Um passeio sobre as cenas de caça no ambiente francês

por Roberta Pedrosa

O caçador descansa, recostado em uma árvore, na penumbra, pensativo. Em oposição a sua  introspecção, no primeiro plano, os cães de postura ansiosa encarnam a agressividade e a fisicalidade do ato de caçar. Em frente aos cães e em uma linha diagonal com o caçador, a gazela morta, por sua vez, também se apoia na árvore, mas de ponta cabeça, com as genitais voltadas para cima, sem nenhuma dignidade, em uma posição bastante artificial.

Na pintura A Pedreira (1857), Gustave Courbet faz da figura do caçador seu autorretrato, literalmente, na reprodução de suas feições, mas também, em certa medida, metaforicamente. Pintando, o pintor-caçador está em contato com a brutalidade; ao terminar,  guarda as mãos e descansa na sombra, enquanto a gazela é exposta violentamente sobre a luz.

A Pedreira (Gustave Courbet, 1857)

O Senhor Eugène Pertuiset, caçador de leões ( Manet, 1881)

 Ao contrário do caçador de Courbet, o caçador de seu contemporâneo Édouard Manet, O Senhor Eugène Pertuiset, caçador de leões (1881), não representa ele próprio, mas um amigo colecionador e comerciante de arte e de armas. Se em A Pedreira o caçador esconde as mãos, aqui elas seguram a arma em primeiro plano com firmeza, mas também com ternura. Como é de praxe para Manet, os detalhes da mão não são esmiuçados e as pinceladas se fazem visíveis na construção da superfície da pele, as mãos parecem a parte do quadro onde a luz e a sombra são consideradas com mais cuidado. O leão morto ao fundo, assim como o homem que se ajoelha em nossa frente e nos encara diretamente, parecem pertencer a um ambiente onírico, não parecem presos ao chão – até porque a cor azul do fundo nos remete mais a um céu ou a um lago do que a uma floresta.

Caçar uma gazela é simbolicamente muito diferente de caçar um leão: a gazela, apesar de ser um animal de grande porte, é comum à própria fauna francesa, enquanto o leão é um animal exótico que não se encontra naturalmente na Europa do século XIX. Se as cenas de caça, anteriormente a Courbet e Manet, foram um gênero decorativo popular para a aristocracia francesa, é porque o ato estava também enraizado nessa cultura. 

Em seu filme A Regra do Jogo (1939) Jean Renoir retrata um grupo de amigos de uma aristocracia decadente, ou de uma burguesia com ares aristocráticos. No filme de Renoir a caça aparece de duas maneiras: para os empregados e para população rural ela é um trabalho ou um meio de sobrevivência, enquanto para os proprietários da terra ela é um esporte. Na caça aristocrática, a caça é feita por homens e mulheres, e os caçadores e caçadoras ficam separados a uma distância segura de suas presas, enquanto os funcionários espantam os pequenos animais, aves e coelhos, para um campo aberto onde eles possam ser atingidos pelos tiros das espingardas.

A caça aqui não tem uma vítima específica, não é esse ou aquele coelho, mas qualquer um: quando um morre outro vira alvo. O final da caça é estipulado não pela conquista de uma presa específica, mas pelo cansaço ou tédio do caçador. Essa multiplicidade de presas é também, para a A Regra do Jogo, uma repetição da estrutura do filme, da multiplicidade de pequenos conflitos que o estruturam.

A filmagem da caça é feita mais próxima dos coelhos do que dos caçadores. Os planos detalhes dos coelhos fugindo dos funcionários e se escondendo entre as folhas, criam uma empatia desconfortável entre o espectador e a presa. Os coelhos e aves correm e voam para todas as direções, mas em um dos planos os funcionários caminham afugentando os coelhos em nossa direção, passando pela câmera e criando um extra-campo atrás de nós. A sensação é como se estivéssemos no meio do “campo de batalha”.

A filmagem dos animais tem um ar documental e o abate deles também é filmado com certa objetividade. A câmera espera o rabinho do coelho parar de se mexer e segue a caída dos pássaros que vão do céu ao chão. Quem recolhe os pequenos cadáveres são os funcionários, e um cão que pega casualmente a sua parcela. A cena de caça no filme é longa, mas o filme segue casualmente sem se abalar por ela. É apenas no final que vemos a caça se repetir, agora entre um marido ciumento e o amante da esposa. Na “caça” entre humanos as personagens também se confundem de presa, e em certo sentido elas também se comportam como coelhos – ou pelo menos no quesito da vida sexual dos coelhos, que é tida como muito ativa. A vítima final acaba sendo, por um acaso completo, André Jurieu, que começa o filme voando e, como os faisões caçados, acaba o filme na terra.

Para Jean Renoir, a caça, a morte, as relações humanas, parecem sempre regidas pela casualidade. Já no caso do último filme de Patricia Mazuy, Boliche Saturno (2022), o tema da caça na cultura francesa é atualizado pela individualidade psíquica e familiar do protagonista, que acompanhamos se tornar um serial killer, como herança da caça de animais selvagens herdada de seu pai. Em uma cena central do filme, os amigos caçadores do falecido pai se encontram no boliche para lembrar as conquistas individuais e a memória do falecido amigo. Nas paredes são projetadas as filmagens amadoras das viagens de caça no continente africano, que incluem animais selvagens dos mais variados.

A caça no filme de Mazuy é uma prática social excêntrica que beira a seita, o culto religioso ou as organizações de extrema direita, e remete não apenas às práticas de caça da aristocracia francesa, mas ao passado colonial do país. De maneira direta, a caça é aqui uma prova de poder e pertencimento em uma sociedade na qual a impotência é regra.

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