No dia seguinte à exibição do longa-metragem Vermelho Bruto (2022) na Mostra de Cinema de Tiradentes, me reuni no gramado do Centro Cultural Yves Alves com parte da equipe do filme, que integrou a Mostra Aurora. Uma chuva nos levou para um bar em frente ao Cine Tenda, onde terminamos a conversa tomando umas cervejas. Amanda Devulsky é diretora e montadora do filme, Luisa Marques é montadora e Pedro B. Garcia é diretor assistente e produtor.
Por João Paulo Campos
João Paulo Campos: É o seguinte: o cinema contemporâneo tem usado cada vez mais imagens de arquivos de variadas fontes. Mas os arquivos são plurais. Eu gostaria que vocês falassem um pouco sobre a forma que vocês optaram, ou os caminhos que vocês conseguiram trilhar com os arquivos, sobretudo nessa trama entre arquivo e memória, que eu acho que é algo importante para o filme de vocês.
Amanda Devulsky: Eu acho que a postura que eu proponho quando começo a realizar o filme, de olhar pra esses materiais domésticos, tem a ver com uma trajetória prévia, que aí é uma questão pessoal mesmo, mas que eu acho importante falar porque tudo que envolve esse filme traz muitas questões pessoais e íntimas. Eu cresci em Brasília e sempre senti que essa relação com o espaço do Plano Piloto me afetou muito, de maneiras que talvez eu precise de décadas ainda de reflexão pra entender por completo, sabe? Mas essa questão do espaço vazio e rarefeito entre os pontos, entre os prédios, os monumentos, e esse foco muito grande numa certa ideia espacial, visual, sensorial de representação, de onde não tem nada e onde tem tudo. Eu sinto que isso ficou muito forte nessa experiência de vida mesmo. E aí tem a questão também de que eu sou dessa geração de pessoas que começaram a existir e se enxergarem enquanto pessoas – tô falando, sei lá, dos meus 10, 12 anos de idade – no momento em que a internet começava a ser uma coisa um pouco mais popular. Em especial os protótipos de rede social, de participação nesse universo do digital em que você tem a oportunidade de construir a sua própria imagem. Nesse sentido eu acho que o Brasil foi bem vanguarda em relação a muitos outros países. Eu acho que até no debate do filme na mostra eu citei o Fotolog, o Orkut, mas tinha uma coisa por exemplo, que eu acho que como a gente tá falando de Brasília é importante mencionar. Era um negócio que chamava Agitos BSB. E cara, isso é muito louco, porque (risos)…
Luisa Marques: Agitos BDSM (risos).
AD: Não, Agitos BSB. Cara, isso aqui era o Facebook, e tipo, 2001, 2002. Você tinha um perfil, e eu tenho arquivos disso, porque eu fui atrás naquele internetarchive.org, saca? Que dá pra você encontrar páginas que nem existem mais, mas que existiam, sei lá, em 2003. E aí é meio que uma descrição assim da sua personalidade, você pode deixar mensagem pras outras pessoas, as pessoas podem deixar mensagem pra você, as pessoas podem te dar nota de 0 a 10 e isso era um rolê dentro do mundo do Distrito Federal. Muito antes do Facebook, num nível bem regional, bem específico. E aí esse processo pra mim foi fundamental pra estabelecer mesmo uma relação com a imagem. Antes até duma relação com essa ideia de cinema, do cinemão, do cinema na sala de cinema, enfim, de tudo que depois chegando mais na vida adulta e na universidade começou a se estabelecer. E isso pode ser usado como uma crítica, pode ser visto no sentido negativo. Mas eu não acho que é não (risos). Eu acho que é positivo. Essa relação com o cinema através de uma outra construção, tipo, de uma outra experiência com a câmera e tals. E eu acho que hoje em dia a gente tá vivendo isso de um modo já totalmente generalizado. E você perguntou sobre relação com arquivo…
JPC: Uhum, mas tá fazendo sentido, pode continuar. Fique à vontade.
AD: Eu acho que é isso, o meu interesse ali pra pensar os arquivos vem disso, dessas duas coisas que eu citei. Uma experiência com cinema que se estabelece a partir de dispositivos domésticos e amadores e de uma experiência com a cidade, uma cidade que parece que tá muito evidente o que que é importante e o que que não é, sabe? O que é representação e o que não é, o que é figura e o que não é. O que é central e o que não é. É isso.
LM: O que é arquitetura e o que é, sei lá, algo que se desenvolve ali de uma outra forma, não planejada. O que é cidade e o que não é, o que é urbano e o que não é. Pensando no Plano Piloto, especificamente, Brasília é uma cidade que não é construída mesmo pro plano humano. Como se não fosse uma cidade pra pessoas. É como se fosse uma cidade pra monumentos. E é claro que isso é subvertido o tempo inteiro, mas essa tensão existe.
Pedro B. Garcia: Vocês tavam falando disso, eu fiquei pensando também como o processo do filme, ele é distinto de um certo processo de Brasília. Porque Brasília parte de uma ideia pronta pra depois colocar as pessoas lá. O filme não. O filme eu acho que é uma negação disso. Não sei se negação é muito a palavra, mas acho que ele parte da relação, desse encontro pra construir as imagens, pra construir sua estrutura. Ele não tem uma estrutura pronta, que às vezes é demandada. Isso estranha: não tem uma estrutura pronta. Onde se encaixou essas imagens? Não. A estrutura vem da relação com as imagens e com as pessoas.
LM: É, eu acho que a gente trabalhou principalmente com três tipos de material: material que foi gerado por cybershot pelas protagonistas, o material de arquivo pessoal delas, e entrevistas de áudio, que eles fizeram longamente várias entrevistas. Então todo material gerado depende absolutamente dessas pessoas retratadas no filme. Elas geram essas imagens, esses sons, essas palavras.
AD: Eu não gosto nem de chamar de entrevistas… Porque eu acho que tinha uma questão que era essa: são pequenas agonias que eu tenho às vezes com palavras.
LM: Sim, sim. Sim.
AD: Mas tipo, no sentido de permitir que essa conversa seja guiada por elas mesmo, porque às vezes a ideia de entrevista… talvez seja um preconceito com a ideia de entrevista, mas que esse fio possa ser tecido ali na relação, sabe, não imposto.
LM: Sim. O Pedro e a Amanda tão no projeto há muitos anos, eles têm uma produtora juntos, eu cheguei mesmo só pro processo de montagem.
AD: Só? (risos).
LM: Eu cheguei, sei lá, cês já tinham muita coisa levantada ali. E eu entendi ouvindo essas conversas que realmente era uma relação muito de intimidade que vocês criaram com elas. Então eu sentia que elas se sentiam muito à vontade com vocês, até pelo tom de fala de vocês. Acho que tanto você quanto o Pedro criaram essa relação com elas. Então isso é importante pra essas falas, sem dúvida.
JPC: Será que essa forma de relação com a alteridade pelas imagens de arquivo tem alguma coisa a ver com o gesto da colecionadora? Tem alguma coisa de coleção, assim, nesse processo?
AD: Que que cê acha? (pergunta para Luísa Marques)
LM: Eu acho que não. Eu vi os curtas da Amanda e a gente trabalhou juntas nesse processo, eu acho que eu teria que pensar melhor sobre, mas eu não consigo muito te ver como colecionadora (se referindo a Amanda). Porque eu sinto que você não vai arquivando as imagens, sabe? Eu acho que cê vai se encontrando com elas e usando elas e trabalhando elas e se afetando por elas. Então eu acho que é uma coisa que se movimenta mais do que o ato de colecionar. Tem um encontro ali, e tem uma coisa assim de escavar e tal, mas eu não acho que é exatamente colecionismo.
PBG: É, eu acho que às vezes a ideia de coleção, pelo menos, acho que talvez não fosse isso que cê tava falando (se referindo à João), mas me passa uma ideia de fixidez, sabe?
Ad: Não, mas existe, é. Eu acho que existe isso.
PBG: Eu acho que o processo do filme, seu processo, Amanda, o processo do filme em geral, ele não tava interessado em deixar aquilo estável, né? Tava interessado em olhar pro resíduo, olhar pra passagem de tempo ali naquela imagem, e não tinha essa preocupação de que aquela imagem tem que sair intacta desse processo.
AD: Sim. É, isso é importante.
LM: Eu acho que não tinha também muito a preocupação de catalogação. Porque eu acho que às vezes pra colecionar uma coisa, pra você conseguir dar conta de uma coleção você precisa ter um certo ato de catalogar, pra organizar.
AD: Que a gente precisou fazer, mas que não era como se fosse um passo do método pra chegar num outro lugar. (…) O colecionador é como se fosse um arquivista independente, né? Se a gente tá pensando nas instituições de arquivo privadas e públicas elas têm uma importância, mas nessa rede de preservação o colecionador tem um papel importante também. E ele é uma espécie de curador das imagens. Mas eu de fato não me vejo tanto nesse papel, e aí quando a Luisa fala esse verbo escavar, eu gosto… Mas aí eu tenho ressalva que eu não gosto dessas coisas muito…
PBG: Da profundidade.
AD: Eu não gosto da profundidade, eu gosto do superficial. Eu gosto da superficialidade. Não no sentido pejorativo que as pessoas costumam usar. Nos outros sentidos, que também não vou falar disso agora. Mas uma coisa que me lembrou isso que a gente tava falando é um termo que se chama ativação. Ativação dos arquivos. É um conceito da Giovanna Fossati, que é uma arquivista. É um termo que ficou muito importante nesse rolê dos arquivos. E que ajuda a fazer uma diferenciação também entre o gesto de preservação e o gesto de ativação, porque às vezes não é suficiente você preservar uma coleção de imagens. Tipo assim, cê preserva… Tá, você tem uma cinemateca, você tem um quarto, você tem tipo uma gaveta. E aí você coloca as coisas lá. Tudo bem, elas tão meio que à salvo, mas o tempo continua passando e elas estarem ali fechadas… enfim, isso não dá conta de tudo. E os arquivos precisam de um contexto pra existir, eles precisam de uma ação pra existir, eles precisam de uma relação pra existir de um jeito que honre eles de alguma forma. Existem vários jeitos, não é só um. Então, eu acho que talvez tem a ver com esse termo. Tipo, quais são as formas que a gente tem de ativar os arquivos que existem, pra que eles não fiquem só guardados?
JPC: Quando você fala dessa ativação, tem a ver com movimento? Luisa falou que seu processo com os arquivos tem a ver com uma questão de afetação. Você acha que essa afetação entra aí, nesse nó que você mostrou, quando começou a falar?
AD: Sim, esse conceito de ativação, eu não tenho pretensão de dar conta dele, porque ele é muito amplo e tem muitas pessoas falando sobre como que isso pode acontecer, inclusive institucionalmente, pensando nos arquivos mesmo, nas cinematecas e tal. Mas falando aqui no nosso espaço do filme, eu acho que essa experiência tem a ver com presença, eu gosto dessa palavra. Tem a ver com a experiência de estar presente com as imagens. E isso significa visionamento, mas um visionamento… não só uma vez, significa compreender e sentir o contexto no qual elas passam a existir, e o contexto no qual elas continuam existindo ao longo dos anos. Acho que é importante que seja a partir disso que um trabalho de movimento com elas, talvez mais explícito assim de corte, de montagem, de definição, da estrutura do filme possa ser realizado. Porque se não eu acho que corre o risco de acontecer uma coisa que eu não gosto, e que a gente não gosta, que a gente conversou bastante sobre isso, que é uma instrumentalização dos arquivos. E acho que quando a gente tá falando especialmente sobre arquivos domésticos, arquivos íntimos, arquivos amadores, isso chega ali num problema ético, sabe? E infelizmente isso acontece. Principalmente com filmes órfãos, filmes que não têm dono, que tão num arquivo que ninguém sabe. A gente vê isso no audiovisual de hoje. Você precisa de uma imagem que expresse uma família feliz, sabe? E é isso: um uso totalmente instrumentalizante dos arquivos pra compor um discurso.
LM: Tipo o gettyimages, né? Um banco de imagem.
PBG: Stock images, é.
AD: A famosa… como é que é? Que falaram uma vez pra gente. Imagem de…?
LM: Imagem de cobertura?
AD: É, brigada. Muito tempo atrás, quando a gente tava começando a fazer o filme e tentei explicar um pouco o que que a gente tava fazendo, falaram: “ah, que legal, mas cês vão usar os arquivos como imagem de cobertura?”
LM: (risos)
AD: Que que é isso? (risos)
PBG: (risos)
LM: Pensando nisso tudo que a gente tá falando e também na sua primeira pergunta, eu sinto que, trabalhando com a Amanda, eu senti que ela tava sempre confrontada pelos arquivos, pelas imagens. E nesse sentido eu acho que se afasta um pouco do ato de colecionar. Pra mim o colecionismo soa um pouco como se aquela coleção, aquele arquivo tivesse um lugar de passividade. E eu acho que no caso do Vermelho Bruto, no caso da relação que a Amanda, ou pelo menos o que eu vi a Amanda travando com os arquivos, com as imagens – e eu usei a palavra afetação -, eu acho que existe uma agência dos arquivos e das imagens sobre o processo de trabalho da Amanda, é isso.
AD: Sim.
LM: Nesse sentido que eu acho que colecionismo soa como algo que deixaria aqueles arquivos passivos…
AD: Ou pelo menos hierarquicamente colocados em relação ao colecionador, né?
LM: Eu acho que tem a ver sim com o arquivo estar lá parado e ele poder ser usado…
AD: Sim, o colecionador tá aqui e o arquivo tá aqui…
LM: Então eu vou pegar esse arquivo aqui pra usar pra essa coisa, e eu acho que no seu caso cê se deparou com aqueles arquivos e eles te afetaram de um jeito, tiveram uma agência sob você que te fez fazer esse filme.
JPC: Isso que vocês dizem é fantástico. E me veio o filme todo de novo na cabeça. Você falou uma coisa, Amanda, que me chamou a atenção. O que te interessa é a superfície. Em que sentido? Eu achei isso muito curioso.
AD: A questão da superfície tem uma relação mesmo de querer pensar a imagem não só enquanto uma coisa que faz referência a outra, um índice de uma outra coisa, ou algo que leva a um outro significado, mas pensar imagem enquanto materialidade mesmo, nas suas diversas materialidades. Nesse sentido, a imagem tem esse caráter de superfície, né? E é um caráter de superfície que coloca em jogo alguns desses valores, dessas hierarquias sociais. Que tendem a colocar a valoração a partir da profundidade. E a partir da penetração de algo. Você tem que penetrar em algo, ir fundo em algo. E aí, enfim, dá pra pensar em muitos sentidos, que tem essa coisa mais de pesquisa teórica mas também artística e tudo ao mesmo tempo. Uma coisa de ir fazendo e tudo. E dá pra pensar um valor que não tá na profundidade, que não tá na figura da penetração, que não tá na arma. Que tá no valor que reside mesmo na superficialidade, sabe, e não atrás dela. Não a superficialidade como um véu, a tela não como uma coisa que você tivesse que atravessar ela e ir pra trás dela, mas como tem algo ali naquela própria superfície que tem um valor, e que valor é esse, como é que se relaciona com esse valor.
PGM: Eu queria só complementar uma coisa assim que na verdade eu não sei nem se já falei, mas enfim, ouvindo você falar sobre essa coisa da superfície me faz uma relação com as coisas que eu penso sobre a lógica da representação. A imagem sempre como a representação de algo outro. E aí a gente pensar a imagem pelo que ela é, pela superfície dela, eu acho que isso liberta a imagem pra outras possibilidades…
AD: Pela materialidade.
PGB: Pela materialidade, isso. Pela materialidade. Enfim. Isso liberta a imagem pra outras coisas. Isso escapa daquela pergunta: mas o que essa imagem quer dizer? O que tá por trás? Não é… Tipo, essa imagem…
AD: Ela é.
PGM: Isso. Ela é.
LM: O que ela representa, né? E não… acho que em geral se pergunta isso, o que essa imagem significa, o que ela representa… e na verdade ela pode ser muitas coisas antes disso. Ou também, além disso. Ela pode ser um rasgo, ela pode ser uma poeira que tá ali acumulada. Nesse sentido da materialidade mesmo que eu acho que tem muito a ver com o pensamento de arquivo, como essas imagens de arquivo se comportam com o passar do tempo, como elas são desgastadas, como elas envelhecem, com que cor elas ficam, com que textura elas ficam, como vão desaparecendo. Então acho que o filme tem essa preocupação. E eu acho que o uso que o filme faz das fotos, que são fotos dos arquivos pessoais das personagens, eu acho que o filme tem esse olhar pra essas fotos que é dar esse zoom, esse super zoom, justamente pra não pegar o que aquela foto está representando. Quais são as figuras que tão ali naquela foto, mas qual é a ação do tempo naquelas fotos.
AD: Tipo, não só isso, mas isso também, sabe? Porque as coisas tão ao mesmo tempo, são várias coisas, não é uma coisa simples.
LM: É, ou então um gesto que tá na foto. Às vezes tem um corpo inteiro mas a gente mostra um olho, um dedo, uma mão, um tecido.
AD: Ou o fundo de uma foto. Porque também a memória não funciona nessa lógica que a gente insiste em impor às imagens, essa lógica do representado, da figura, do centro, do que é, do que é informação.
LM: Do que é importante.
AD: E o ruído não importa. A memória é composta, na verdade, da minha posição pelo menos, cês me dizem aí se pra vocês também é assim, a memória é composta justamente desses ruídos do fundo…
LM: Do não figurativo?
AD: Do não figurativo, de uma cor, de uma luz, de uma matéria que se desgasta. Muito mais do que esse significado que tá ali no alto, essa coisa transcendente que não tá relacionada à matéria. E aí também se a gente for pensar na história da filosofia masculinista e pensar também nas teorias feministas diversas que existem hoje, toda essa ideia da transcendência e de que existe uma coisa, essa ideia da materialidade é uma ideia muito cara ao que foi definido historicamente como o que é uma mulher, tipo, é o conceito político-social, que é uma espécie de ficção, porque a ideia da mulher é uma ficção, é uma ilustração, e que tá intimamente relacionada com vários nós atrelados à materialidade. Tanto a ideia da mulher como uma coisa abstrata e poética que tá além do corpo quanto à ideia que acontece às vezes, que tem a ver também com a branquitude, e quanto à ideia da mulher enquanto apenas algo atado à terra e aos processos da natureza. Esses dois lados tem coisas muito complicadas acontecendo. Então acho que falar dessa materialidade da imagem tem tudo a ver com essa questão.
JPC: Você falou da questão dos monumentos na experiência de Brasília, eu pensei na ideia de contra-monumentos e de contra-ataque. Tem alguma coisa de um contra-ataque numa perspectiva marcada pela matriarcalidade na obra?
A: Quando a gente tá falando do filme, a gente tá falando de quatro mulheres específicas com histórias de vida específicas também. E eu acho que isso é importante. Mas pra mim também é importante pensar que existe algo em comum, e eu acho que existe porque as pessoas assistem e se identificam. Conversei com pessoas que contavam ver aspectos de suas próprias mães ou aspectos de suas vidas mesmo não sendo mães elas mesmas, por exemplo. Então existe uma coisa em comum. Mas existe também uma parada muito delas, muito próprias. E aí eu tenho o receio de generalizar isso pra falar da condição da mulher, saca? Embora, por exemplo, quando tô falando isso que eu falei agora da materialidade da imagem, isso é uma questão que eu enxergo, e eu também tô no filme, eu também faço o filme. Então essa é a minha visão também que tá em todo momento em negociação com a visão delas. Mas eu não colocaria como uma questão de matriarcado, ou tipo, de um sistema político. Eu não colocaria dessa forma. O que eu colocaria seria, talvez, nesse sentido que você falou, uma recusa mesmo. Uma recusa aos monumentos (risos). Não sei se isso faz sentido pra vocês.
PBG: Faz sentido. Eu acho que até conecta com as questões de Brasília e as questões do filme. Eu acho que faz uma conexão legal porque fiquei pensando aqui que era isso, a gente tava falando de uma certa recusa à representação, um certo valor da superfície, e aí alguém de vocês falou da altura, do filme estar numa outra escala. Ele não é um filme que tá mostrando o Distrito Federal e Brasília pelo drone da Esplanada. Ele tá tocando, ele é tátil em alguns momentos. E aí eu acho que isso faz sentido se pensar que o filme não é uma representação da mulher do Distrito Federal.
Ad: Não, porque não tem como.
LM: Até porque não existe. Não existe a mulher do Distrito Federal.
AD: A representação em geral tem um aspecto de ilusão, mas nesse sentido mais ainda, né? Não existe, assim.
LM: É… Em vários momentos da montagem a gente discutia sobre usar ou não imagens da Esplanada. Tem uma imagem que você cita no seu texto, João, em que a Fabiana tá filmando do ônibus a Esplanada de noite com uma luz vermelha, então é um negócio meio aterrorizante, estranho, e durante muito tempo a gente ficou na dúvida se a gente usava essa imagem. Porque ela mostrava a Esplanada de um jeito esquisito mas ainda assim era identificável aquele espaço. Então eu acho que isso foi também uma questão pra gente.
AD: Essa questão do centro, né? Porque fica muito marcado quando a gente tá falando de Distrito Federal, Brasília, essa ideia de que ali é o lugar da representação política, da política institucional e acabou. Mas de alguma forma eu sinto que essa cena faz justamente o contrário, eu gosto dela.