Por Chico Torres
O cinema nasceu mudo, mas ainda não havia o silêncio. Este seria uma conquista do próprio cinema, um desdobramento significativo de sua linguagem. Portanto, é possível dizer que o silêncio tem uma história no cinema e é também uma história do cinema.
Uma de suas possíveis origens: as lágrimas de Joana d´Arc, de Dreyer, nos instantes que antecedem a sua morte pelas mãos da inquisição. A câmera, por alguns segundos, interrompe o fio narrativo para mostrar o rosto molhado e o olhar vago da personagem, deixando que o tempo passe e que seja possível visar mais detidamente aquela composição, é aí que o silêncio começa a ganhar os primeiros contornos como linguagem cinematográfica própria.
Na presente edição da Multiplot!, o silêncio se apresenta, como aponta Eni Orlandi em seu livro As Formas do Silêncio, como sentido: não o negativo, a sobra da linguagem, mas como o ativo, com capacidade de significar. Um significar que pode ser o da errância, do vazio, das interrupções, enfim, da vasta capacidade de sentido incompleto dentro da linguagem incerta do silêncio.
Chantal Akerman, cineasta que se dedicou ao silêncio de forma especial em suas obras, aparece em dois textos desta edição, ambos em diálogo com outras obras: em seu comentário sobre Days, Gabriel Moraes procura mostrar como Tsai Ming-Liang toma distância de Chantal, apesar de uma aproximação formal na utilização de planos longos e silenciosos, para construir uma obra fundamentalmente melancólica e de fisicalidade sensória. Já Gabriel Papaléo, aproximando Chantal de Peter Hutton, nos apresenta formas de quebrar o silêncio ao experimentar a adição de música a filmes que se fundamentam na ausência do som.
Ainda segundo Orlandi, o silenciamento surge como o lado negativo do silêncio, já que advém da ideologia que deseja “pôr em silêncio”. Pensar nos efeitos das diversas censuras impostas pela ideologia: recalques, proibições morais e políticas, atravancamentos diversos em consequência dessas repressões. No texto de Ana Júlia Silvino sobre La Noire De,temos o silenciamento enquanto instrumento colonizador, causando a desilusão material e espiritual de uma mulher que se encontra em uma situação de exploração e deslocamento. Bernardo Moraes Chacur, em seu comentário sobre Near Death, documentário de Frederick Wiseman, nos mostra os entraves comunicacionais existentes em situações de tensão entre pacientes, médicos e familiares dentro de uma UTI de Boston.
Talvez como contraponto ao silenciamento colonizador, Georgiane Abreu traz uma perspectiva de um silêncio reverente e cuidadoso em seu texto sobre o documentário etnográfico Reassemblage – from the firelight to the screen. Penso que esse silêncio que se constitui como um se debruçar paciente em função de uma alteridade, também está presente em meu comentário sobre Mato seco em chamas.
E há outros textos que trazem uma diversidade desses silêncios do cinema: silêncio e ruína, silêncio e mito, silêncio e sua relação com os outros sentidos que não a audição, silêncio e palavra. São diversas as formas do silêncio: atravessando as palavras e imagens ou entre elas; ocultando aquilo que é mais importante de ser dito; indicando que o sentido pode ser outro. Todos esses silêncios significantes fazem parte no desenvolvimento da linguagem do cinema, das múltiplas formas em que o cinema, em silêncio, faz a sua história.
Boa leitura.