No dia seguinte à exibição de Caixa Preta no Cine Tenda durante a 26º Mostra de Cinema de Tiradentes, me reuni num bar no centro de Tiradentes com Bernardo Oliveira e Saskia para conversarmos sobre o média-metragem da dupla e a sessão acachapante da véspera. Saskia se ausentou no começo da conversa, mas logo voltou à mesa para trocar ideias e compartilhar tragos de whisky. Saskia é diretora, montadora e também foi responsável pelo som da obra. Bernardo Oliveira é diretor e produtor.
por João Paulo Campos
João Paulo Campos: Ontem (na apresentação do filme no Cine Tenda) vocês mencionaram que o Caixa Preta vem de um projeto mais amplo, chamado Ciranda do Gatilho. Queria que vocês falassem como surgiu o Caixa Preta e comentassem esse outro projeto.
Bernardo Oliveira: Quando foi 2020 o Sesc Santo Amaro me convidou pra fazer uma programação musical durante a pandemia, ou seja, uma programação musical que pudesse ser disponibilizada de forma remota. Eu chamei a Saskia e o (Negro) Leo pra gente fazer uma coisa juntos e obviamente que no momento da conversa, o Leo e a Saskia são pessoas assim muito explosivas de ideias, né? As ideias vão explodindo, vão estourando, espocando de alguma maneira, e aí a gente começou a pensar nessa ideia de ciranda e de gatilho. Ciranda do…vamo fazer uma ciranda do gatilho. Então a gente começou a rir dessa ideia, mas percebeu que podia ser um bom método de trabalho. Eu produziria um pacote de informação, de dados, de imagem, som, entregaria e teria a função de engatilhar a Saskia. E a Saskia a partir desse pacote produziria um outro pacote, que por sua vez entregaria ao Leo e a gente ficaria girando nessa ciranda, engatilhando um ao outro. A ciranda é evidente que era uma roda, certo? Mas o gatilho o que seria? A ideia de que você pode utilizar essa expressão que foi meio que decodificada dentro dessas ideologias identitárias mais norte americanas no sentido de deflagrar uma espécie de desconforto afetivo, desconforto psicológico. A gente gosta muito dessa ideia de um gatilho psicológico mas que não necessariamente vai te levar pra uma situação de ansiedade, de baixa de energia, de baixa de vontade e tal. E aí começamos a entender que o gatilho também poderia ser esse disparador de uma situação, um chamado a situações, contextos, possibilidades não só expressivas mas também de alguma maneira táticas. Eu acho que o Leo… A Saskia nem tanto, mas o Leo é um artista muito ligado com essa ideia… O Leo é esse cara que tem muito mais uma preocupação com a noção de tática do que propriamente com a noção de experimentação formal. Então a gente começou a fazer essa ciranda. Eu preparei um pacote com informações, passei pra Saskia, a Saskia preparou outro, passou pro Leo, e a gente entregou tudo pra Mariana Mansur, que seria a designer do projeto, no sentido de criar um site. A gente gostou muito dessa ideia também de pegar e reunir tudo num site, tá entendendo? Porque o site é uma tecnologia antiga. Quase arcaica (risos). Eu lembro de a gente ficar perseguindo os sites de uma empresa inglesa chamada Hi-res. Um escritório de design avant garde do início do século XXI responsável pelo site do David Bowie, do Amon Tobin, e era um barato navegar naquele site porque era uma experiência nova, e o site ficou uma coisa obsoleta de alguma forma, né? Então a gente se animou com a ideia de fazer um site. A Mariana criou uma página preta com várias pedras, como se fosse um jogo de búzios, como se fosse um jogo de runa, sei lá, alguma coisa assim que você joga a pedra e vê alguma coisa. E você vai clicando nas pedras e vai levando pro conteúdo, só que cara… quando Mariana produziu o site a gente reparou que faltava muito conteúdo. Aí começou a loucura. A gente reparou que esse movimento da ciranda do gatilho precisava ter antes um arquivo. Vamos dizer assim, um manancial aberto de informação que de alguma forma se relacionasse com África e diáspora mas que também tivesse alguns matizes de problematização mesmo, de não pegar uma imagem óbvia e afirmar a potência dessa imagem em toda sua completude; pensar também que existe uma imagem, um som que por causa do tempo mesmo, vai faltando informação, tá entendendo? Vai se esmaecendo, vai apodrecendo, ou então vai se renovando. Então pegar também o movimento dessa matéria. Aí, cara, aí começou a loucura mesmo. A gente fez alguns HDs com mais de 30 tera de material. E fizemos o site. O site teve uma boa visitação, mais de 10 mil pessoas em, sei lá, 3 meses. A gente se empolgou, o Sesc também se empolgou, então vamos fazer a ciranda dois. E a ciranda dois foi mais sinistra, porque é uma página toda preta, com os búzios novamente, vocês podem reparar que no filme mesmo aparecem as pedrinhas. Só que cada vez que você clica numa pedra, o jogo reabre. Às vezes você reabre o jogo, às vezes você vai pra um lugar. Então você clica assim e reabre. Então imagino que pro tipo de velocidade da navegação hoje em dia esse site não foi bem compreendido, mas essa era a intenção mesmo. A pessoa clicava, não acontecia nada, ela passava, né? Mas se ela insistisse um pouquinho ela ia encontrar um disco de duas horas e meia que eu, Saskia e Leo fizemos. Um disco. Tem um disco dentro dessa ciranda dois. Bom, o desdobramento natural disso é fazer um filme, porque a gente tinha muita imagem de arquivo, muita imagem de pedaços de filme, gravações de filme. Bom, o Felipe Hirsch convidou a gente pra fazer uma intervenção no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, dia da língua portuguesa, e aí eu e a Saskia achamos que seria uma boa, o Leo não tava podendo porque ele tava fazendo uma ópera com a Juçara Marçal e com aquele ator maravilhoso, negro, homem, mais velho… o Carlos. Mas a gente tinha os arquivos dele falando, das ideias, e tal. E aí eu comecei a estruturar o filme na cabeça, comecei a mandar muito material pra Saskia, a Saskia já tinha material… Cara, e assim, impressionante porque em 3 dias a Saskia estruturou o filme. Em 3 dias. Muitas das coisas que vocês viram aí ela preparou e pum, foi direto. Eu tive muitas ideias: Caixa Preta, a ideia da Caixa Preta com os áudios, a pastora Ana Lúcia, mas o grosso do filme, a lógica do filme, a própria articulação ela foi criada pela Saskia. Então é isso, a Ciranda do Gatilho tem um site, um disco, e agora tem um filme e a gente tá pensando em fazer outro filme, agora tem outras possibilidades pra Ciranda do Gatilho. A gente também é um grupo de pesquisa, pesquisa não só por informação mas por essas táticas expressivas, acho que o Juliano (Gomes) fala isso num texto para o catálogo do Forumdoc[1]. Ele fala que é um recenseamento de táticas expressivas que já acumulam uma sabedoria popular que é quase que negligenciada. Então vamos dizer, uma mixtape sonora pra sala de cinema. Coloca em jogo a sala de cinema mas ao mesmo tempo tem ali uns elementos que podem causar disjunção. O som alto, por exemplo. As pessoas se incomodam. Tinha gente tampando o ouvido ontem na sessão. O fato de ser média também é um problema. Não sei por que, mas é um problema. É isso.
JPC: Você falou aí duas palavras que me chamaram a atenção, que são arcaico e arquivo. Mas há um trecho do filme em que há todo um certo ensaio discursivo que aponta pro futuro, né? “Eu sou o terceiro milênio…”. Queria que você comentasse um pouco essa relação do arcaico, do arquivo, com essa projeção de futuro, esse choque de tempos que o filme de vocês produz.
BO: É mais um choque de tempos e de uma multiplicação de temporalidades do que propriamente um filme sobre o futuro. Quando eu digo “eu sou o terceiro milênio”, eu falo muitos nomes ali, as pessoas lêem como homenagem, e não são homenagens. São pessoas que estão destacadas nuns pontos muito diferentes da minha experiência com elas, de alguma maneira. Tem amigos, tem pessoas que eu admiro de longe, tem pessoas que de alguma maneira, enfim… Beatriz Nascimento, né? O paradigma do vaso estilhaçado. Você tem uma certa liberdade de poder recompor, você, o afrodiaspórico, o desterritorializado, o desterrado, ele tem uma certa prerrogativa em relação ao seu arquivo psíquico, mental, familial, coletivo. Então, como é que você recompõe o que que produz uma história? Eu acho que no caso do negro norte americano isso é muito mais complicado, os caras não tem Ogum, não tem Xangô, sobrou nada da cosmologia deles, eles tiveram que tirar tudo do zero, e tá lá, tá tudo lá. Tá lá a igreja, tá a roda, tá o transe… de alguma maneira eles recuperam, é um processo de “retrieval information”, recuperar informação. Então é menos um filme projetado para o futuro do que propriamente uma chamada pra pensar essa multitemporalidade possível, onde inclusive o passado pode ser vanguarda, a depender da forma, e vice-versa, o futuro pode ser extremamente retrógrado. Então eu não vejo uma preocupação em relação ao futuro. Sobre o arcaico e o arquivo. Primeiro, o arquivo é qualquer coisa, tudo é arquivo. Até a experiência do tempo presente ela tem de alguma forma uma densidade própria do arquivo. Senão você não teria história do tempo presente, Marc Ferro, esses caras… História do tempo presente lida com a possibilidade de que o próprio presente forneça desde já possibilidades de se ressignificar a experiência, ressignificar a informação. Então acho que é isso, não é bem um filme de futuro, é mais um filme pra explorar essa possibilidade… nem é um filme de vanguarda, não é um filme experimental. É uma grande brincadeira, se fosse um filme experimental, todo funk é experimental, todo bregafunk é experimental. Caixa preta é mais pulso e ritmo do que narrativa.
JPC: Você pensaria numa categoria como cinema ensaio?
BO: Também não, é uma mixtape, pra dormir, pra dançar, pra levantar, às vezes pra deixar tocando. Pra incomodar. Pra fazer coisas que são potências próprias do cinema. Muita gente que assistiu o filme disse que ele seria interessante como uma exposição, uma instalação, uma performance, um teatro. Mas é um filme. A caixa preta. A tela preta. Os efeitos gerativos, pô. O Fábio (Andrade) me mostrou agora um texto do Andrew Uroskie, ele fala de como é que o próprio cinema vai de alguma forma recuperando certas estratégias do museu e vai se formando enquanto espaço de exibição[2]. E de certa maneira eu sinto que a gente tá não negando ou desconstruindo isso, mas dando outras possibilidades. Ó: também é possível que você tenha um desprazer sonoro dentro de uma obra da Janet Cardiff. Certo? É possível que cê tenha desprazer e tensão e dúvida e sensação de perigo diante de uma obra, sei lá, do Herman Nitsch. São possibilidades também a serem exploradas que de alguma forma envolvem essa suposição de que o lugar do espectador é um lugar de uma quietude, de uma ausência de conflito. Hoje é uma coisa que me irrita muito essa ideia de entregar, entregou, deliver. A gente tá completamente americanizado, os termos, essa coisa de entregar. O Caixa Preta não entrega, literalmente, não faz o seu deliver. Eu acho que é um pouco por aí.
JPC: Pensando ainda essa coisa do antiquado. Você me disse antes dessa conversa que o Caixa Preta é um filme do século XX. E aí eu lembrei da ideia de estética das atrações. Essa coisa do mostrar, do apresentar, não representar, mas uma máquina de mostrar, uma caixa de mostrar coisas. E aí eu lembro de um texto do Tom Gunning sobre o cinema das origens e a estética das atrações, o espectador do primeiro cinema, em que ele fala de uma estética do espanto[3]. O Caixa Preta me lembrou isso por parecer estar próximo mais da ação, você falou de tática, do que da representação. Tem uma provocação, e nos leva ao espanto, a gente remexe. As pessoas estavam dançando na sessão, de fato. Eu tava me mexendo, todo mundo tava mexendo. Uma amiga falou que estava querendo ir pra frente dançar, e aí eu te pergunto como você acha que esse filme trabalha essa questão da ação, dessa intervenção na nossa experiência corporal. Porque eu sinto que é um filme que bagunça nossa experiência, pra gente se deslocar de alguma maneira. Vocês tavam pensando nessa coisa de realmente provocar o espectador a deslocamentos – que é dança, no final das contas?
BO: Sim, teve isso. Teve muito a ideia de disjunção, aquelas pessoas no Guanabara se matando e eu cantando uma letra onde o Arlindo e o Nei Lopes descrevem a excelência de uma topologia do sambista. Mente aberta num corpo fechado, contra plágio, seja criativo, tem carteira de trabalhador, você tem ali um modelo de virtude né? E de alguma forma contrastando com as cenas do Guanabara, mas sobre essa questão das atrações que você falou, acho importante frisar isso. Se há uma proximidade do Caixa Preta com o cinema de atrações é muito mais do ponto de vista da sua realização técnica e material do que propriamente da relação com a estética. Saskia é uma montadora nata e nunca ninguém chegou pra ela e falou: você é uma montadora. Embora ela monte. Embora você tenha aí uma juventude toda usando celular como um trabalho de raccord, de corte, as pessoas cortam e cortam muito bem cortado, isso é muito louco. Severino Dadá que não me ouça, mas assim, realmente é muito surpreendente às vezes o resultado que cê vê numa baboseira no Tik Tok. Então assim, eu sinto realmente que tem uma proximidade com esse cinema demiúrgico das atrações, das cavações, como se falava no início do século XX em referência ao que Arlindo Machado chama de pré-cinema, mas é o cinema brasileiro do início do século passado, é o cinema de cavações, ou seja, você vai cavar aspectos que interessam ao espectador. Ou o patrocinador. Geralmente quem tá pagando. Então eu sinto que tem muito mais uma proximidade com a ideia de que você vai usar o equipamento pra experimentar mesmo, explorar aquilo ali. Quando você fala cinema de atrações, eu concordo, mas tô sempre pensando nesse momento que a gente falou “vamo fazer um filme?”. Eu que nunca fiz um filme, Saskia também nunca fez. Já participei, produzi filme, mas fazer um filme, ser responsável pelos cortes, pelo que vai entrar, como vai, tomar conta daquilo tudo, sendo marinheiro de primeira viagem, eu me senti realmente, e ela também, desbravadores, como se a gente tivesse fazendo um negócio totalmente fora da expectativa. A gente não imaginava fazer um filme esse ano. A gente mandou o projeto pro Sesc, o Sesc não aprovou. Então assim, no momento em que a gente decide fazer, o espírito é esse: caralho, a gente tá inventando cinema, vamo que vamo… (pausa, pois Saskia chega ao bar).
Saskia: Olha, eu acho que tudo que eu faço tem uma não consciência consciente, acredito. Porque, eu tava conversando agora, vindo pra cá, com Mariana (Queen Nwabasili) que tá fazendo a curadoria e ela tava falando sobre a relação, a comparação entre fazer música, fazer cinema. Eu acho que eu orquestrei esse filme do mesmo jeito que eu faço os meus arranjos em música, tanto pra trilha quanto pra faixa, quanto pra uma construção poética. Parte pelo mesmo princípio, do improviso consciente. Eu deixo a história se fazer também um pouco. A narrativa vai se construindo um pouco sozinha.
BO: E literalmente, né? Porque foi um negócio que eu tava contando pra ele que você chegou com o filme 80% pronto. Três dias depois do início. Foi um processo meio mediúnico, sei lá, meio acelerado…
S: É, me tranquei no quarto e eu mergulhei nesse filme. Mergulhei. Eu só pensava nisso. Foi a primeira coisa que eu editei com as minhas monitoras maravilhosas, então foi eu descobrindo também a sonoridade daquela potência, nunca tive monitor então aquilo mudou a minha cabeça. Eu acho que eu comecei pelo áudio, eu acho que o filme é uma tradução um pouco do que tava sendo construído na Ciranda Sonora, o movimento dois, Ciranda Sonora (o disco).
BO: A exibição aqui em Tiradentes foi realmente impactante pra mim. Pra mim foi um impacto terrível, no bom sentido, de ver até onde a sonoridade desse filme poderia ir. Um elemento físico do som, da imagem, tudo aquilo, como é que funcionaria numa situação ideal? Eu acho que ontem a gente teve essa experiência aqui e eu acho que o volume sobretudo foi um problema, de certa maneira… mas um problema que a gente optou por isso, a gente optou por esse volume. Por uns momentos eu me senti desconfortável, mas eu acho que o gatilho, ele é um desconforto, que tu não sabe se tu ri, se tu chora, e o som tá físico, a distorção. A diferença pra imagem é que a imagem, a luz, se você bota sombra, se você tapa a luz, você não vê. Se você tapa o olho, você não vê. O som não tem como fugir. O silêncio praticamente não existe. Estar num lugar que tem silêncio total? Tem o som dos teus órgãos, então o silêncio ele não existe, eu gosto de brincar com o poder do som. Ele é abusado, ele entra sem ser convidado. Ele atravessa as paredes. Treme os vidros tudo. Ele corta barreiras. E é legal essa física, uma física que cê não consegue pegar, o som você não pega, ele te pega.
S: Existe essas salas que são super isoladas, que são poucas, mas o que acontece é que você escuta o som dos seus órgãos, da sua respiração. Ou seja, o silêncio não existe, é um imaginário.
JPC: Bernardo falou que esse filme é uma espécie de mixtape e me veio à cabeça que existe alguns filmes, sendo que um dos cineastas mais interessantes dessa tendência é o Lincoln Péricles, que criam montagens à luz do remix. Tanto na imagem como no som. Sobretudo na relação da imagem e som. Queria que vocês comentassem essa ideia da mixtape e do remix. De som e de imagem e da mescla do som e da imagem.
S: Eu gosto da ideia de remix como a ideia do sample. O sample é uma coisa que é criada uma narrativa, aí você recorta ele pra ele se transformar em outra coisa. E eu acho que a gente tá numa saturação de dados infindável da humanidade, então quando você pega esse monte de coisa que tá aí escondida nos meandros da nuvem digital e reutiliza elas você passa a recriar uma narrativa a partir delas: vida continua, como se tirasse um morto de um caixão e botasse ele pra falar de novo. E eu adoro tirar as coisas do contexto e montar contextos, entendeu? Embaralhar tudo e montar uma imagem nova. É meio que infinito, traz uma acronia pra imagem que tá no passado. Você reutiliza ela, bota ela num não-tempo. Passa a ser acrônico. Eu vejo esse filme assim e pra mim ele não parece começar e terminar, parece estar vivendo, acontecendo e reacontecendo. Você sai com uma sensação de que vai vir de novo, de que a Ana Lúcia vai vir te assustar no banheiro, vai vir te assombrar.
BO: E mais do que isso, quando você desenterra, quando você exuma o corpo esse corpo tá modificado, são outros modos de existência. Então acho que uma coisa que o filme traz bem forte é essa sobrevivência dos arquivos. Eu acho que a gente trabalha com dois eixos, o eixo número um é o dessa relação muito direta com a própria condição gerativa do cinema: a caixa preta. Som. Imagem. Luz. Porque a imagem negra nunca deixa de emitir luz. Vai botar um preto assim na tela, se você ligar o projetor, um preto vai iluminar a sala.
S: Inclusive a tela já é branca, né? Esse filme foi feito pra ecrã. As telas pretas. Quando a tela tá preta a tela tá preta, inclusive foi a primeira vez que o filme passou legendado e eu entendi como é a influência da legenda na tela, que no momento dos apagões, dos blackouts, era um momento de tensão onde a pessoa não sabe se ela olha pra tela, se ela fecha o olho, se ela conversa, se ela presta atenção. Ela perde ali a estrutura, o apoio psicológico da imagem ali pra pessoa. E com a legenda daí ela já tem no que se segurar. É como se fosse uma cordinha pra se segurar. E aquela legenda branca, ela já ilumina as pessoas, a sala já fica completamente iluminada.
BO: Mas a gente fez de propósito, né? Tem vários dribles ali da legenda. Que eu não sei se o pessoal reparou, mas é obrigado a ter uma legenda. Aí eu pensei: pô, foda-se. A caixa preta vai ter um outro modo de existência com a legenda e vamo que vamo. Agora, outro eixo, um eixo seria pensar aí nesse sentido do cinema das atrações, dos aspectos gerativos, aspectos geracionais do cinema. Aquilo que é não exatamente função mas suporte do que pode ser o cinema. O cinema só se realiza através de determinado conjunto de suportes. Colocar isso em jogo, certo? Número um. Número dois é essa forma com que a gente trabalha hoje o cinema de arquivo, só que duas pessoas negras trabalhando arquivo eu acho que tem outro sentido. Tanto no sentido da Maria Beatriz Nascimento de se pensar o vaso estilhaçado e a liberdade de reconstituir os pontos, as informações, os dados desse vaso estilhaçado sendo que foi estilhaçado por um processo histórico que se prolonga até os dias de hoje; há um outro aspecto também que eu acho muito bom porque o arquivo da Ciranda do Gatilho é uma espécie de atlas mnemosine da diáspora e da cultura africanas. Se você recupera o Aby Warburg, a ideia de Atlas Mnemosine, o barato justamente é que as misturas, e aí falando de sample, elas são facultadas à pessoa que tá de alguma forma mexendo naquilo ali, então ressoa um pouco a ideia da Maria Beatriz, de vaso estilhaçado. E por fim, a ideia de que esse arquivo tem gradações, são fases, o arquivo é é um ser que tem fases. E essas fases elas vão obedecer aos mais diversos princípios relativos ao modo de existência. Vou dar um exemplo: VHS. A gente assistiu Império do Desejo e Tchau Amor na sequência…
S: E o Corpus Callosum, na sequência.
BO: E o Corpus Callosum, que é Michael Snow. A gente assistiu esses três filmes e fomos reparando como o VHS vai dilatando, ele vai perdendo informação. VHS você perde informação e altera a imagem por essa perda de informação. Mas não dá pra dizer que não é outra imagem. É uma outra imagem. Então tem também um aspecto aí do arquivo que é aparentemente contraditório, às vezes a degeneração leva a uma outra imagem – a uma outra visão. O arquivo digital já tem outras questões, você pode trabalhar com resoluções, você pode trabalhar com sintonia fina dos parâmetros, iluminação… Então a ideia era explorar essa polidimensionalidade do arquivo, dessa ideia de arquivo. E o Arthur Jafa foi uma influência grande nesse aspecto. Eu acho até que a gente foi um pouco mais radical que ele. Aquele filme, por exemplo, das pastoras cantando em VHS, que ele distorce o som das cantoras e o som vai ficando distorcido…
S: Isso foi uma coisa muito interessante, eu agora, terminando de almoçar, tomando meu cafezinho, um cara veio, se apresentou, “Caixa Preta ontem foi muito massa, queria te fazer uma pergunta”. Achei incrível a pergunta. Vou ter que colocar. Ele me perguntou se na última cena da pastora Ana Lúcia o som era uma colagem. Que é o único momento onde o som não é uma colagem. Eu parei pra pensar que é o único momento, na verdade, onde o som não é colado. Mas é aquela colagem que é o Brasil, o Brasil é uma grande colagem. O roteirista do Brasil, ele tava bem louco.
BO: (risos)
S: Ele saiu montando, saiu fazendo o que eu fiz com o Caixa Preta, as coisas vão se sobrepondo, criando outros significados, outra raça, outra espécie. Outro plano. Outro plano.
BO: É uma cantora negra, neopentecostal, numa igreja neopentecostal em Caxias, cantando com músicos negros, em sua maioria ostentando repiques de mão, tantans, instrumentos geralmente associados ao samba. Uma batucada…
S: Um axé inevitável.
BO: Um axé, um axé que vai acelerando, vai acelerando e ela vai puxando aquilo, e aquilo é uma expressão extremamente atravessada pela presença da música negra no Brasil e ao mesmo tempo ela tá gritando: “quebra o alguidar, quebra o alguidar. Tranca rua vai foder com a tua vida”.
S: É um momento onde o gatilho não consegue, você se deixa levar pro axé e você se deixa ser abençoado, queira você sendo apostólico, ateu, agnóstico…
BO: Todo mundo é abençoado e amaldiçoado (risos).
S: Todo mundo é abençoado naquele momento. Geral bateu palma.Dá vontade de se levantar, sabe? É irrefutável, você não precisa pensar sobre ou estudar ela, até entender o que ela tá dizendo. Você se sente libertado no mesmo momento, e o filme é uma preparação pra isso também, né? Vai te botando na caixa, te botando na caixa, daqui a pouco abre.
BO: Tinha gente dançando no final da sessão.
S: (risos).
JPC: Uma pergunta que eu gostaria de fazer tem a ver com a experiência e transe. Porque eu senti que muita gente embarcou na sessão. Parecia um transe coletivo. E aí a Saskia tava falando que ela gosta de fazer essas montagens que inventam uma nova coisa a partir dessa rearticulação. Vocês podem falar dessa relação do transe com o filme?
S: Eu acho que quando eu digo pras pessoas pra elas fazerem a própria sinopse é porque é isso, cada pessoa vai experienciar uma coisa diferente ali, eu não tô dando uma história pra pessoa aprender. A pessoa vai aprender um sentido novo, eu acho que na música eu faço isso, eu tento colocar as pessoas em estados que perpassam a vergonha, passam pela graça, até chegar numa liberdade onde a pessoa pode realmente gritar, entendeu? Às vezes a gente tem uma potência ali dentro que a gente não usa porque a gente tá dentro de códigos. Eu acho que o cérebro humano funciona todo por códigos e comandos. Eu acho também que a arte pode quebrar um pouco isso, em vez de eu te dar um novo código eu vou te limpar, vou limpar a caixa inteira. Vou limpar o código inteiro, limpar a frase, limpar o java. Você Você não tem nem o teclado agora. Que que cê faz? Que que é a palavra antes de cê aprender a palavra? Eu acho que eu tentei fazer isso, tentei fazer o que eu já faço na música, que é botar as pessoas em estado de exagero, sabe? Quando não é mais sobre raiva, sobre desconforto. Sobre textura. Já sai da estética, entendeu? A música tá muito atrelada à imagem hoje. Eu acho que fazer música é mais sobre a imagem do que sobre o som, daí eu fiz o inverso no filme. Fiz um filme que é mais sobre o som do que sobre a imagem. Inclusive as próprias imagens já são um som. Por exemplo, quando eu boto um monte de formiga em espiral com sons de instrumentos que ninguém sabe nomear porque o artista criou os próprios instrumentos, que som é aquele? O que é aquela imagem? O que é aquela textura? O que é aquele movimento? Pra onde você tá indo naquele redemoinho? Quando a gente vai descrever algum sentimento, alguma sensação, a gente já tá preso a uma linguagem. Já tá preso: isto é amor, isto é raiva, isso é desconforto. Acho que esse filme é pra criação de novas palavras.
JPC: Por isso que você pediu pra gente gritar antes da sessão, talvez?
S: Aham, eu fiz isso, né?
JPC: Eu berrei.
S: Você berrou! É dos meus, é dos meus. Pra botar pra fora, pra cuspir. Alguém vai ter que arrotar na mesa, né? Vai ter que arrotar na Santa Ceia.
JPC: (risos)
S: (risos)
JPC: Isso é bom, porque a gente precisa ser desconcertado. Você falou que tentou inverter essa relação entre imagem e som da música para o cinema. E isso tá muito na tua montagem. Porque o filme tem uma cinética, uma contracinética dos arquivos. Vai meio que contra uma montagem preocupada na comunicabilidade dos arquivos, né? Bagunça teu entendimento das imagens e sons.
S: (risos) Quem me conhece sabe que eu não sou de agradar.
JPC: Se nós viéssemos com expectativas bem comportadas da montagem dos arquivos, da compreensão, da explicação, do lançar luz às imagens, você como uma boa surrealista ia frustrar nossas expectativas.
S: (risos) Aham, aham. Pretendo frustrar.
JPC: Eu queria que cê falasse sobre frustrar expectativas.
S: Estou aprendendo a quebrar expectativas. A expectativa é muito difícil de ser quebrada e muito fácil de ser montada novamente. Então no próximo filme eu vou quebrar expectativas de novo, vai ser lindo.
BO: Eu acho que quebra expectativa, que pode até causar desconfortos e tal, mas é um filme também que eu acho bom ser média, acho que tem um tempo bom. Eu acho que tem ali essa pegada mixtape mesmo, é como se você tivesse naquele bode da festa aí daqui a pouco você volta pra festa e é muito mais uma experiência que você vai atravessando do que propriamente um registro que você vai interpretando, entendeu? Não é bem uma interpretação. Muito embora tenha uma narrativa no filme. Pouca gente fala do letreiro do início, é o letreiro mais importante, porque vai falar do código. Fala da impressionante probabilidade de que a gente exista, né? (risos). Começa dizendo isso. Então acho que não é tanto um filme pra você interpretar o sentido do que um filme que você vai passar como se tivesse numa festa, você tivesse num, sei lá, num…
S: Num trem fantasma.
BO: É, numa viagem mesmo. As coisas vão acontecendo.
S: Eu acho que é bastante um trem fantasma porque inclusive era… É exatamente isso, você brinca com todas as sensações ali, isso é divertido pra caramba, sentir é divertido, né? Que o filme teve esse começo, esse princípio. A gente tendo os dois primeiros movimentos da ciranda, a gente queria fazer um trem fantasma. Aí ia ser o nosso primeiro filme, eu acho que isso acabou intrinsecamente entrando na minha forma de montagem.
BO: Caraca, Saskia, tu lembrou agora de uma parada que eu tinha esquecido, o nome do filme ia ser Trem Fantasma.
S: Aham!
JPC: Vocês acham que o Caixa Preta tenta traçar planos, mesmo que provisórios, no caos?
S: Uhum. O filme não termina nem começa.
BO: Sim. A ideia é essa. Tanto é que a gente quer fazer o segundo logo. O tempo todo a gente tava olhando pra um horizonte, vendo alguma coisa sem saber o que que é.
S: Uhum.
BO: Mas vendo. Vendo. Tendo visões.
S: Aquela nébula. Aquele monstro atrás da névoa.
BO: É, é. Tem um negócio lá, tem um negócio lá. Vai fazendo, entendeu?
S: Desbravando esse trilho.
BO: E aí, por exemplo, eu não quero de forma nenhuma baratear a experiência do transe. Tomar muito cuidado com isso. Eu até tenho um texto que eu supostamente tentei induzir ao transe, mas eu não conheço a experiência do transe. Agora, a gente não fala do transe de uma maneira leviana. Nem irônica. A gente não colocou as imagens do mundial, da guerra lá do supermercado Guanabara pra ironizar aquelas pessoas. Não é deboche! E aquela sequência em que eu falo das pessoas, aquilo não é uma homenagem, aquilo ali é o terceiro milênio. E o terceiro milênio vai ter que se ver com toda a história da humanidade e antes dela, por isso que o filme começa com aquela epígrafe. E aí nesse sentido é preciso reconstituir um pouco do que seria essa narrativa do filme, do caos absoluto, completo, para a pastora Ana Lúcia em Caxias, entendeu? A história da Ana Lúcia é curiosa, porque assim que ela apareceu na internet eu publiquei no Facebook dizendo “olha que coisa impressionante e maravilhosa”. O Calbuque, Carlos Albuquerque, jornalista na época que trabalhava n’O Globo, ele viu e também ficou muito impressionado e foi lá em Caxias entrevistar a Ana Lúcia. E fez uma matéria no segundo caderno. A pastora Ana Lúcia tava na capa. E o pastor lá não gostou não. Porque cara, dali ela ia com certeza pro estrelato (risos). Entendeu? Ela realmente foi muito impressionante.
S: A pessoa tenta segurar o axé da pastora Ana Lúcia mas o axé é que nem o som né, ele não pede licença, ele sai entrando em você até você levitar. Eu levito no final desse filme.
JPC: Como assim levitar?
S: Levitando, levitando, porque o filme é movimento, ele é dança, ele vai te jogando pra cá, pra lá, dança lenta, dança rápida e daqui a pouco tá pulando, cê sua durante o filme. E quando chega Ana Lúcia, pra mim é um grande domingo, é um recesso, você relaxa. Eu relaxo com a Ana Lúcia, eu relaxo com esse axé irrefutável, que ninguém consegue segurar, ninguém precisa explicar ou estudar pra sentir. Daí eu me sinto levitada, porque eu acho que ela fecha um ciclo que não existe.
BO: Não, e tem o fato de que ela estaria imbuída desse axé ao lado de irmãos negros tocando percussões negras e ao mesmo tempo gritando em êxtase pra quebrar o alguidar e pra se livrar do exu Tranca Rua. De qualquer maneira, eu não quero facilitar as coisas dizendo que isso é um retrato do Brasil, não é isso.
S: Mas a nomenclatura ela não fecha, não tem como tu dizer que essa palavra ela vai segurar a ideologia inteira do que é uma sensação espiritual, do que é um transe. Você não consegue…
BO: Cê não vai resumir, né. Claro.
S: Cê não pode botar isso resumido numa palavra só, entendeu? Cê tem que recriar uma palavra pra isso. É um axé que vem do…
BO: Mas tem axé, né?
S: Oxe, pra caralho.
BO: Oxe (risos). Sinistro.
[1] O texto se chama “Só o capeta linguará”.
[2] O texto se chama “Between the black box and the white cube”.
[3] O texto se chama “O cinema das origens e o espectador (in)crédulo”.