Por Igor Nolasco
Era um dia quente de fevereiro de 1970, regado a chope gelado e enevoado pela fumaça dos cigarros de todos os presentes. O jovem cineasta Rogério Sganzerla, de 23 anos, espinafrava o Cinema Novo na ocasião do lançamento de seu novo filme, A Mulher de Todos – um dos grandes títulos do Festival de Brasília de 1969, incompreendido por parte da crítica durante o evento. Ao seu lado, comandava a entrevista em posição de igualdade a esposa Helena Ignez, atriz baiana que fora musa cinemanovista antes de passar a ser um elemento chave do que viria a ser chamado de “Cinema Marginal” ou “Cinema de Invenção” – um núcleo que vinha sendo gradualmente estruturado a partir dos anos finais da década de 1960, e que se agrupava em torno de um projeto estético e ideológico radicalmente diferente daquele que marcara época no período do Cinema Novo.
“Eu não acho que é perigoso. Se fosse perigoso eu acharia interessante também. A civilização do século XX já cansou de cultivar o perigo, o perigo hoje é uma coisa obviamente bacana. Talvez eu até nem goste do perigo, mas eu acho bacana.”, dizia acerca do Cinema de Invenção o entusiasmado Sganzerla, já consagrado como o autor de O Bandido da Luz Vermelha, rodado por ele em tenra idade, dois anos antes. Entre um e outro gole de chope, disparou: “Então, nós estamos vivendo uma fase agora onde você pode, por exemplo, como a gente estava há três meses atrás, falar bem da chanchada e falar mal do Cinema Novo. O que era antigo em [19]59, a chanchada, hoje é um dado de criação, um dado inventivo e o que era novo, o Cinema Novo, virou um dado conservador”.
É difícil imaginar o curto-circuito que a entrevista dada pelo cineasta e pela atriz aos jornalistas Millôr Fernandes, Sérgio Cabral Sênior, Tarso de Castro e Jaguar, d’O Pasquim[1], pode ter dado aos leitores menos familiarizados com a situação do cinema brasileiro naquele momento. Afinal, o Cinema Novo estava chegando a seu momento culminante: após denunciar radicalmente a situação do “Brasil profundo” em suas obras, que circularam amplamente pelo país e pelos festivais internacionais ao longo da década anterior, o movimento liderado intelectualmente por nomes como Glauber Rocha e Carlos Diegues finalmente conseguira firmar o pacto fáustico com os militares do regime ditatorial que então governava o país na fundação da Embrafilme, companhia de capital misto que fomentava a produção e distribuição de filmes brasileiros, responsável por um período irreconhecivelmente regular na produção de longa-metragens de ficção nacionais de projeção comercial e boa bilheteria entre 1969 e 1990 – quando, já agonizante, a empresa foi dinamitada pelo governo Collor. Naqueles primeiros meses do ano de 1970, estavam sendo gestados, sob faustosos orçamentos, os primeiros grandes filmes rodados por diretores oriundos do Cinema Novo para a Embrafilme, que nem sempre resultariam em produtos finais verdadeiramente interessantes, mesmo que bem-acabados – ver Barão Otelo no Barato dos Milhões (1971), de Miguel Borges, rodado com orçamento estelar para a época, com Grande Otelo no papel principal, película colorida e trilha sonora composta por Edu Lobo, e que mesmo assim entrega um resultado medíocre, para dizer o mínimo.
Fato é que, no mesmo período em que o Cinema Novo se dissolvia com a fundação desse cinemão industrial chancelado pelos militares, algo novo vinha sendo maquinado em São Paulo. Antigas lideranças do núcleo cinemanovista tentaram barrar a penetração de O Bandido da Luz Vermelha, de Sganzerla, no circuito nacional e europeu de festivais em 1968, temendo que a exposição de um filme radicalmente novo como o Bandido caísse à crítica e ao público como um atestado de óbito do reinado cinemanovista. O caminho das pedras, ademais, já era explanado pelo próprio Sganzerla em sua fita de estreia: o que havia de verdadeira novidade, naqueles emblemáticos anos finais da década de 1960, vinha da Boca do Lixo.
Contexto: a Boca do Lixo é uma região do centro de São Paulo, marcada sobretudo pela emblemática rua do Triumpho e pela rua Vitória, onde as majors internacionais de distribuição cinematográfica fixaram-se no início do século XX. Dali, os grandes lançamentos norte-americanos eram levados, cidade afora, por trabalhadores que carregavam as pesadas latas de filme em carrinhos de mão – quando o destino era mais longínquo, os rolos eram despachados em trens. Eventualmente, o local começou a entrar em decadência, tornando-se ponto de prostitutas, vagabundos, bêbados e marginais – e ainda assim, o ethos cinematográfico não largou o osso daquele quadrilátero. Nos botequins da rua do Triumpho, reuniam-se operários que transportavam as latas para cima e para baixo, técnicos que trabalhavam nos filmes brasileiros que vinham sendo gravados na capital paulista, diretores e roteiristas de obras de baixo orçamento e, marcadamente, uma nova geração de críticos e cineastas formada pela Escola de Cinema São Luiz, com bagagem diferenciada e avidez por fazer e acontecer, que encontraria naquele manancial um ambiente de trabalho propício para suas ambições. Ali, jovens promissores como o supracitado Sganzerla e Carlos Reichenbach trocariam ideias com nomes como Jean Garrett e Ozualdo Candeias – “paus para toda obra” mais experientes, e que trabalhariam como diretores, fotógrafos e até mesmo atores em um sem número de fitas gestadas entre uma e outra garrafa de cerveja nos bares da Triumpho. Aquele ambiente efervescente seria registrado por Candeias nos curta-metragens Uma Rua Chamada Triumpho 1969/70 (1970) e 1970/71 (1971), e relembrado posteriormente em longas como As Bellas da Billings (1987).
Já na entrevista dada a’O Pasquim, quando aponta a chanchada como um dado de criação, Sganzerla parece estar traçando o mapa da mina para o entendimento do cinema que vinha sendo feito na Boca do Lixo. O caráter sisudo e professoral das produções cinemanovistas dava lugar a uma linguagem despojada e, por vezes, francamente debochada. As personagens trágicas que serviam como avatares para as mazelas do povo brasileiro eram substituídas por atores e atrizes recorrentemente entregues a interpretações brechtianas, em longas que se importariam muito mais com a experimentação visual do que com uma narrativa clara e moralizante. Os cineastas da Boca, através dessa metodologia (que não era necessariamente uma cartilha a ser seguida à risca por todos), poderiam finalmente filmar com olhos livres[2], sem tabus. Isso pode ser visto já em A Mulher de Todos, sobretudo na forma como o filme lida com o erotismo.
Ângela Carne e Osso, a “mulher de todos” vivida por Helena Ignez, já se impõe e mostra sua atitude ao espectador desde o (emblemático) cartaz do filme: expressão de desprezo no rosto, cigarro pendurado na boca, mãos na cintura e braguilha da calça aberta. Apesar do título sugestivo, em momento algum a personagem é mostrada por Sganzerla como um mero objeto de desejo: o grande apelo de seu longa está na constatação de que, cobiçada por todos os homens que cruzam por seu caminho, a personagem faz deles gato e sapato a seu bel prazer. Esse exemplar prematuro de filme do Cinema Marginal a lidar com o sexo e a sexualidade de forma mais direta (ainda que sem trazer o apelo necessariamente para o físico de suas personagens) segue a trilha de obras como As Libertinas, longa episódico rodado na Boca em 1968 por Carlos Reichenbach, João Callegaro e Antônio Lima, e precede trabalhos como O Pornógrafo (197), de João Callegaro, e Audácia! – A Fúria dos Desejos (1970), de Reichenbach e Antônio Lima.
É de se pensar de onde o cinema da Boca do Lixo teria tirado sua “aptidão” ao erotismo. Pode-se argumentar que é um movimento compreensível, uma vez que o contato cotidiano com as manifestações da sexualidade no Brasil tornaria o tema naturalizado (ainda que tal visão perigue cair na perspectiva datada e passível de questionamentos de que o brasileiro seria um “povo sensual”, vide Gilberto Freyre), mas nunca antes no cinema brasileiro ele havia sido tratado de maneira tão despreocupada (obras cinemanovistas que lidam com o sexo e a nudez, como Os Cafajestes [1962] de Ruy Guerra, não exploram a sensualidade, mas sim os jogos de poder e a miséria existencial; em Walter Hugo Khouri, autor fora da curva e da grei dos “movimentos” cinematográficos, o erotismo é um elemento que articula as tensões de seus sofisticados jogos psicológicos, passando a ocupar papel cada vez mais determinante em seus filmes mais tardios). Talvez tenha sido das fitas do Zé do Caixão, dirigidas por José Mojica Marins, autor cultuado e tido como mentor pelos expoentes mais significativos do Cinema Marginal. Talvez tenha sido, mesmo, uma retomada da linha evolutiva da chanchada, onde desde a década de 1930 verificava-se uma sexualidade “bem-comportada” nas esquemáticas dos casais mocinha-galã e nos números musicais, mas com destaque para grupos de vedetes apresentando marchinhas carnavalescas e trajadas em maiôs justos, com as pernas à mostra — seria ingênuo não considerar o dado da exploração da imagem do corpo feminino como um dos fatores para a comédia musicada ter se tornado, a rigor, o primeiro filão de bilheteria do cinema brasileiro. A Boca do Lixo viria a (re)descobrir esse filão, seguindo nesse sentido um caminho bem diferente daquele trilhado por expoentes do já dissolvido Cinema Novo (Carlos Diegues, por exemplo, parece ter aprendido todas as piores lições da comédia musicada em Xica da Silva [1976], que não obstante logrou grande sucesso comercial, enquanto Joaquim Pedro de Andrade subverteu os signos visuais da chanchada de forma mais iconoclasta em trabalhos como o seu Macunaíma [1969]).
O Cinema de Invenção desenvolve-se em vento de popa ao longo daqueles primeiros anos da década de 1970, com Sganzerla passando uma temporada no Rio de Janeiro com Júlio Bressane, onde os dois gravam os seis míticos filmes da efêmera produtora Bel-Air; cineastas como José Agrippino de Paula, Andrea Tonacci, João Silvério Trevisan e Carlos Coimbra, além dos já mencionados Reichenbach e Candeias, seguiam trabalhando na Boca. A partir de dado momento, pode ser notada uma maior profusão das fitas que lidavam, de modo frontal, com o sexo – este passava a tornar-se o principal interesse de alguns realizadores, em detrimento de um elemento a ser explorado pelo experimentalismo do grupo do Cinema de Invenção. Desenvolve-se, na Boca do Lixo, uma eficiente cadeia de produção e exibição do tipo de filme que viria a ser chamado de “pornochanchada” – por uns pejorativamente, por outros, nem tanto (certos cineastas chegariam, mesmo, a abraçar o termo). Esse ciclo da pornochanchada paulistana foi em muito estimulado por um dado fundamental: à época, alguns dos mais prósperos homens de negócios da Boca eram donos tanto das companhias produtoras que financiavam aqueles filmes, como também de algumas salas do parque exibidor local. Para o cineasta que trabalhasse naquela lógica de mercado, isso apresentava vantagens e desvantagens: se, por um lado, seu longa já contava com a garantia de que seria exibido em um número inicial de salas, por outro o mesmo tornava-se refém das exigências do produtor-exibidor. Como é de se imaginar, as exigências do produtor-exibidor eram, grosso modo, a de que as fitas onde seu dinheiro estava investido fossem as mais lucrativas possíveis. Para eles, isso significava, necessariamente, a inserção do erotismo: da nudez e do sexo entre as personagens nos filmes à escolha de títulos sugestivos (que hoje, para um espectador não familiarizado, podem soar kitsch) e a elaboração de cartazes que exaltassem os atributos físicos das atrizes presentes na obra. Para exemplificar à perfeição esse perfil de produtor-exibidor tão característico daqueles anos da Boca do Lixo, pode ser citado o nome de Antonio Polo Galante, que notoriamente exigia de seus contratados fitas que contivessem uma minutagem mínima de nudez ou seminudez, conforme relembrado por Carlos Reichenbach em seu depoimento para o documentário O Galante Rei da Boca (2003)[3].
Alguns diretores manejaram contornar as regras desse sistema e utilizá-lo a seu favor, seguindo as regras cuidadosamente enquanto, em paralelo, conseguiam realizar obras que estavam longe de explorar o erotismo meramente como um filão comercial (Reichenbach, por exemplo, conseguia fazer de uma fita intitulada A ilha dos prazeres proibidos um filme sobre exilados políticos e utopias perdidas, rodando-o em meio à ditadura militar). Outros, invariavelmente, tinham suas ambições esmagadas pela máquina e frustraram-se ao ver seus projetos originais retalhados pelas demandas mercadológicas da Boca. E haviam aqueles que abraçavam o sexo e a sexualidade enquanto as forças motrizes de suas produções. Falemos um pouco sobre os últimos.
Os primeiros trabalhos do catarinense Ody Fraga podem fazê-lo parecer uma figura insuspeita. Ele é creditado como roteirista em Conceição (1960), thriller com Helio Souto e Norma Bengell, e foi um dos três diretores a rodarem O Diabo de Vilha Velha (1966), o faroeste de produção conturbada regido por José Mojica Marins – seu primeiro crédito de direção. Já em 1967, surge como diretor de Vidas Nuas, em uma guinada definitiva ao erotismo da qual jamais voltaria atrás. A partir de então, passou a marcar território na Boca do Lixo como produtor, roteirista e diretor (exercendo de forma perceptivelmente competente as três funções, diga-se) de numerosas fitas que lidavam com o sexo em primeiro plano. Ao longo dos anos 1970, emplaca uma sequência de filmes eróticos com títulos como Adultério: As Regras do Jogo (1975), O Sexo Mora ao Lado (1975), Reformatório das Depravadas (1978), Terapia do Sexo (1978) e A Dama da Zona (1979), apenas para citar alguns (durante aqueles anos, Fraga trabalhava num ritmo incansável) – todos longa-metragens. Gostaria de trazer a atenção, ademais, para uma frutífera parceria travada entre Ody Fraga e outros dois nomes da Boca do Lixo, representativa para ilustrarmos a transição entre o erótico e a pornografia explícita na Boca e sobre como tal movimento precedeu sua irremediável decadência enquanto polo cinematográfico.
Natural do Mato Grosso do Sul, David Cardoso chegara à Boca do Lixo já como um rosto conhecido; como ator, ele trabalhara com diretores de renome como Walter Hugo Khouri e participara de sucessos comerciais como Roberto Carlos em Ritmo de Aventura (1968). Isso, porém, estava longe de saciar suas ambições. Atuando como produtor, financiou e estrelou três filmes de Ozualdo Candeias: A Herança (1970), adaptação cabocla e sem diálogos do Hamlet shakespeariano; Caçada Sangrenta (1974), aventuresco e de longe o longa mais “comercial” dirigido por Candeias em toda a sua carreira; e A Freira e a Tortura (1984), drama político com uma veia exploitation que é a marca registrada de boa parte das fitas produzidas por Cardoso. Enquanto atuava nos filmes de cineastas como Garrett e Reichenbach, ele tocava os negócios da DaCar, sua produtora (e habitual co-produtora de uma série de filmes em que marcou presença como ator entre os anos 1970 e 1980). Galã nato da Boca do Lixo, os filmes produzidos (e sobretudo os dirigidos) por Cardoso valorizavam seu físico, sobretudo nas sequências onde haviam a nudez ou as relações sexuais. O entendimento com Ody Fraga, um dos maiores (e melhores) artífices do erotismo na Boca, parecia natural. Não é difícil entender o porquê dos dois terem firmado parceria.
Para fechar o trio, aquele que talvez tenha a trajetória menos clara e mais enigmática dentre os três. Nascido em Chongqing, na China, Chien Lien Tu chegou ao Brasil aos 8 anos de idade com sua família. Os primeiros bicos no cinema, área na qual passaria a ser conhecido pela alcunha de “John Doo”, foram trabalhando em filmes de Mazzaropi durante a década de 1960. Somente em 1978 ele se lançaria como roteirista e diretor, com Ninfas Diabólicas, seguido de perto por Uma Estranha História de Amor, no ano seguinte. Nas duas obras, o horror e o fantástico – elementos fundamentais de seu cinema – já se mostram presentes. Além, claro, do sexo à moda Boca do Lixo, constante em rigorosamente todos os filmes que assinou enquanto autor.
O filme que sacramenta a parceria entre Ody Fraga, David Cardoso e John Doo não poderia ter outro título se não “Pornô”, puro e simples. Lançada em 1981, essa produção compartilha o zeitgeist com uma outra, incontornável para discutirmos o paradigma da Boca do Lixo naquele momento. Será necessário discorrer brevemente sobre este, para que possamos elaborar melhor sobre Pornô e a trinca Ody/David/Doo posteriormente.
Naquele começo da década de 1980, estreou em São Paulo um longa-metragem de três episódios, co-dirigido por Raffaele Rossi (antes conhecido por assinar fitas sobre lobisomens ou cultos satânicos apimentados) e Laente Calicchio. Coisas Eróticas seria, ironicamente, o começo do fim para o erotismo da Boca do Lixo: tido como o primeiro filme brasileiro de sexo explícito, ele abriria o caminho para que os produtores-exibidores da Boca enxergassem na pornografia um potencial de lucro maior do que o já tradicional erotismo vinha oferecendo. O filme fora idealizado por Rossi na esteira da liberação do polêmico O Império dos Sentidos (1976), de Nagisa Oshima, por parte da censura brasileira – a produção japonesa passara anos retida de circular por aqui graças a sequências consideradas por demais incidentes e imorais pelas canetas dos milicos. O Império dos Sentidos nada tinha de pornográfico, mas serviu como pretexto para diretores ambiciosos, como Rossi, esticarem a corda e verificarem até onde ela ia. Essa é, resumidamente, a história de como nasce o explícito no cinema brasileiro[4].
Esse sinal dos tempos já pode ser sentido no Pornô de Ody Fraga & companhia. A nudez e o sexo aqui já são mostrados sob um olhar diferente daquele que orientava o grosso das fitas eróticas da Boca; a ênfase na performance sexual entre atores e atrizes ganha maior destaque, com uma encenação que beira o naturalista. Ainda estamos, porém, longe de replicar o Coisas Eróticas de Rossi, onde um fiapo de trama mal costurada serve como mero pretexto para engendrar as longas sequências sexuais. Aí é que encontramos o que há de mais interessante nas produções de Cardoso/Ody/Doo: a aptidão, dos três, para produzir filmes narrativa e visualmente inventivos e interessantes. Pornô, por exemplo, é todo calcado no drama de personagens de classe média ou média-alta que precisam contornar as barreiras impostas pela classe para conseguir executar seus desejos – o que compreende, inclusive, ludibriar os empregados que estão sempre trabalhando em suas casas, olhos atentos e vigilantes. O longa é dividido em três episódios, com cada integrante dessa trinca de ases da Boca ficando a cargo da direção de um deles, atuando nos demais como produtor ou roteirista. O destaque da antologia inevitavelmente vai para O Gafanhoto, segmento dirigido por John Doo e uma das melhores demonstrações da potência de seus jogos de cena que exploram o horror, o suspense e o absurdo.
Filmes como Pornô tornaram-se grandes sucessos de bilheteria para o cinema brasileiro – na esteira de Coisas Eróticas – e comprovam não apenas o potencial daquele erotismo tardio da Boca, já com um pé no explícito, como também o êxito obtido pelos três cineastas ao arquitetar esse ecossistema de trabalho, onde cada um assinava um dos episódios do longa antológico e todos ajudavam uns aos outros.
No mesmo ano de Pornô, chega também aos cinemas um dos maiores sucessos empreendidos pelo grupo, A Noite das Taras, estrelado pelo astro do erótico/explícito Arlindo Barreto. Com este, o trio bota por terra qualquer dúvida sobre a capacidade comercial daquele cinema que vinha sendo produzido na Boca do Lixo no início da década de 1980: ultrapassa as barreiras dos “cinemas poeira”, salas menores e destinadas ao público operário que geralmente eram destinados a filmes de ação-aventura ou eróticos; A Noite das Taras chega às maiores e mais luxuosas salas de cinema de diversas capitais do país[5]. Narrativamente, ele segue a mesma linha de Pornô, com a estrutura de vinhetas, os flertes com o suspense, o terror e pitadas do fantástico.
A “trilogia” – toda produzida, frise-se, pela DaCar de Cardoso – seria completada pelo que talvez seja seu componente mais emblemático: Aqui, Tarados!, também de 1981 (a produtividade dos cineastas da Boca parece ainda não ter encontrado par na história do cinema brasileiro). Os segmentos comandados por Ody Fraga e John Doo entregam o que é esperado deles; o que se destaca nessa última antologia, no entanto, é o filmete dirigido por David Cardoso: O Pasteleiro. Aqui talvez tenhamos o apogeu dessa parceria entre o “trio parada dura” da Boca do Lixo, episódio estanque desses três longas realizados por eles. Trata-se de uma das melhores, mais criativas e legitimamente perturbadoras fitas de terror produzidas pelo cinema brasileiro naquele período. O destaque, evidentemente, deve ser dado ao pasteleiro titular, vivido por John Doo – que, além de cineasta, também foi ator de ocasião nas produções de amigos e companheiros da Boca, mesmo depois de aposentar-se do cinema em meados da década de 1980 (seu último crédito como diretor é Volúpia de Mulher, de 1984, mas após isso ele ainda marcaria presença em trabalhos de diretores como Carlos Reichenbach e Guilherme de Almeida Prado)[6].
Após isso, a parceria entre Ody Fraga, John Doo e David Cardoso – pelo menos, nos moldes dos três filmes onde todos efetivamente escrevem, produzem e dirigem – chegaria ao fim. A DaCar ainda lançaria um A Noite das Taras 2, com direção de Ody Fraga e Cláudio Portioli, e já sem o envolvimento de Doo – elemento indispensável para que filmes como o primeiro Noite, Pornô e Aqui, Tarados! funcionassem tão bem. A estrutura do longa episódico, vastamente utilizada durante o período da produção erótica, torna-se um molde para a era do sexo explícito. Quando a pornografia – e é necessário sempre ressaltar que existe uma clara diferença entre produções eróticas e pornográficas – toma a Boca de forma irremediável, os cineastas e técnicos que ali trabalham logo veem que precisam se adaptar aos novos tempos ou pendurar as chuteiras.
Diretores como Ody Fraga, que nunca esconderam seu entusiasmo em relação ao sexo e à pornografia, fariam a transição ao explícito sem pestanejar. Por outro lado, cineastas do calibre de um Jean Garrett, a essa altura já o autor de A Mulher Que Inventou o Amor (1979) e Tchau, Amor (1983), teriam fins de carreira melancólicos dirigindo filmes muito abaixo de seu potencial enquanto artistas, unicamente para suprir as demandas do explícito, como Entra e Sai (1986) e o paródico O Beijo da Mulher Piranha (1986). Mesmo nessas condições de trabalho, por vezes um diretor como Garrett conseguia imprimir respiros de autoria a obras que não pareciam dar margem para tal: Fuk Fuk à Brasileira (1986) talvez seja o melhor filme da fase explícita da Boca do Lixo justamente por ser aquele em que Garrett consegue levar a narrativa rocambolesca ao absurdo e ao lúdico de forma admirável, ainda que eventualmente precise voltar à realidade para cumprir as cartilhas da pornografia, que a essa altura já exigiam planos fechados em sequências de penetração e sexo oral, além da nudez quase absoluta de boa parte das personagens (sobretudo das femininas) durante a maior parte da minutagem dos filmes. Em Fuk Fuk à Brasileira, já os créditos iniciais são sobrepostos a closes de penetração em uma sequência de orgia. É o explícito mostrando, sem preliminares, ao que veio.
A saturação da Boca do Lixo viria com a avalanche de pornografia de estrangeira, trazida de forma barata para o Brasil e que tomaria cada vez mais o espaço do produto nacional. Na metade final da década de 1980, a decadência do quadrilátero das ruas Triumpho e Vitória, como polo cinematográfico e também como espaço urbano, já parecia irreversível. Esse triste desfecho para o berço do Cinema de Invenção e do ciclo da “pornochanchada” paulistana serve para demarcar com nitidez as distinções entre o erótico e o explícito em nossa cinematografia, sobre as quais tentamos discorrer, de maneira mais ampla, nessas últimas páginas. Com o erótico, a Boca prosperou e serviu de laboratório para alguns de seus maiores gênios. Com o explícito, se de início encontrou faturamento farto, logo viu-se sufocada pelo esgotamento de suas fórmulas e pela avalanche da concorrência internacional. Uma das sinas seculares enfrentadas pelo cinema brasileiro.
[1] A antológica entrevista de Helena Ignez e Rogério Sganzerla a’O Pasquim, publicada na edição 33 do periódico (5-11 de fevereiro de 1970), pode hoje ser lida na íntegra graças à preservação e digitalização da edição promovida pela Hemeroteca Digital Brasileira, da Fundação Biblioteca Nacional. A entrevista está disponível em: <memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=124745&pasta=ano%20197&pesq=Rog%C3%A9rio%20Sganzerla&pagfis=503>.
[2] Expressão cunhada pelo crítico e cineasta Jairo Ferreira, autor do seminal livro Cinema de Invenção (1986), e utilizada recorrentemente por Carlos Reichenbach para designar um olhar cinematográfico despido de preconceitos e sempre interessado em expandir seu conhecimento.
[3] O Galante Rei da Boca, documentário média-metragem de Alessandro Gamo e Luís Rocha Melo que explora a influência de Antonio Polo Galante e sua companhia, a A.P. Galante, na Boca do Lixo paulistana, está disponível on-line legalmente na plataforma Vimeo, através do canal de um de seus diretores: <vimeo.com/135767497>
[4] A produção, a recepção e o impacto do Coisas Eróticas de Raffaele Rossi na Boca do Lixo e na cinematografia nacional são dissecadas no documentário A Primeira Vez do Cinema Brasileiro (2013), de Denise Godinho Costa, Bruno Graziano e Hugo Moura.
[5] Vale mencionar o registro histórico encontrado pela pesquisa do cineasta Kleber Mendonça Filho para Retratos Fantasmas (2023), seu longa que explora, dentre outros tópicos, uma cartografia e historiografia dos cinemas de rua da cidade do Recife. Uma das imagens recuperadas por KMF mostra uma das mais requintadas salas da capital pernambucana, com letreiro e anúncio gigantes promovendo a exibição de A Noite das Taras.
[6] Para uma crítica mais aprofundada sobre O Pasteleiro, ver: <planoaberto.com.br/critica/o-pasteleiro-1981>