazer dos mortos o sexo de espectros e isolar essa única cena, um único detalhe, uma única circunstância e tornar o sexo o momento presente e eterno? Como trazer ao mundo imagens que mediam o desejo da carne e o desafiar do tempo? Como pode o sexo sair da conjectura do abjeto e se tornar algo cósmico?
Esse é XCXHXEXRXRXIXEXSX, de Ken Jacobs, onde duas mulheres colhem cerejas em uma árvore e são tomadas de assalto por um homem e iniciam uma verdadeira aventura sexual. Uma cena que dura horas e que é esmiuçada até o fim: vemos planos abertos, planos fechados, pernas abertas, pernas fechadas, bocas, mãos, duas mulheres indo em direção a um homem, levantar de saias e um verdadeiro êxtase pornográfico. Tudo isso em uma única ocasião: Mulheres colhendo cerejas. Não há nada mais do que isso. Não há uma trama ou um ponto de virada, um ato de sedução: O que há é o sexo, o corpo e a materialidade pura e simples.
O que pode parecer algo comum na mídia corrente, nas mãos de Jacobs é, por assim dizer, um assombro: são utilizadas imagens de arquivo do início do século XX de um filme pornográfico chamado Cherries.
Nada disso está vivo. E ao mesmo tempo, tudo está vivo e pulsante. E como pulsa.
É como se houvesse uma decomposição imagética do mundo e do ato sexual em partes, um breve chamariz de que o isolar do mundo em uma centelha de imagem durante minutos e minutos torna o ato sexual não somente algo da ordem do voyeurístico – afinal de contas, vemos a mesma cena milhares e milhares de vezes por minuto, ao ponto de a mente ir vagar em outros cantos do quadro que não nos corpos nus. Já não nos importa mais os corpos, mas sim, o que eles fazem, como eles se movem, como eles são compostos. Eles se desintegram, se reintegram, se esfacelam e se unem. Isso se eleva à ordem do divino, onde das coisas mais pecaminosas aos olhos humanos surgiu uma divindade, uma centelha do eterno, de algo que se repete e se extingue ao mesmo tempo.
O que você vê ali são espectros, fantasmas, mediados pelo eternalismo – a técnica em que se alternam fotogramas próximos em sequência mediados por um plano negro, realçando a profundidade e um movimento 3D vivo. É como se as imagens estivessem em um constante indo e voltando, continuamente em um ato sexual desmedido, presente e ausente, infinito e avassalador.
A sensação de ver XCXHXEXRXIXEXSX é o prato de leite na história de Bataille, é a mulher de bicicleta em Grignon, é ver um corpo nu pela primeira vez. É uma sensação visceral. Nada te prepara para isso, porém uma vez visto, jamais esquecido.
Ken Jacobs mostra que a unidade primordial do mundo está em três coisas: No sexo, na morte e no que há entre os dois – o frame negro. O infinito do sexo está entre esses fotogramas semelhantes, escondidos no frame negro como uma espécie de mistério, o mistério da carne e do mundo. É como se ele nos dissesse que essas cerejas colhidas por essas mulheres seminuas transando com um homem em meio a uma floresta tivessem sido colhidas em um Éden. O fruto proibido, as cerejas, residem nesse frame escuro que realça o ato e a imagem. O frame escuro é o mistério da carne e do mundo. E abençoado seja esse mistério.
(Dedicado a Ken e Flo, que ensinaram o amor.)