Por Maria Trika
A ferida, na pele, é uma fresta
As miçangas, de Rafaela Camargo e Emanuel Lavor
Orixá cujo corpo são frestas entre a pele e a escama, o macho e a fêmea, a água e a terra.
por ser tudo, torna-se o nada para então ser pura cor: é ciclo.
que uma vez se fez cobra para escapar pelo espaço restante entre a certeza e a violência.
O início do filme é ótimo, porque é estranho:
vemos dois corpos abraçados, tremendo, se picando e se juntando.
salto:
Vemos duas figuras com cabelos ´joãozinho´ e roupas esfarrapadas em um carro.
uma vai abrir o portão.
um grito rompe a imagem:
agora elas correm na mata
e tomando banho de rio
enchendo galões d’água.
pulo:
uma porta se abre.
elas entram em uma casa meio largada sem luz e sem água
seriam as duas gatas ´sapatão de sítio´?
Gosto da forma das transições do filme:
Elas funcionam como buracos, que fazem a narrativa ter que saltar de um ponto a outro sem preenchê-los por inteiro.
Quando a narrativa ou a fala não buscam preencher por inteiro uma cena, uma brecha se abre, onde o mistério pode se infiltrar, gerando uma sensação de vertigem no espectador e o forçando a, também, desapegar
e saltar em seus pequenos abismos
meus olhos tentam resistir,
buscando o sentido das coisas
e tentando revelar o laço entre elas
existe uma linha sendo tensionada,
um afeto intenso pulsando entre os corpos
só que na imagem nada se rompe.
desapegue:
tudo aqui são dois, que logo, descobre-se três.
a trama continua crivando pontos soltos
se transmutando a cada certeza.
assistir torna-se um exercício de suspensão.
algo bonito acontece aqui:
O tema central é transmutações e a forma do filme torna-se expressão daquilo que se busca dizer.
me parece um bom caminho: ao invés de traduzir didaticamente ou escancarar, pingar todos os pingos em todos os i´s, ele apenas espelha, incorpora o que procura, torna-se ciclo, corpo-cobra. E esse gesto estende-se a nós, que vemos
e agora escrevendo ergo, também, um espelho.
acompanhamos o mistério do processo
esquecemos aquela vontade do início de tentar entender – fluímos com as imagens, com a dor e o que as pequenas pistas apontam.
até que (qual é o som de uma transformação?)
tudo se apresenta de maneira mais evidente:
a narrativa, a personagem, o corpo
a transmutação se completa
se faz outra
mais uma vez.
Arroboboi!
Quem tem medo do folclore da mulher?
Infantaria, de Laís Santos Araujo
o filme é composto por uma colagem de arquétipos
fusão de uma mitologia nacional com o olhar e projeção do exterior:
a ausência do pai (fantasma do fora de campo)
a mãe forte que dá conta de tudo sozinha
o sonho de ser princesa
o sonho de ser mulher
o principezinho no cavalo branco
a arte carregada e quase artesanal formando uma reprodução do imaginário (e também folclore) de um olhar exterior para o que seria “uma estética do terceiro mundo” ou, em termos mais contemporâneos, um brazil/latin aesthetic como vemos a rodo no Pinterest.
que compõem os inúmeros “tableau devir”[1]do filme
o aborto
a primeira menstruação
a infância (?) – que está sempre em risco aqui (resiste na fábula, na artificialidade, no místico que vez ou outra surge, na imagem posada para ser fotografada, na quase inocência da aniversariante, e se perde em todas as outras).
Pela definição comum “ Por folclore” entendemos as manifestações da cultura popular que caracterizam a identidade social de um povo. O folclore pode ser manifestado tanto de forma coletiva quanto individual e reproduz os costumes e tradições de um povo transmitido de geração para geração”.
INFANTARIA dá a ver o peso da parte do folclore submersa. O folclore que todo corpo-mulher sabe porque está ali, projetado em todo olhar sobre nossas imagens, aquela mitologia que já trazemos no sangue desde a infância e que carrega a violência de todas as nossas que vieram antes.
por que fabular?
e por que não a fábula e a imaginação para dar conta disso tudo?
quais são as imagens possíveis
para essa infância?
Tudo se perde, fortalecendo e recriando as imagens que projetam, revelando os seus avessos.
e o filme se mantém nesse limiar podendo, a qualquer instante, escorregar da defesa ao ataque.
o filme
a tira.
[1] que reproduzem imagens que poderiam ser, sabe aquela imagem que nos dá a sensação de que já foi vista ou que poderia ser um quadro?